terça-feira, 16 de agosto de 2016

.: Entrevista com Alexandre Guarnieri, poeta



"A serenidade que busco na vida já não quero no texto".
Alexandre Guarnieri

Por Helder Miranda
Em agosto de 2016

Nascido no Rio de Janeiro em 10 de maio de 1974, Alexandre Guarnieri  é historiador da arte e mestre em tecnologia da imagem. Começou, em 1993, a participar de eventos de poesia falada no Rio de Janeiro. Em 2011, publicou pela Editora da Palavra o seu primeiro livro, "Casa das Máquinas". Com o livro "Corpo de Festim", lançado pela editora "Confraria do Vento", conquistou o primeiro Prêmio Jabuti de Literatura na categoria "Poesia". O livro ganha agora uma segunda edição, pela editora "Penalux".

A obra pretende acostumar o leitor à sua biologia, às suas entranhas e fazer com que estas lhe entreguem a verdade sobre o mundo, a vida e sua história, descobrindo e redescobrindo o novo e o antigo dentro da anatomia, da matéria orgânica e também das palavras.

Aos 42 anos, mora no Centro do Rio de Janeiro e trabalha com burocracia estatal. Está entre os editores da revista eletrônica "Mallarmargens".  Além do Jabuti, no ano passado, ele conquistou em 2003 os prêmios "Yêda Schmaltz", oferecido pela "União Brasileira de Escritores, Seção Goiás", e "Marco Lucchesi", oferecido pelo jornal carioca "Panorama da Palavra", pelo poema que está no "Casa das Máquinas", chamado "pedra fundamental". 


Reeditado recentemente, o livro "Corpo de Festim" tem o intuito de explicar a maravilhosa criação do corpo humano em forma de poesia. O autor brinca com as palavras para descrever a criação e a evolução dos seres por meio da biologia, com a proposta levar o leitor às infinitas descobertas sobre o início de nós mesmos e a continuidade da nossa história.

De acordo com o escritor Furio Lonza, autor do prefácio, a obra reúne poesias em torno de um tema, concentradas obsessivamente na materialidade da palavra, na dissecação, na anatomia, no “voyver biológico”"A repetição sobre seu objeto, o corpo, leva-nos a infinitas descobertas sobre o início de nós mesmos e a continuidade da nossa história, chegando perto das nossas interpretações de nossas verdades e mentiras", relata.

Para os editores Tonho França e Wilson Gorj, Guarnieri se enquadra nos pódios da poesia brasileira contemporânea, por sua linguagem inovadora e única. Com tema impressionantemente modernos, seu peso materialista é familiar devido à cultura ocidental do século XXI, que precisa do material bruto para crer.


RESENHANDO - O sobrenome "Guarnieri" é parentesco ou coincidência com o ator/escritor?
ALEXANDRE GUARNIERI - Temos ancestrais comuns, na Itália, mas nunca convivemos.

RESENHANDO - Qual é a sensação de ganhar um "Prêmio Jabuti" com um livro de poesias?
A.G. - Uma satisfação sem tamanho, uma sensação de trabalho de casa bem feito. Um reconhecimento.  

RESENHANDO - Por que o título “Corpo de Festim"?
A.G. - Quis um título curto e de alto impacto, como no "Casa das Máquinas". Da "Casa" para o "Corpo" me pareceu um salto coerente. 

RESENHANDO - Como surgiu a oportunidade de reeditar, dois anos depois, o livro? 
A.G. - A primeira editora, com a qual ganhei o prêmio Jabuti, não mostrou interesse em reimprimir ou reeditar o livro, apesar do prêmio.
Conheci o trabalho da Penalux e decidi apostar. Tonho França e Wilson Gorj são sérios e afetuosos. É o que um autor espera de seus editores, além do profissionalismo.


RESENHANDO - Como a poesia pode se relacionar com a criação e a evolução dos seres por meio da biologia?
A.G. - O mundo é experimentado a partir dos cinco sentidos, mas só a linguagem pode compartilhar a experiência. A linguagem pode interpretar tudo ou, pelo menos, tentar, tentar, tentar. A arte é uma espécie de ciência.

RESENHANDO - O livro tem a proposta de conduzir o leitor às infinitas descobertas sobre o início de nós mesmos e a continuidade da nossa história. O que você próprio descobriu com esse trabalho?
A.G. - O valor do acaso... que todo livro é um monstro de "Frankenstein" e nos desafia, que pode nos consumir... que os temas também estão sujeitos à entropia... que o ego planta armadilhas, um campo minado de problemas e saídas estratégicas... que o poema é meu bote salva-vidas... 

RESENHANDO - Como é, para você, descobrir e redescobrir o novo e o antigo dentro da anatomia, da matéria orgânica e também das palavras?
A.G. - Eu me sinto um cientista louco, imune à disciplina... Ao mesmo tempo, dedicado, abraçado à própria obsessão, numa relação apaixonada... Os temas me tomam, se apossam de mim... Cada livro que escrevo me oferece o mapa para uma nova viagem, aberta ao improviso, mas trabalhosa e cheia de perigos... Neste livro, quis converter a matéria orgânica em linguagem, como se pudéssemos criar uma máquina para isso... Persegui uma poética genética...   

RESENHANDO - Nesse livro, você também fez a capa e o projeto gráfico. Como foi esse trabalho, na própria obra?
A.G. - Desde meu primeiro livro, sempre estive ligado à todos as etapas do processo do livro... Minha poesia está intimamente ligada à forma, eu não poderia terceirizar isso. É algo que nasceu com a minha poesia.


RESENHANDO - A poesia é um segmento valorizado na literatura? 
A.G. - Muito valorizado. E menos lido do que gostaríamos. A poesia é o laboratório alquímico da linguagem por excelência. É onde o chumbo pode virar ouro. É o campo experimental onde velhas coisas podem ser descritas de novas formas, possibilitando novas sensações sobre elas. Gosto muito dessa poesia que emana das coisas. A poesia é uma espécie de farol da sensorialidade. Por dizer o velho como novo, permite que este seja sentido de outro modo. 

RESENHANDO - Como um historiador da arte e mestre em tecnologia da imagem enveredou para a poesia?
A.G. - Para alguém que busca a arte experimentando linguagens, um meio sempre acaba fisgando a sensibilidade em detrimento dos outros, no meu caso, foi o da palavra escrita. Os poemas são esculturas ou pinturas ou vídeos ou performances... verbi-voco-visuais. Toda arte é tradução e fundação.

RESENHANDO - Desde 93, você participa de eventos de poesia falada no Rio de Janeiro. A oralidade na poesia é algo que está se perdendo?
A.G. - Pelo contrário, os saraus estão mais em pauta do que nunca. Muito embora, eu julgue haver poemas que funcionem na voz, mas não na página. E vice-versa. Mas tudo é uma questão de juízo e não deve haver ditadura estética.

RESENHANDO - Dentro desse assunto, como faz para enxergar a poesia no dia a dia?
A.G. - É uma questão de treino, de exercício do olhar e da escuta do mundo. Um tipo de meditação. Convidar o fora a entrar, depois tentar isolá-lo. Ficar em roda com ele. Conviver com o fora, dentro. Depois expulsá-lo com palavras. O poema pode ser uma tradução de sensações.  


RESENHANDO - O primeiro livro, “Casa das Máquinas”, foi elaborado em que contexto, e a partir de que inspiração?
A.G. - Uma energia muito parecida com a do "Corpo de festim", acho que esses livros conversam muito. Fiquei 15 anos trabalhando nele. Publicar não era prioritário. Simplesmente me permiti conviver tanto tempo com uma família de poemas que eles foram se ramificando, dando filhotes, só então entendi que o conjunto era um livro. E os aprisionei nele. Meus livros são zoológicos, há um raciocínio por trás da reunião, mais do que simplesmente um recorte temporal.

RESENHANDO - Qual a diferença entre o primeiro “Casa das Máquinas” e o que será reeditado ainda este ano?
A.G. - Pretendo limpar os exageros (este livro exige muito fôlego). Retirar alguns poemas, inserir outros, além de mostrar uma pequena fortuna crítica. 

RESENHANDO - Como é o seu trabalho como editor da revista eletrônica "Mallarmargens"?
A.G. - É a minha cachaça. Tomar contato com novos trabalhos e novas visões da poesia é de uma satisfação sem tamanho. Há tanto talento por aí, quase sempre inédito em livro. 

RESENHANDO - As premiações servem como incentivo aos escritores? Isso, de alguma maneira, interfere no ego do artista?
A.G. - As premiações deveriam servir como incentivo, inclusive financeiro, jamais ar quente para o balão do ego.  

RESENHANDO - O que há de autobiográfico nas suas poesias?
A.G. - As minhas sensações do mundo, quase sempre alimentadas por obras de arte de terceiros é certo. A arte é o combustível. Minha poesia é essencialmente biográfica porque parte de minhas sensações. 

RESENHANDO - O que a poesia representa para você?
A.G. - Uma forma de estar no mundo, num eterno jogo de estabilidade e transformação. No final, não há como vencer a entropia. Então é possível cantá-la.


RESENHANDO - Quais os autores mais influenciaram a sua carreira como poeta e por que?
A.G. - Pode parecer absurdo, mas num mesmo período fui capaz de me sentir simultaneamente tão entusiasta dos beatniks quanto dos concretos paulistas. Nunca fui preconceituoso com as experimentações nos limites das linguagens. Nas zonas de fronteira onde as linguagens se encontram há terreno fértil para renovações estéticas. Nos anos 90, ao mesmo tempo em que militava na poesia falada carioca, fazia experiências com poemas-objeto que não compartilhava com ninguém. Colava textos em pequenos espelhos, que refletiam uns aos outros. Eu fiz muitos poemas-objeto de cartolina recortada e dobrada. Misturei muito Amilcar de Castro com Lygia Clark. Tinha minha oficina particular de poesia concreta! Sempre fui fã dos construtivos, proto, pré, strictu sensu, neo, pós. O livro “A Ave” do Wlademir Dias-Pino me impressionou bastante (Álvaro de Sá tinha uma cópia, há pouquíssimas no mundo)! Produzi um poema cinético, o "CiClotron", e o poema interativo "Cristal-Prisma-Fractal" (inédito). Mas a materialidade do impresso sempre me venceu. O livro como uma fantástica máquina, ao mesmo tempo tão simples. Percebi que o software era mais interessante que o hardware e resolvi investir mais nele, ou seja, no texto em si. Muitos autores fizeram a minha cabeça ao longo dos anos; para citar alguns: Gullar, JCMN, CDA, Manoel de Barros, Ledo Ivo, Augusto dos Anjos, O grupo Noigandres, os beatniks, Francis Ponge, Gottfried Benn, Trakl, cummings, Ezra, Pessoa, Sá-Carneiro, Mauro Gama, Álvaro Mendes, Helena Ortiz, Astrid Cabral, Rosa Ramos, etc. Não conseguiria citar todos.

RESENHANDO - O que o inspira e o que o desestimula a escrever?
A.G. - Uma relação difícil de pretensa intimidade com o texto me estimula, mas familiaridade e facilidade demais me fazem perder o tesão.  

RESENHANDO - Diferenças e semelhanças entre o poeta e o homem Alexandre Guarnieri.
A.G. - O que escrevi acima já não vale pra vida, ou pelo menos não deveria, gosto de acreditar que estou apto a buscar relações saudáveis com pessoas e lugares. A serenidade que busco na vida já não quero no texto. No texto, quero a guerra, a fricção, o risco, o perigo.

RESENHANDO - A poesia pode morrer?
A.G. - A poesia morre e renasce todo dia, no seio da nossa relação com a linguagem. Peço permissão para citar o poeta amigo Mauro Gama, por sua vez citando Cioran, no posfácio do meu primeiro livro, "Casa das Máquinas": "o consagrado, numa língua, como lembra o romeno Cioran, constitui sua morte: uma palavra prevista é uma palavra defunta; só seu emprego artificial lhe insufla um novo rigor (...)”. E o rigor, com relação à palavra, é o próprio ofício do poeta". Quando nosso olhar sobre algo embaça, a poesia morre. O olhar faz as coisas viverem e morrerem. Faz parte do ciclo de renovação, permitir que algo morra, para que possa se renovar. Vida e morte são o eterno jogo necessário à criação. 

Sobre o entrevistador
Helder Miranda é editor do Resenhando.com há 12 anos. É formado em Comunicação Social - Jornalismo e licenciado em Letras pela UniSantos-Universidade Católica de Santos, e pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela USP. Atuou como repórter em vários veículos de comunicação. Lançou, aos 17 anos, o livro independente de poemas "Fuga", que teve duas tiragens esgotadas.
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Um comentário:

  1. Muito inteligente a entrevista com Alexandre, uma pessoa extremamente culta que admiro muito...um filho do qual me orgulho. Sucesso ! Vicente March

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