sexta-feira, 4 de julho de 2025

.: Entrevista com Camila Anllelini: entre o amor e o ódio, ela decidiu escrever


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação

Se Freud tivesse Instagram, talvez stalkeasse Camila Anllelini com a mesma obsessão com que investigava a mente humana - não por voyeurismo, mas por pura fascinação diante de uma mulher que transforma trauma em literatura, dor em bisturi e amor materno em campo de batalha emocional. "De Amor e Outros Ódios" não é somente um livro. É uma ferida aberta que tem letra de filha machucada e psicanalista que observa.

O que Camila faz com essa matéria-prima íntima beira o indecente: ela convida o leitor a ler as cartas que nunca enviou, escancara a criança que quis consertar a mãe e ri - com ares de provocação - da coragem que levou anos para decantar. A personagem do livro escreve para a mãe. A autora escreve a partir da mãe. Mas e se essa mãe respondesse? E se fosse Freud o destinatário dessas confissões de filha? E se o amor não fosse apenas o oposto do ódio, mas a forma mais refinada desse sentimento? Nesta entrevista exclusiva, Camila Anllelini mergulha fundo.

Fala da psicanálise como quem se despe no divã, confessa contradições que a maioria sufoca com mantras de autoajuda, e revela que escrever - diferentemente de clinicar - é estar exposta, sem jaleco, sem diagnóstico e sem salvação. É um território em que não há frases de efeito, muito menos respostas terapêuticas. Só verdades perigosas, perguntas espinhosas e uma escritora que lembra o tempo todo que muitas vezes só dá para amar depois de sobreviver. Compre o livro "De Amor e Outros Ódios" neste link.


Resenhando.com - ⁠Sua personagem escreve cartas à mãe, mas se ela respondesse, que tipo de carta você acredita que ela escreveria de volta?
Camila Anllelini - Seriam bilhetes culpados, melancólicos. Porque essa é a mãe do "De Amor e Outros Ódios", a mãe que pôde ser, mas não de um lugar pacificado.


Resenhando.com - ⁠Você diz que precisou "esperar a ebulição da história" antes de escrever. Na sua vida, o que costuma explodir primeiro: o coração, o texto ou o silêncio?
Camila Anllelini - O silêncio, sempre o silêncio. O texto é um contorno aos "não ditos", o que pode emergir depois da decantação dos fatos que me capturam. O coração vem junto, a reboque, aos tropeços.


Resenhando.com - ⁠Em um mundo onde “ser mãe” ainda é cercado por idealizações tóxicas, seu livro é quase um ato político. Você acha que amar a mãe é, de certa forma, também sobreviver a ela?
Camila Anllelini - Sim. Se não sobrevivermos a ela, apesar do que nos aconteceu, não poderemos amá-la. Acredito que é preciso uma certa revolta pra se descolar da mãe ideal, essa que o sujeito enquanto filho ou filha deposita tantas expectativas, para podermos então entender quem somos além e apesar dela. Essa separação, quando bem sucedida, é uma das possibilidades para o amor.


Resenhando.com - ⁠Na sua escrita há psicanálise, dor e beleza. Já pensou que escrever pode ser mais arriscado do que clinicar? Algum texto seu já revelou algo que nem você sabia sobre si?
Camila Anllelini - Sem a menor sombra de dúvidas escrever é muito mais arriscado do que clinicar (risos). Na clínica, quem diz de si é o paciente. Na literatura, são os personagens dizendo da escritora. Com muita frequência, algo até então desconhecido se revela de mim. Escrever é lidar com um duplo.


Resenhando.com - ⁠Se Freud lesse seu livro, qual hipótese ele teria sobre sua personagem filha - e qual diagnóstico você daria a ele, caso ele fosse seu paciente?
Camila Anllelini - Aposto que Freud teria afeição pela personagem como teve com suas pacientes histéricas. Foi em nome delas que ele criou a psicanálise. A histérica não nega seu desejo, ela se implica no próprio sintoma, sendo capaz de fabricar um desejo para não ser satisfeito e assim se manter desejante. No deslizar entre um desejo e outro, ela vira especialista em denunciar a falta. A histérica tem um corpo que fala, que reivindica, e disso se constituem as histórias.


Resenhando.com - ⁠O que há de mais feio que você escreveu neste livro e decidiu manter?
Camila Anllelini - ”Eu achava que a minha mãe precisava de conserto”. Essa é uma posição infantil que não concebe a mãe como sujeito de si, como mulher, como ser desejante. Aos olhos da criança que escreveu isso por mim, a mãe é uma engrenagem que deve funcionar a serviço de suas leis, ou seja, nos moldes da sua demanda de amor.


Resenhando.com - ⁠Se a psicanálise é, muitas vezes, o exercício de escutar o indizível, o que você ainda não teve coragem de escrever sobre sua mãe - e o que ela talvez nunca tenha ousado ler em você?
Camila Anllelini - Tenho uma mãe que sempre abriu espaço para que eu dissesse, ainda que isso pudesse - e certamente eu o fiz - despedaçá-la. Foi dela que tive desde o início a permissão de dizer. Se tem alguém que me conhece no osso e me ama ainda assim, esse alguém é minha mãe.


Resenhando.com - ⁠Você diz que admirava a ideia de ter uma estante que precisasse de escada. Hoje, o que te faz subir escadas literárias: o desejo de ser lida ou o risco de não caber mais em si mesma?
Camila Anllelini - As duas coisas. O desejo de ser lida indubitavelmente me move degrau por degrau escada a cima, mesmo que eu acredite que ela nunca vai ter fim e que possivelmente terá. Mas o que possibilita que eu suba cada um desses degraus é a escrita. Ela precisa vir primeiro para que eu tenha o que levar comigo, e eu escrevo primordialmente porque, com frequência, não caibo em mim.


Resenhando.com - ⁠Você trabalha com contradições. Mas há alguma contradição que ainda a incomoda aceitar, mesmo sabendo que ela é inevitável?
Camila Anllelini - Todas. A aceitação não é sem incômodo, eu sou uma eterna inconformada. Faço perguntas, entro em conflitos e me pego querendo refazer a ordem do mundo. Mas saber que é inevitável é também um alento. Sem abrir espaço para a contradição a gente endurece, só consegue ver sempre a mesma rota de saída, isso não me interessa.


Resenhando.com - ⁠Se sua mãe nunca lesse esse livro, você ainda o escreveria da mesma forma? Ou a escrita só nasceu porque havia a chance - secreta ou desesperada - de que ela um dia o lesse?
Camila Anllelini - Esse livro foi escrito porque eu precisava escrevê-lo, nunca se sabe o que leva um escritor a correr tamanho risco. Não fui eu que escolhi, foi essa história que me escolheu para ser escrita. Por acaso, nela aparecia a figura da minha mãe. Agradeço ter podido fazer essa declaração a ela em vida e, além disso, sem imaginar que seria assim, essa história ter chegado aos leitores como um pedaço das suas próprias histórias. Desde a publicação essa têm sido uma grata surpresa.


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