segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

.: Sobre levantar bandeiras, por Ricardo Silva

Por Ricardo Sil*
Em fevereiro de 2015

Ontem foi um dia lindo em São Paulo. Parece que, enfim, a cidade e os seus cidadãos descobriram o carnaval e enterraram de vez sua má fama de ser o túmulo do samba. Foi lindo ver no final da noite a Consolação tomada pelos foliões do Baixo Augusta cujo samba enredo desse ano é “Família Augusta, de Todo Jeito Nos Gusta” em defesa da diversidade de todos os tipos de família e contra o absurdo estatuto da família idealizado pelo Eduardo Cunha. 

Nada mais condizente com o bairro que homenageia. A Augusta é o cenário por onde transitam seres humanos que não cabem mais nessa definição retrógrada de gênero. É a rua das gays, das trans, das sapas, das prostitutas e todos os tipos marginalizados de Essepê. Mas se a Augusta é um lugar que já abarca a diversidade, é preciso mesmo levantar bandeiras? Eu digo que sim. E que ainda estamos longe de um cenário ideal. 

Digo isso porque, minutos antes de chegar na Consolação e ver a massa efusiva do bloco Baixo Augusta, estava no Bloco Pilantragi e, antes de migrar para o Baixo, resolvi, eu e mais quatro amigos, pararmos na "Padaria Real", aquela famosa que fica ao lado da MTV, para fazermos uma boquinha e seguirmos para o bloco seguinte.

Meu figurino era básico. Não estava fantasiado. Bermuda e camisa. Mas usava um batom vermelho. E quando me sentei no balcão para pedir um pedaço de pizza fui hostilizado pelo garçom que disse "não" em tom de brincadeira. mas com deboche e escárnio: "Vixi! Homem de batom!".

Eu e um amigo ainda tentamos manter algum diálogo com ele, que fingiu o tempo todo não nos ouvir como se nos dissesse: "eu só disse o que penso". Depois disso falamos com o gerente do lugar que nos tratou superbem e, ao que parece, fez uma reprimenda ao tal garçom. Fiquei em dúvida se escreveria ou não este post. Moro há quase 12 anos em São Paulo e esse foi o primeiro caso de preconceito real e direto que sofri. Mas a situação me pareceu tão absurda - estávamos no carnaval (!!!!) numa padaria frequentada historicamente por artistas, por pessoas que estiveram na vanguarda do pensamento desse país, que ajudaram a construir a história da TV (antes de ser da MTV, o prédio foi da TV Tupi) - e essa cena aconteceu. 

Acho mesmo que sou um privilegiado por quase não sentir na pele a perseguição que muitos gays sentem todos os dias. Convivo com pessoas esclarecidas, moro num bairro de classe média. Ser gay já não é um problema para mim há anos. Mas fico pensando em quantas pessoas são hostilizadas não por apenas usarem um batom vermelho, mas por terem coragem de seguir em frente sendo aquilo que são. E aquilo que são não se enquadra num padrão pré-estabelecido secularmente por uma sociedade misógina, heteronormativa, branca e majoritariamente cristã.

Transexuais mutilados, mulheres estupradas, negros assassinados, gays mortos-vivos porque ainda não saíram de dentro do armário com receio do que pode lhes acontecer, caso queiram exercer a plenitude de sua existência.

Eu diria que o batom vermelho foi um contratempo que me aborreceu por instantes, pois em seguida já estava no Baixo Augusta, linda e loira, porém morena, lacrando. Mas é preciso dizer, é preciso ter voz. Para que o vermelho fique no batom e não no sangue derramado de milhares de “minorias” que dia após dia são covardemente massacradas na cidade mais cosmopolita da América do Sul ou no interior profundo do Brasil ou em qualquer outra parte do mundo.

Sexta começa oficialmente o carnaval. Que cada um tenha a liberdade de vestir a fantasia que mais lhe aprouver. Não só nos quatro dias de folia, mas o ano todo.

*Ricardo Sil é roteirista e escritor. Quer saber mais sobre o autor do texto? Confira esta entrevista que ele deu para o Resenhando neste link.
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