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domingo, 14 de setembro de 2025

.: Péri e as "Poesias Vermelhas": versos nasceram onde a canção não chegava


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Rafael Nogueira

De Gal Costa a Margareth Menezes, muitos já deram voz às canções de Péri. Mas em "Poesias Vermelhas", ninguém canta por ele. O artista que sempre escreveu para ser ouvido agora escreve para ser lido - e talvez decifrado. São páginas que nasceram entre 2020 e 2021, quando a música não bastava e a poesia se tornou abrigo contra a enfermidade do mundo.

Cantor, compositor e produtor, Péri estreia na literatura com um livro breve o bastante para caber no bolso, mas insistente o suficiente para permanecer na memória. Os poemas do livro vibram em vermelho, mas também acolhem os azuis da melancolia, os cinzas das incertezas e até os beges dos dias comuns. É nessa paleta que a palavra encontra outra função: deixar de ser apenas letra de música e assumir o risco de ser poesia - íntima, inquieta e, sobretudo, livre. Compre o livro "Poesias Vermelhas", de Péri, neste link.


Resenhando.com - Você diz que agora pode se declarar oficialmente poeta. O que o impedia de fazer isso antes?
Péri - Porque até então, o que eu escrevia servia, em princípio, a só uma música. Tinha que corresponder a uma métrica musical, servia ao estilo, à forma, ao ritmo da música. Mesmo que, na minha percepção, a letra da música sempre existiu por si só, independente da música. Mas como para as pessoas, pelo menos, aquilo está associado à melodia, aquilo se transforma em canção. Então, a libertação foi poder escrever poesia sem necessariamente pensar em música. Isso foi uma libertação, uma forma boa de libertação.


Resenhando.com - “Poesias Vermelhas” nasceu fora da métrica musical. Se a canção fosse um cárcere, qual verso o libertou primeiro?
Péri - Olha, a libertação poética a que eu me refiro não quer dizer que a prisão em relação à métrica musical fosse uma coisa ruim. Era só uma questão de princípio, de rotina, de pensamento artístico. Então, a partir do momento que eu defini na minha cabeça, olhando a página em branco, "puxa, não é música, é outra coisa"... E poesia também não é literatura, é uma coisa diferente. É uma outra trincheira. E eu me vi liberto das amarras da métrica musical. Todos os versos me levaram pra frente.


Resenhando.com - Você cita Augusto de Campos como epígrafe. Se pudesse escolher outro poeta para duelar com você numa roda de improviso, quem seria?
Péri - Eu gosto muito de ouvir, não só ler, mas ouvir áudios e assistir vídeos do Darcy Ribeiro, um grande pensador do Brasil, foi também político, candidato a governador do Rio de Janeiro, na época, muitos anos atrás, acho que o Rio teria muito a ganhar se ele tivesse ganho, um grande educador, um grande pensador do Brasil, um grande defensor das causas democráticas e humanistas. E eu gostava do jeito dele falar. Então, pensar uma poesia minha no sentido político, ser declamada por Darcy Ribeiro seria uma honra.


Resenhando.com - Você fala do vermelho como símbolo da paixão e da resistência. Mas e quando a poesia é azul, cinza ou bege? Ela ainda o interessa?
Péri - Eu acho que esse sentimento de cores da poesia é do jeito que a gente acorda, é do jeito que a gente está aquele dia. Talvez quando o poeta põe para fora todos os seus sentimentos e resolve escrever alguma coisa, isso para mim é uma forma de cura. E o estado de espírito é fundamental. até quando o assunto não é livre quando existe um objeto literário vou escrever sobre tal assunto que está me comovendo no momento o dia que você escreve aquilo é fundamental para o desenrolar tanto é que a gente escreve depois depura muito vai afinando as palavras afinando os sentidos a sintaxe no outro dia muda de novo no outro dia muda de novo então a gente tem que publicar logo senão a gente fica mexendo sempre, porque os sentimentos se alternam sempre, a cada dia, se um dia faz sol, se um dia faz chuva, se um dia a gente acorda assim, se a gente acorda de um outro jeito, isso tudo influencia na nossa escrita. Por isso que quando se escreve, depois de burilar, é melhor publicar logo.


Resenhando.com - Entre o palco e a página, qual deixa você mais nu - o microfone ou o papel?
Péri - O papel é muito mais íntimo. O microfone a gente se expõe muito mais, né? Se expõe na voz, se expõe no que está cantando, se expõe o corpo, a alma, espíritos, né? Subir no palco, olhar para as pessoas. É uma sensação muito forte, é uma ligação muito forte, o artista com o público na relação do palco. Quando está no papel, aí é uma intimidade, entendeu? É quase como eu posso fazer o que eu quiser e não vou ser julgado, mesmo que alguém valer aquilo depois, você colocou aquilo no papel de uma forma tão íntima que o julgamento não importa das pessoas. O que importa é o exercício do que você fez, do que você pôs ali, do que você revelou. E mesmo assim você escreve poesia de uma forma que às vezes não se revela e fica ali o mistério para sempre, ou pelo menos por algum tempo.


Resenhando.com - Seu livro foi escrito entre 2020 e 2021. Que palavra o salvou durante a pandemia e que palavra você se recusa a escrever até hoje?
Péri - Essa época 2020, 2021, uma palavra muito triste que se repetia era a enfermidade, a enfermidade do mundo, a enfermidade das pessoas, a doença corroendo todas as coisas, os seres humanos, o seu pensamento, o seu comportamento, tanta gente sofrendo. Isso tem um impacto grande em qualquer obra artística e óbvio que teve na minha. E a emoção era tanta que só a música não foi capaz Então a poesia me salvou durante a pandemia Ela foi a que realmente conseguiu me libertar e me fazer expressar o que eu estava sentindo E também dar uma contribuição de sentimento, de esperança para quem estava sofrendo tanto, né?

Resenhando.com - Você já foi gravado por vozes como Gal Costa e Margareth Menezes. Se pudesse colocar uma das suas poesias na boca de alguém improvável - digamos, um político, um pastor ou um influencer - quem você escolheria?
Péri - Olha, Augusto é uma grande referência para mim, Augusto de Campos, a poesia concreta, junto com Décio Pignatari e Haroldo de Campos, sempre uma referência, uma descoberta, eu sempre estou descobrindo coisas novas, vendo a poesia concreta. E, além do mais, Augusto é um grande tradutor de outras obras, de outros artistas, um grande recriador, e ele me trouxe conhecimento da poesia do mundo. isso foi fantástico. Então, eu tenho uma referência muito forte em relação a ele como poeta e como recriador, tradutor. Mas eu pensaria também em Gregório de Matos, o baiano Boca do Inferno, porque é um dos primeiros que a gente tem notícia, escrevendo, fazendo poesia dentro de uma realidade do princípio de Salvador, do princípio da Bahia, do começo de tudo que a gente entende hoje como Salvador, como Bahia, como a classe dominante, a elite que comandava as coisas, a divisão com a religião. Gregório de Matos foi um banguardista.


Resenhando.com - A performance é parte do lançamento. Você acredita que a poesia hoje precisa de espetáculo para ser ouvida, ou é o leitor que ficou distraído demais para escutá-la em silêncio?
Péri - Hoje, com o advento das redes sociais, com a expansão das possibilidades de conexão de quem escreve para quem lê, se alargaram muito, é natural ter muitas feiras, muitos encontros em livrarias, fazer aproximação entre o público e o poeta, no caso, e ouvir o que ele tem a dizer e ouvir a forma que ele declama a sua poesia é um mapa do caminho para o leitor. Mas eu acho também que deve existir o momento do leitor sozinho, em silêncio para entender a poesia. Porque poesia, assim, você lê um dia, você entende uma coisa, se você lê uma semana depois, você vai entender outra, um ano depois, é uma outra poesia. Dez anos depois, acontece a primeira revelação uma vida inteira para você descobrir às vezes o sentido de um poema então, às vezes o silêncio a introspecção é importante e necessária.


Resenhando.com - Como seria uma playlist para acompanhar a leitura de “Poesias Vermelhas”? Tem mais Djavan, Fela Kuti ou silêncio mesmo?
Péri - Olha, eu não consigo ler poesia ouvindo música, principalmente se tiver letra, para mim não tem como. No máximo, um Devu-si, Eric Sati, Vila-Lobos, você ouve mais as melodias tocadas por instrumentos, não com letra, porque aí existe o conflito, você está fazendo o embate entre duas poesias, a que você está lendo e da letra da música que você está ouvindo, eu acho que não combina talvez o silêncio seja a melhor companhia no máximo uma música clássica.

Resenhando.com - Se “Poesias Vermelhas” fosse um corpo, o que ela tatuaria na pele, esconderia sob a roupa e gritaria na praça pública?
Péri - Acho que uma boa tatuagem seria meu sangue é vermelho e o seu também. Mostrando para todo mundo que nós todos somos iguais nesse pontinho azul perdido no meio do espaço. Somos uma obra maravilhosa da natureza, ao mesmo tempo somos tão pequenininhos e às vezes a gente se aborrece com coisas tão pequenininhas, a gente se apurrinha com minúsculas coisas, sem a menor importância. Acho que a gente tem que dar mais importância ao que nós somos de verdade, todos iguais. Pessoas passeando na poeira do espaço.

sábado, 13 de setembro de 2025

.: Editora Janela Amarela recoloca Julia Lopes de Almeida no mapa da literatura


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com.

Julia Lopes de Almeida nasceu em 1862 e atravessou o fim do século XIX e o início do XX como uma das escritoras mais ativas e influentes do Brasil. Jornalista, romancista, dramaturga, cronista e defensora do voto feminino, foi voz incômoda em uma sociedade marcada pelo patriarcado - e, ainda assim, acabou relegada ao esquecimento por décadas. Em 2025, 163 anos após ter nascido, a força da obra dessa artista retorna às mãos dos leitores graças ao trabalho da Janela Amarela Editora, comandada por Carol Engel e Ana Maria Leite Barbosa, que acaba de completar um feito inédito: reunir em catálogo todos os romances publicados em vida por Julia, além de novelas e livros infantis.

Mais do que reeditar, as editoras assumem uma missão: devolver Julia ao lugar de destaque que sempre lhe coube, sem que o gesto se limite a uma homenagem pontual ou simbólica. Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, Carol Engel fala sobre apagamento literário, silenciamento de vozes femininas, as escolhas editoriais que tornam a leitura de Julia acessível ao público contemporâneo e a atualidade inquietante de uma autora que, em 1902, já denunciava as falências morais e econômicas que ainda rondam o Brasil de 2025.


Resenhando.com - Julia Lopes de Almeida foi preterida na fundação da Academia Brasileira de Letras por ser mulher. Hoje, quando vemos homenagens tardias, você acha que estamos celebrando Julia ou apenas limpando a imagem de uma instituição que historicamente excluiu mulheres?
Carol Engel - Ao fazer esse tipo de análise, é importante levarmos em consideração o contexto, o local, a época. A sociedade brasileira de 1897 era marcada pelo patriarcalismo e pela exclusão da mulher da vida política, elas eram relegadas exclusivamente a vida doméstica. Partindo desse conhecimento, não é de estranhar que uma instituição criada naquele período seguisse os mesmos padrões sociais. Foi a sociedade que historicamente excluiu as mulheres, a ABL apenas espelhou o comportamento da época. Homenagens, sejam elas tardias ou não, são sempre válidas, principalmente quando usadas para demonstrar de admiração e respeito. É uma oportunidade de dar destaque a um nome/ uma personalidade que merece reconhecimento, fazer este nome, e seus feitos, conhecido por novas gerações. Qualquer homenagem que se faça à Julia Lopes de Almeida, que dê destaque ao seu trabalho e reverbere seu nome, é válido, desde que não seja um ação pontual, simbólica, mas uma ação contínua de perpetuação de seu nome, seu trabalho e sua arte.


Resenhando.com - O resgate de Julia passa pelo gesto editorial de atualizar ortografia e contextualizar termos. Mas até que ponto “modernizar” a autora não corre o risco de domesticar sua força original e a rebeldia de sua escrita?
Carol Engel - Há uma diferença entre modernizar a leitura e atualizar a ortografia. Modernizar seria trazer termos atuais para o texto, não trabalhamos desta forma, mantemos o texto original, integral. O que fazemos é atualizar a ortografia. A língua portuguesa mudou muito, não podemos publicar livros com “bibliotheca", “commentou", como eram escritos na época. Essa atualização não enfraquece a força da criação literária, mas garante uma leitura mais acessível. O mesmo trabalho já é feito em autores clássicos consagrados como Machado de Assis e José de Alencar, por exemplo. As notas de roda pé foram pensadas nos leitores contemporâneos menos habituados a leitura de textos clássicos, cujo vocabulário pode, muitas vezes, criar um distanciamento. Servem para contextualizar e enriquecer a experiência de leitura, para que o leitor mantenha o interesse no texto, mesmo que se depare com algum termo ou palavra que desconheça.


Resenhando.com - O esquecimento de Julia e de tantas autoras brasileiras não foi acidental. Quem lucrou com esse apagamento literário, e quem perde quando suas vozes voltam a circular?
Carol Engel - Adoraria descobrir essa resposta. Espero que o trabalho de resgate literário que temos feito estimule pesquisadores a desvendar esse mistério e descobrir os motivos deste apagamento. De maneira bastante simplista podemos verificar uma consolidação de um mercado editorial calcado em vozes exclusivamente masculinas. O que certo, é que podemos é definir quem perdeu com esse apagamento: perderam os leitores, privados desta diversidade de vozes; perderam as mulheres, que não viam retratada na literatura, modelos e referencias escritos por outras mulheres, e perdeu também a proporia história da literatura brasileira, que ficou empobrecida sem estes registros.


Resenhando.com - Julia defendia voto feminino, acesso popular à cultura, educação para mulheres e ainda escrevia crônicas sobre jardinagem. O que isso revela sobre a multiplicidade da escritora e a nossa mania de reduzir autoras a uma única faceta?
Carol Engel - A tendência reducionista não é “privilégio” da literatura, abarca muitos setores e ainda hoje lutamos contra ele. Julia, com sua multiplicidade dialogava com diferentes públicos, sem esforço, mostrava que não precisava ser apenas “OU”, era mulher E escritora E jornalista E esposa E mãe. Que nos inspiremos em Julia e aceitemos as diferentes facetas, nossas e dos outros. Não precisamos ser apenas um, mas precisamos respeitar os múltiplos que podemos ser.


Resenhando.com - Ao reeditar todos os romances de Julia, a Janela Amarela realizou um feito inédito. Mas qual foi o momento mais surpreendente do processo: descobrir a força da obra ou perceber o abismo da indiferença cultural que a engoliu por décadas?
Carol Engel - Cada nova obra de Julia que trabalhamos foi uma surpresa. Por variados motivos: A dificuldade de acesso de determinados títulos. A variedade de temas. A composição das personagens e suas complexidades, e mesclado a tudo isso, o inacreditável apagamento do nome da autora da história, da história literária brasileira.


Resenhando.com - Quando se fala em “resgate literário”, muitas vezes pensamos em arqueologia. Mas Julia não parece uma autora morta: as personagens femininas dela e as críticas sociais ainda respiram no texto da autora. Você diria que Julia foi “apagada” ou que ela sempre esteve à espreita, esperando ser relida?
Carol Engel - Essa pergunta é curiosa e mostra, do ponto de vista literário, como a bagagem do leitor influência na recepção da mensagem. Quando falamos de “resgate literário” focamos mais na ideia de recuperação e liberdade, mas é interessante perceber que outros percebem pelo viés arqueológico... curioso, né!? Acredito que o desejo de todo o escritor é ser lido, e com Julia não pode ser diferente. Ainda que tenha sido “temporariamente apagada” a força de sua escrita manteve-se latente e agora pode ser redescoberta.


Resenhando.com - A comparação com Jane Austen e George Sand é recorrente. Mas será que não é uma violência comparar Julia apenas pelo viés europeu, em vez de inseri-la numa tradição afro-latino-americana de escritoras invisibilizadas?
Carol Engel - Não diria compara, mas equiparar, em qualidade, talento e produção. Infelizmente, precisamos dar como referência nomes europeus para exemplificar os talentos importantes de nossa literatura que foram esquecidos e silenciados. O ideal, e assim espero, é que, num futuro breve, possamos dar como referência nomes como o de Julia como exemplo referencial literário. Será maravilhoso ouvir: “o texto dela é marcante como os da Julia Lopes de Almeida...”, “o perfil deste personagem lembra muito os da Chrysanthème...” ou ainda “segue um estilo da Ignez Sabino...” mas para isso estas escritoras precisam voltar a ser conhecidas e reconhecidas por suas criações. Este é o trabalho que está acontecendo agora, com o resgate e relançamento destas obras e destas autoras.


Resenhando.com - Se Julia fosse publicada hoje, em pleno século XXI, com redes sociais, podcasts e clubes de leitura feministas, você acredita que ela seria uma estrela literária ou ainda assim encontraria os mesmos muros de silenciamento?
Carol Engel - Como sonhar é de graça, às vezes me pego imaginando como cada uma das autoras que redescobrimos seria se vivessem nos tempos atuais. É um exercício curioso... No caso de Julia, acho que ela seria uma estrela literária, sim, mas adaptada aos novos formatos, não ia se limitar apenas a publicação de livros, as redes sociais permitiriam uma interação estreita com seus leitores. Teria uma newsletter, onde ia publicar crônicas, e um podcast, para debater com convidados sobre temas da atualidade. Continuaria falando sem medo, batalhando pelas pautas que defendia... até por isso, às vezes, seria cancelada, mas sem medo continuaria defendendo suas ideias.


Resenhando.com - Há quem diga que reeditar Julia é um ato de reparação histórica. Mas reparação para quem? Para Julia, que já não está aqui, ou para os leitores que foram privados de conhecê-la?
Carol Engel - Para Julia é uma reparação simbólica, à sua memória. Em vida, como escritora, ela teve reconhecimento, o silenciamento de sua obra aconteceu depois de sua morte. É, portanto, uma reparação à nossa história da literária e aos leitores que podem, agora, ter acesso a este conteúdo.


Resenhando.com - Julia falava de falência econômica e moral em 1902. O Brasil de 2025, atolado em crises sucessivas, ainda não saiu da mesma encruzilhada? O que a leitura dela nos diz sobre o eterno retorno das nossas ruínas sociais?
Carol Engel - Romances, ainda que sejam histórias ficcionais, são um retrato de nossa sociedade e registros como os que Julia Lopes de Almeida faz em seus livros, servem como uma ferramenta crítica, nos lembra o quanto ainda temos que mudar, melhorar. Muitos dos problemas de outrora seguem nos assombrando, muito ainda precisa ser feito. Se as crises econômicas mudam, as questões morais parecem apenas se ajustar aos novos tempos. As obras de Julia podem ser vistas como uma sinal de alerta, será que 100 anos não foram suficientes para corrigir velhas falhas e entender com ser ou fazer melhor?

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

.: Peças de Ariano Suassuna ganham leitura dramática no Sesc Bom Retiro


Figura central do Movimento Armorial, Ariano Suassuna dedicou-se a valorizar a cultura popular do Nordeste. Foto: Laura Rosenthal


"Um Natal Perfeito", "O Seguro", "O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna", "A Caseira e a Catarina" são quatro das peças curtas de Ariano Suassuna ganham leitura dramática nesta terça-feira, dia 26 de agosto, às 19h00, no Teatro do Sesc Bom Retiro. A programação é a quarta data do Ciclo 7 Leituras deste ano. Com direção de Marco Antônio Pâmio, o elenco conta com Agnes Zuliani, Ana Cecília Costa, Bete Dorgam, Fábio Espósito, Joaz Campos, Josemir Kowalick, Rafael Losso, Walter Breda.

 Desde 2024 as leituras acontecem no Teatro do Sesc Bom Retiro. Nesta edição, o 7 Leituras completa 19 anos de existência em ciclo todo dedicado à obra de Ariano Suassuna, apresentando alguns de seus textos mais populares. A concepção geral do projeto é da diretora Eugenia Thereza de Andrade. Ao longo desses anos, o projeto traz em seu histórico mais de 120 peças, dirigidas por 54 diretores, contando com a participação de 540 atores e atrizes, num projeto contínuo e longevo que já é tradição no calendário cultural da cidade.


Sobre o autor
Ariano Suassuna
(1927-2014) foi um profícuo dramaturgo, romancista e poeta brasileiro, nascido em João Pessoa, Paraíba. Figura central do Movimento Armorial, dedicou-se a valorizar a cultura popular do Nordeste. A obra mais aclamada do autor, "Auto da Compadecida" (1955), é uma peça teatral que mistura elementos da tradição popular, do barroco e da literatura de cordel, tornando-se um clássico do teatro brasileiro.

Além de "Auto da Compadecida", Suassuna escreveu outras peças importantes como "O Santo e a Porca" (1957) e "A Pena e a Lei" (1959). No campo da literatura, destacam-se os romances "A Pedra do Reino" (1971) e "O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta" (1971). Suas obras são marcadas pelo humor, pela crítica social e pela exaltação da cultura nordestina. Ariano Suassuna faleceu no Recife, Pernambuco, deixando um legado cultural imensurável para o Brasil.


Ficha técnica
Ciclo 7 Leituras - 19º Ano - Homenagem a Ariano Suassuna  
Concepção e direção geral: Eugênia Thereza de Andrade
Pesquisa e seleção de textos: Eugênia de Andrade e Marco Antônio Pâmio

“Entremeios” de Ariano Suassuna
Direção: Marco Antônio Pâmio
Elenco: Agner Zuliani, Ana Cecília Costa, Bete Dorgam, Fàbio Espósito, Joaz Campos, Josemir Kowalick, Rafael Losso, Walter Breda
Ambientação cenográfica e figurino: Equipe Jogo Estúdio
Iluminação: Luana Della Crist
Sonoplasta: Deivison Nunes
Fotos: Edson Kumasaka
Assistente de palco: Taci Glasberg
Produção: Messias Lima / Jogo Estúdio


Serviço

Projeto “7 Leituras – Homenagem a Ariano Suassuna – 19º Ano”  
Datas: 26 de agosto, 30 de setembro, 28 de outubro e 25 de novembro, terças, às 19h00.
Local: teatro (297 lugares). 12 anos.
Grátis, retirada de ingresso 1h antes.

Estacionamento do Sesc Bom Retiro (Vagas limitadas)
O estacionamento do Sesc oferece espaço para pessoas com necessidades especiais e bicicletário. A capacidade do estacionamento é limitada. Os valores são cobrados igualmente para carros e motos. Entrada: Alameda Cleveland, 529. Valores: R$8 a primeira hora e R$3 por hora adicional (Credencial Plena). R$17 a primeira hora e R$4 por hora adicional (Outros). Valores para o público de espetáculos: R$ 11 (Credencial Plena). R$ 21 (Outros). Horários: Terça a sexta: 9h às 20h. Sábado: 10h às 20h. Domingo: 10h às 18h. Importante: em dias de evento à noite no teatro, o estacionamento funciona até o término da apresentação.

Transporte gratuito
O Sesc Bom Retiro oferece transporte gratuito circular partindo da Estação da Luz. O embarque e desembarque ocorre na saída CPTM/José Paulino/Praça da Luz.
Consulte os horários disponíveis de acordo com a programação.
Fique atento se for utilizar aplicativos de transporte particular para vir ao Sesc Bom Retiro! É preciso escrever o endereço completo no destino, Alameda Nothmann, 185, caso contrário o aplicativo informará outra rota/destino.

sábado, 23 de agosto de 2025

.: Contos inéditos de Josué Guimarães são descobertos em acervo


Três textos nunca publicados em seus livros estão disponíveis na curadoria digital do projeto. Foto: Camila Guedes / UPF


O Acervo Literário de Josué Guimarães (Aljog), localizado na Universidade de Passo Fundo (UPF), no Rio Grande do Sul, encontrou três contos inéditos do escritor gaúcho, além de dez textos pouco conhecidos, durante a organização de seus manuscritos. A descoberta foi feita pelo doutorando Israel Portela de Farias, bolsista do Aljog e integrante do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), no trabalho de pesquisa e catalogação do material.

Escritos entre as décadas de 1970 e 1980, os textos estão disponíveis no site da curadoria digital do projeto (curadoriadigitaljosueguimaraes.org). Dois contos já estão completos, e o terceiro deve ser finalizado até o fim de 2025, segundo o coordenador do Acervo, professor Miguel Rettenmaier da Silva. “Alguns textos não conseguimos localizar em nenhuma publicação do Josué Guimarães. É difícil trabalhar com a questão do inédito, porque muitas revistas da época já não existem. Por isso, chamamos de ‘prováveis inéditos’”, explica Israel.

Cada conto é disponibilizado na curadoria digital em quatro camadas: a primeira é o texto-base, ou seja, como foi inicialmente escrito por Josué; a segunda traz as correções feitas pelo próprio autor, geralmente com canetas vermelha e verde; a terceira inclui os retoques finais a lápis; e a última é a versão final. Essas camadas revelam diferentes estágios do processo criativo do autor, possibilitando também a análise de possíveis versões alternativas das histórias. A curadoria digital permite à população a leitura e a interpretação de obras selecionadas do escritor. “Realizamos esse trabalho para que os leitores possam acompanhar as obras e não fiquem somente no acervo, preservando a memória do Josué Guimarães com esses textos inéditos”, afirma o doutorando.

O primeiro conto, intitulado "A Dramática História de Uma Dama", chamou a atenção do Aljog por não ser encontrado em nenhuma publicação conhecida do autor. O texto foi editado durante a dissertação de mestrado de Israel. Uma carta enviada por Josué à revista Status, na qual ele solicita a possível publicação do conto, reforça a hipótese de que a obra era inédita e pensada com uma abordagem mais erótica, característica da linha editorial da revista.

Provavelmente esse material não foi publicado. Como era na década de 1970, o conto envolvia questões sobre a dominância do homem com a mulher e questões de agressões. “Josué Guimarães chegou a trocar algumas palavras também, como, por exemplo, sexo por jogo de damas”, revela Israel.

O segundo conto, intitulado "O Mágico", foi encontrado entre os manuscritos de um dos cadernos de anotações do escritor. Com oito páginas escritas frente e verso, o texto apresenta uma narrativa irônica e carregada de crítica social: um mágico preso provoca desordem entre os detentos com truques que fazem aparecer comida, sendo punido com isolamento na solitária, onde morre de fome.

O terceiro e último conto, "A Árvore de Natal", está 90% editado. Com tom irônico e cômico, o texto satiriza um homem que monta a sua árvore de Natal e não consegue mais se desfazer dela. Ele briga com o síndico do prédio por causa da árvore e acaba a jogando pela janela. “Já estou trabalhando há três anos nesse documento, mas depois que é finalizado fica muito bonito”, resume o bolsista. O site da curadoria digital também disponibiliza correspondências de Guimarães com outros escritores, como Mario Quintana e Erico Verissimo, e o jornalista e humorista Millôr Fernandes. Compre os livros de Josué Guimarães neste link.


Sobre o acervo
O Acervo Literário de Josué Guimarães está sob guarda da Universidade de Passo Fundo desde 2007. O espaço reúne mais de 8 mil itens, como objetos pessoais, máquinas de datilografia, originais de obras, exemplares de correspondência, entre outros, doados pela família do escritor.

Josué Guimarães nasceu em 7 de janeiro de 1921, na cidade gaúcha de São Jerônimo. Antes de se tornar escritor de romances, foi jornalista. Ainda jovem, mudou-se para São Paulo à procura de emprego – e foi lá que começou a trabalhar como redator e ilustrador. Ao longo da vida, também foi repórter, cronista, comentarista e diagramador. O professor Miguel Rettenmaier destaca que Guimarães viveu intensamente a vida política e foi militante da redemocratização.

O autor era conhecido por suas crônicas de cunho político. Suas obras foram publicadas entre 1970 e 1987. Ele faleceu em 23 de março de 1986, em Porto Alegre. Entre seus principais escritos estão: "A Ferro e Fogo" (1972), "Depois do Último Trem" (1973), "É Tarde para Saber" (1977), "Os Tambores Silenciosos" (1977), "Dona Anja" (1978) e "Camilo Mortágua" (1980).

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

.: Isis Valverde lança nova coletânea "Vermelho Rubro" de poemas autorais


Com o lançamento de "Vermelho Rubro", a atriz Isis Valverde mostra-se uma autora sensível, capaz de transformar dores, desilusões amorosas, memórias familiares e inquietações existenciais em poesia sincera, densa, delicada e sempre humana. Publicada pelo Citadel Grupo Editorial, a coletânea reúne poemas escritos ao longo de cinco anos e é dedicada a Rosalba Nable, mãe da artista, que venceu o câncer de mama após intensas sessões de quimio e radioterapia em 2024. 

Famosa por papéis marcantes na televisão e no cinema, Isis revisita episódios pessoais e reflete sobre laços afetivos por meio de uma escrita direta, e impactante. Cada composição ajuda a formar um mosaico emocional que revela a mãe, a filha, a esposa e, acima de tudo, a mulher real por trás da figura pública exposta aos holofotes. 

No prefácio, Nelson Motta descreve a obra como um “compilado de confissões poéticas de uma jovem estrela pop que todos imaginam levar uma vida perfeita de Instagram”. Nessa linha, os poemas desmontam a ilusão da perfeição por trás da fama e conduzem o leitor pelos escombros de uma alma que sangra e floresce. 

Com coragem literária, Isis se desnuda e compartilha sentimentos muitas vezes silenciados. Inseguranças, fracassos, saudades mal resolvidas, mágoas guardadas e desejos não ditos são explorados. Por outro lado, também celebra a felicidade, a liberdade criativa, o empoderamento feminino e a euforia de se permitir sentir plenamente. “Escrevo quando a dor aperta ou quando a alegria transborda”, explica. 

Ela faz questão, porém, de esclarecer que o livro não é um espelho fiel de sua vivência ou um diário confessional, mas uma travessia lírica por emoções profundas, fantasias e cicatrizes transformadas em arte. Ao definir a própria escrita como um tipo de realismo fantástico, ela se permite transitar entre a realidade e a ficção. 

O lançamento aborda temas universais como o medo da perda, a solidão que resta após um fim, o anseio por um amor acolhedor, o envelhecimento, as transformações do corpo e da alma. A saudade da infância em Aiuruoca, cidade natal no interior de Minas Gerais, aparece como um refúgio afetivo onde ainda se pode experimentar a leveza de outrora. 

Nesse novo compilado de textos, a estrela reforça o hábito de escrever como forma de resgate, como válvula de escape e instrumento terapêutico. Ao se dedicar às palavras, Isis se reconecta com a essência da arte: tocar o outro com o que há de mais verdadeiro. Mesmo nas passagens mais dolorosas, Isis não levanta muros de lamentos, mas constrói pontes de cura.  

Com título inspirado na intensidade sanguínea que permeia cada página, "Vermelho Rubro" convida à vulnerabilidade, à introspecção e à aceitação da beleza imperfeita. Ao dar voz a sentimentos tão comuns, mas frequentemente calados, Isis Valverde entrega um livro que sangra, sim, mas também pulsa com força vital.


Sobre a autora
Isis Valverde
nasceu em Aiuruoca, no sul de Minas Gerais, em 1987. Ainda jovem, trabalhou como modelo e participou de campanhas publicitárias. Estreou como atriz em 2006, na novela Sinhá Moça, da Rede Globo. De lá para cá, já participou de mais de uma dezena de outras novelas, minisséries,e filmes. Por seu trabalho, recebeu diversos prêmios. Mãe de Rael e casada com Marcus Buaiz, Isis é autora dos livros “Camélias” e “Vermelho Rubro”. Foto: Hick Duarte

domingo, 17 de agosto de 2025

.: Entrevista: músico, Péri lança “Poesias Vermelhas” e expõe a nudez da palavra


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Rafael Nogueira

Há artistas que atravessam linguagens como quem muda de rua e sem medo do que vem na esquina. Péri é um desses. Cantor, compositor, produtor e agora, oficialmente, poeta, ele estreia na literatura com "Poesias Vermelhas", livro de 33 páginas que cabe no bolso, mas insiste em ocupar a cabeça por dias. São versos de resistência, desejo e liberdade que passeiam entre o quintal baiano e as esquinas paulistanas, com lirismo ora delicado, ora de combate.

Nesta conversa, reproduzida com exclusividade para o portal Resenhando.com, Péri fala sobre a cor que nomeia o livro, a travessia entre palco e papel, a herança concreta de Augusto de Campos e o que muda quando a música dá lugar ao silêncio. O resultado é um retrato sem retoques de um artista múltiplo, que agora também encontra na poesia um território para provocar, acolher e incendiar.  Compre o livro "Poesias Vermelhas", de Péri, neste link.


Resenhando.com - Você diz que agora pode se declarar oficialmente poeta. O que o impedia de fazer isso antes?
Péri - Porque até então, o que eu escrevia servia, em princípio, a só uma música. Tinha que corresponder a uma métrica musical, servia ao estilo, à forma, ao ritmo da música. Mesmo que, na minha percepção, a letra da música sempre existiu por si só, independente da música. Mas como para as pessoas, pelo menos, aquilo está associado à melodia, aquilo se transforma em canção. Então, a libertação foi poder escrever poesia sem necessariamente pensar em música. Isso foi uma libertação, uma forma boa de libertação.


Resenhando.com - “Poesias Vermelhas” nasceu fora da métrica musical. Se a canção fosse um cárcere, qual verso o libertou primeiro?
Péri - Olha, a libertação poética a que eu me refiro não quer dizer que a prisão em relação à métrica musical fosse uma coisa ruim. Era só uma questão de princípio, de rotina, de pensamento artístico. Então, a partir do momento que eu defini na minha cabeça, olhando a página em branco, puxa, não é música, é outra coisa... E poesia também não é literatura... É uma coisa diferente... É uma outra trincheira... E eu me vi liberto das amarras da métrica musical. Todos os versos me levaram pra frente.


Resenhando.com - Você cita Augusto de Campos como epígrafe. Se pudesse escolher outro poeta para duelar com você numa roda de improviso, quem seria?
Péri - Eu gosto muito de ouvir, não só ler, mas ouvir áudios e assistir vídeos do Darcy Ribeiro, um grande pensador do Brasil, foi também político, candidato a governador do Rio de Janeiro, na época, muitos anos atrás. O Rio teria muito a ganhar se ele tivesse ganho, um grande educador, um grande pensador do Brasil, um grande defensor das causas democráticas e humanistas. E eu gostava do jeito dele falar. Então, pensar uma poesia minha no sentido político, ser declamada por Darcy Ribeiro seria uma honra.


Resenhando.com - Você fala do vermelho como símbolo da paixão e da resistência. Mas e quando a poesia é azul, cinza ou bege? Ela ainda o interessa?
Péri - Esse sentimento de cores da poesia é do jeito que a gente acorda, é do jeito que a gente está aquele dia. Talvez quando o poeta põe para fora todos os seus sentimentos e resolve escrever alguma coisa, isso para mim é uma forma de cura. E o estado de espírito é fundamental. até quando o assunto não é livre quando existe um objeto literário vou escrever sobre tal assunto que está me comovendo no momento o dia que você escreve aquilo é fundamental para o desenrolar tanto é que a gente escreve depois depura muito vai afinando as palavras afinando os sentidos a sintaxe no outro dia muda de novo no outro dia muda de novo então a gente tem que publicar logo senão a gente fica mexendo sempre, porque os sentimentos se alternam sempre, a cada dia, se um dia faz sol, se um dia faz chuva, se um dia a gente acorda assim, se a gente acorda de um outro jeito, isso tudo influencia na nossa escrita. Por isso que quando se escreve, depois de burilar, é melhor publicar logo.


Resenhando.com - Entre o palco e a página, qual deixa você mais nu - o microfone ou o papel?
Péri - Hoje, com o advento das redes sociais, com a expansão das possibilidades de conexão de quem escreve para quem lê, se alargaram muito, é natural ter muitas feiras, muitos encontros em livrarias, fazer aproximação entre o público e o poeta, no caso, e ouvir o que ele tem a dizer e ouvir a forma que ele declama a sua poesia é um mapa do caminho para o leitor. Mas eu acho também que deve existir o momento do leitor sozinho, em silêncio para entender a poesia. Porque poesia, assim, você lê um dia, você entende uma coisa, se você lê uma semana depois, você vai entender outra, um ano depois, é uma outra poesia. Dez anos depois, acontece a primeira revelação uma vida inteira para você descobrir às vezes o sentido de um poema então, às vezes o silêncio a introspecção é importante e necessária.


Resenhando.com - Seu livro foi escrito entre 2020 e 2021. Que palavra o salvou durante a pandemia e que palavra você se recusa a escrever até hoje?
Péri -  Essa época 2020, 2021, uma palavra muito triste que se repetia era a "enfermidade": a enfermidade do mundo, a enfermidade das pessoas, a doença corroendo todas as coisas, os seres humanos, o seu pensamento, o seu comportamento, tanta gente sofrendo. Isso tem um impacto grande em qualquer obra artística e óbvio que teve na minha. E a emoção era tanta que só a música não foi capaz. Então, a poesia me salvou durante a pandemia. Ela foi a que realmente conseguiu me libertar E me fazer expressar o que eu estava sentindo E também dar uma contribuição de sentimento, de esperança para quem estava sofrendo tanto, né?


Resenhando.com - Você já foi gravado por vozes como Gal Costa e Margareth Menezes. Se pudesse colocar uma das suas poesias na boca de alguém improvável - digamos, um político, um pastor ou um influencer - quem você escolheria?
Péri - Olha, Augusto de Campos é uma grande referência para mim, a poesia concreta, junto com Décio Pignatari e Haroldo de Campos, sempre uma referência, uma descoberta, eu sempre estou descobrindo coisas novas, vendo a poesia concreta. E, além do mais, Augusto é um grande tradutor de outras obras, de outros artistas, um grande recriador, e ele me trouxe conhecimento da poesia do mundo. isso foi fantástico. Então, eu tenho uma referência muito forte em relação a ele como poeta e como recriador, tradutor. Mas eu pensaria também em Gregório de Matos, o baiano Boca do Inferno, porque é um dos primeiros que a gente tem notícia, escrevendo, fazendo poesia dentro de uma realidade do princípio de Salvador, do princípio da Bahia, do começo de tudo que a gente entende hoje como Salvador, como Bahia, como a classe dominante, a elite que comandava as coisas, a divisão com a religião. Gregório de Matos foi um vanguardista.


Resenhando.com - A performance é parte do lançamento. Você acredita que a poesia hoje precisa de espetáculo para ser ouvida, ou é o leitor que ficou distraído demais para escutá-la em silêncio?
Péri - O papel é muito mais íntimo. O microfone a gente se expõe muito mais, né? Se expõe na voz, se expõe no que está cantando, se expõe o corpo, a alma, espíritos, né? Subir no palco, olhar para as pessoas. É uma sensação muito forte, é uma ligação muito forte, o artista com o público na relação do palco. Quando está no papel, aí é uma intimidade, entendeu? É quase como eu posso fazer o que eu quiser e não vou ser julgado, mesmo que alguém valer aquilo depois, você colocou aquilo no papel de uma forma tão íntima que o julgamento não importa das pessoas. O que importa é o exercício do que você fez, do que você pôs ali, do que você revelou. E mesmo assim você escreve poesia de uma forma que às vezes não se revela e fica ali o mistério para sempre, ou pelo menos por algum tempo.


Resenhando.com - Como seria uma playlist para acompanhar a leitura de “Poesias Vermelhas”? Tem mais Djavan, Fela Kuti ou silêncio mesmo?
Péri - Olha, eu não consigo ler poesia ouvindo música, principalmente se tiver letra, para mim não tem como. No máximo, um Devu-si, Eric Sati, Vila-Lobos, você ouve mais as melodias tocadas por instrumentos, não com letra, porque aí existe o conflito, você está fazendo o embate entre duas poesias, a que você está lendo e da letra da música que você está ouvindo, eu acho que não combina talvez o silêncio seja a melhor companhia no máximo uma música clássica.


Resenhando.com - Se “Poesias Vermelhas” fosse um corpo, o que ela tatuaria na pele, esconderia sob a roupa e gritaria na praça pública?
Péri - Uma boa tatuagem seria: "meu sangue é vermelho e o seu também". Mostrando para todo mundo que nós todos somos iguais nesse pontinho azul perdido no meio do espaço. Somos uma obra maravilhosa da natureza, ao mesmo tempo somos tão pequenininhos e às vezes a gente se aborrece com coisas tão pequenininhas, a gente se aporrinha com minúsculas coisas, sem a menor importância. Acho que a gente tem que dar mais importância ao que nós somos de verdade, todos iguais. Pessoas passeando na poeira do espaço.







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sexta-feira, 15 de agosto de 2025

.: Jarid Arraes rompe o silêncio na obra mais pessoal e corajosa da carreira


A autora Jarid Arraes enfrenta dores do passado neste volume, a obra mais pessoal da autora até então, dedicando a voz poética a um tema doloroso. Foto: divulgação
 


Em "Caminho para o Grito", uma das autoras mais notáveis da literatura brasileira contemporânea rompe o silêncio e dedica sua voz poética a um tema doloroso. No livro lançado pela editora Alfaguara, Jarid Arraes enfrenta dores do passado neste volume, a obra mais pessoal da autora até então, dedicando a voz poética a um tema doloroso: o abuso sexual, a pedofilia e marcas profundas de uma vida.

Dividido em três partes que acompanham o amadurecimento - da infância vulnerável à maturidade reflexiva -, o livro traça um percurso íntimo de elaboração do trauma, no qual cada verso é um passo rumo à libertação. Não é uma leitura fácil, nem pretende ser. É um convite para encarar as feridas abertas pela violência de gênero, pelo abuso infantil e pelo machismo estrutural. Compre o livro "Caminho para o Grito", de Jarid Arraes, neste link.


Relato de Jarid Arraes sobre o processo de escrita de "Caminho para o Grito"
Este não é um texto qualquer sobre processo criativo. A escrita do meu novo livro envolve um passeio de trem-fantasma pela casa de horrores que é o meu interior. Não esqueça que gritar faz parte da experiência. Era uma quinta-feira, bem no meio da tarde. Na tela do computador, as cenas de "Imaculada", com Sydney Sweeney, seguiam sem interrupções. 

Não foi o primeiro filme de horror que vi em 2024, mas foi o primeiro que registrei na minha conta anônima do Letterboxd. A única coisa que me interessava era assistir a filmes de horror, meu gênero favorito. Todos os dias. Não conseguia trabalhar. Acordava de qualquer jeito, caminhava alguns passos do quarto ao banheiro e do banheiro ao escritório, clicava no play, avaliava com estrelinhas, próximo, clicava no play, repetia. Entre os dias 5 e 31 de maio, assisti a 41 filmes de horror. Nos intervalos, dormi.  

Lembro pouquíssimo de 2024. Depois que a crise depressiva começou, tudo ficou borrado. Acredito que fiquei em estado de dissociação na maior parte do tempo. Consigo resgatar uma memória do dia em que assisti "Imaculada": pela manhã, na terapia, eu disse “ontem me questionei, por algumas horas, se eu era uma pessoa real”. Quase no final da sessão, desabafei: “o que me deixa mais incrédula é que ele tenha coragem de me seguir com o perfil pessoal”.  

Ele? Um pedófilo, hoje com mais de 50 anos, que me enviou pornografia infantil ao mesmo tempo que me contava ter tomado o Chá Hoasca durante uma cerimônia de sua religião, União do Vegetal, e que a bebida teria mostrado um sonho no qual a polícia entrava em sua casa, pegava seu computador e o prendia. “Eu tenho que parar” foi a última coisa que digitou no chat antes de mandar fotos que não pedi e abri sem saber do conteúdo. Eu tinha 12 anos. 

Depois de relatar a situação para minha psicóloga, abri o bloco de notas do celular e escrevi o poema windows xp, que agora faz parte do meu novo livro, intitulado "Caminho para o Grito". Em 2003, conheci esse homem, que vou chamar de Antônio, pela internet, num canal de conversas da minha cidade. Ele parecia um cara gente boa, tinha ótima reputação, podia ser considerado bonito, nem sequer se enquadrava na ideia do predador esquisito e solitário. Em pouquíssimo tempo, já tínhamos vários amigos em comum, frequentávamos os mesmos lugares e, sim, estava tudo errado. 

Eu tinha 12 anos, passava meus finais de semana em ambientes cheios de adultos, bebia e escutava o tempo inteiro que parecia ser mais velha e madura para minha idade. Quando eu e Antônio nos encontramos pessoalmente pela primeira vez, ele conversou comigo sobre música por cerca de 2 horas antes de me chamar para passear no seu carro e dirigir até uma estrada de terra no meio do nada. Por muitos anos, não admiti que Antônio também tinha sido um dos homens que abusou de mim. Aceitar esse fato me obrigaria a encarar outras coisas profundamente dolorosas, então evitei até quando pude.  

No entanto, cerca de duas semanas antes de ser seguida por Antônio no Instagram, no dia em que cheguei em Manaus para participar como convidada do cruzeiro literário "Navegar é Preciso", recebi uma mensagem de um homem que vou chamar de José. Na mensagem, ele me chamou de “potranca” e me convidou para encontrá-lo pessoalmente. Demorei um pouquinho para ligar os pontos, já que, pelas fotos, ele estava bem mais velho e eu jamais imaginaria que ele estaria morando em Manaus. Quando José me estuprou, eu tinha 13 anos e ele tinha 42.  

Toda a questão é que, num intervalo de poucas semanas, Antônio e José apareceram de novo na minha vida. E eu, aos 33 anos, não suportei. "Caminho para o Grito" foi escrito durante os meses que vieram depois desses impactos. Eu não sei dizer em que dia a crise depressiva “começou”, não sei detalhar muitas coisas devido ao intenso estado de dissociação, e até escrever este texto - sim, este aqui que você está lendo agora - eu não sabia o que havia desencadeado todo o sofrimento que vivi em 2024. Eu lembrava da maratona sem fim de filmes de horror e das noites escrevendo poemas e poemas sem nenhum objetivo consciente, até perceber que quase todos eles falavam sobre como foi ter sido vítima de pedofilia dos 3 aos 14 anos.  

Ao perceber o que meu corpo estava fazendo, como ele estava inflamado, expurgando o que precisava expulsar, lutando para se manter vivo, reuni os poemas que estavam interligados, apresentei para minha editora na Alfaguara, falei que aquilo tudo era minha história real e perguntei se queriam publicar.  Escrever mais, a partir de então com intencionalidade para construir uma obra que é uma narrativa, desde a menina de três anos até a mulher de 33 que por muito pouco não escolheu morrer, não foi a parte mais difícil. 

Hoje sei que o processo de criação de "Caminho para o Grito" era a manifestação literária de algo que acontecia no meu corpo inteiro: enquanto eu expurgava o trauma, também tentava tratar uma mastite, uma infecção no seio direito, que me fazia chorar de dor, demorou meses para ser curada e deixou uma baita cicatriz. Então quando afirmo que escrever não foi a parte mais difícil, quero dizer que reconheço como meu corpo lutou por mim.

Mesmo com as infecções, ao longo dos meses em que não consegui fazer nada além de sobreviver dia após dia dentro de um quarto escuro, quando eu ainda não entendia por que estava escrevendo, minha mente me protegeu da melhor maneira alcançável e, à medida que a infecção física era despejada do meu corpo, minha criatividade me ajudava a encarar e nomear o trauma. 

Quando terminei de escrever, precisei de tempo para decidir se de fato publicaria o livro. Sabendo que isso tudo aconteceu em 2024, pode parecer que as coisas caminharam com rapidez. Mas o tempo do calendário não é o mesmo tempo da criança interior que tem as feridas cuidadas. Para meu namorado, que esteve ao meu lado e deu tudo de si, talvez a percepção sobre esse tempo tenha tons ainda mais específicos. 

E há tanta coisa que ainda quero compartilhar sobre a escrita de Caminho para o grito , a história real narrada em poemas e todos os passos indispensáveis para que uma obra como essa chegue até os leitores. Um pouco já foi dito na minha newsletter e eu te convido a continuar acompanhando a divulgação do livro e todas as ações que acontecerão por causa dele. Como este texto jamais poderia ter fim, vou concluir este recorte com um poema inédito que está em Caminho para o grito. Espero que goste da leitura e desejo que você sempre consiga ouvir o próprio corpo. Compre os livros de Jarid Arraes, neste link.


domingo, 10 de agosto de 2025

.: "Antes do Início": Ernesto Mané encara o passado com olhos de futuro

Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Valeria Fiorini

Doutor em física nuclear, diplomata de carreira, pesquisador em centros de excelência como o CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear) e a Universidade de Princeton - Ernesto Mané poderia, com facilidade, ser apenas um desses nomes que figuram em listas internacionais de prestígio, como a dos 100 negros mais influentes do mundo segundo a plataforma global MIPAD (Most Influential People of African Descent). Mas ele decidiu se mover por outro campo de força: o das memórias partidas.

Em "Antes do Início", livro de estreia dele publicado pela Tinta-da-China Brasil, Ernesto embarca em uma travessia que vai além do Atlântico. Vai do abandono ao pertencimento, do racismo velado às feridas expostas, da ciência para a espiritualidade, em uma escrita híbrida que combina diário de viagem, ensaio e confissão. Ao retornar à Guiné-Bissau em busca da família paterna, o autor confronta heranças esquecidas, desmancha mitos familiares e apresenta uma África real - nem exótica, nem idealizada - onde a fome e a alegria dividem o mesmo prato.

Filho de uma paraibana e de um guineense que o deixou aos sete anos, Ernesto Mané não se contenta em ser um sobrevivente da meritocracia. Quer ser ponte. Ou, como sugere nas páginas do livro escrito por ele, uma espécie de embaixador informal entre dois mundos que se evitam: o Brasil que apagou a África da memória e a África que não reconhece o Brasil como semelhante.

Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, ele fala sobre relações interrompidas, a difícil arte de construir identidade em terra movediça e os desafios de existir entre continentes, línguas, códigos e silêncios. Porque, às vezes, antes do início, há uma urgência: a de não esquecer. Compre o livro "Antes do Início", de Ernesto Mané, neste link.


Resenhando.com - Você é doutor em Física Nuclear e diplomata. Agora se lança como autor de um diário afetivo sobre ancestralidade. Onde termina o cientista cético e começa o filho órfão de continente, tentando religar os fios rompidos da Kalunga?
Ernesto Mané - Da maneira como vejo, existe um contínuo entre o cientista e o filho da diáspora africana. Quando fui estudar física na Europa, me sentia incomodado com todo o processo. Havia uma relação quase colonial, em que eu, um jovem negro vindo de um país periférico, estava sendo “civilizado” pelos europeus. Essa tensão sempre esteve presente. Por outro lado, desde o final da adolescência vinha nutrindo o desejo de conhecer a Guiné-Bissau e minha família paterna, de modo que só consegui reunir as condições materiais para realizar a viagem depois de ter completado o doutorado.


Resenhando.com - 
No livro, seu pai surge como uma figura dividida entre a fuga e o abandono. Que palavras o Ernesto de hoje, pai e diplomata, diria ao pai que partiu quando você tinha sete anos?
Ernesto Mané Diria para ele ainda que, embora eu hoje entenda mais sobre as complexidades da vida, ainda tenho dificuldade de entender a escolha que ele fez de abandonar seus filhos tanto da África quanto os do Brasil, sobretudo se considerar que morávamos na mesma cidade, em João Pessoa. Sua falta foi sentida e precisávamos de uma referência e de alguém que nos protegesse do racismo e da branquitude. Na falta dele, tive que aprender a lidar com essas questões do jeito mais doloroso.


Resenhando.com - Você já foi chamado de “macaco” nas ruas do Brasil e de “branco” nas ruas de Bissau. O que significa para você habitar essa encruzilhada racial em que nenhuma identidade parece bastar?
Ernesto Mané Não me resta dúvidas de que sou um homem fenotipicamente negro, embora seja mestiço. Ter sido chamado de “branco” pelas crianças da Guiné-Bissau tem muito a ver com o fato de eles considerarem o Brasil como “terra de gente branca”, ou seja, não está presente no imaginário de uma criança guineense que o Brasil seja um país majoritariamente negro - o segundo maior país negro depois da Nigeria. Além disso, ser “branco” está relacionado a uma questão de poder, e eu, pelo fato de ser estrangeiro, projetava esse poder através da forma de me vestir, de falar e de portar comigo uma câmera fotográfica digital - todos códigos relacionados com o poder financeiro e com a branquitude no imaginário deles.


Resenhando.com - Em “Antes do Início”, você revela que ninguém em sua família africana toca tambores ou veste roupas tradicionais, mas você ensina capoeira angola às crianças da Guiné. A cultura afro-brasileira está mais próxima da África do que a própria África?
Ernesto Mané Algumas mulheres da minha família, inclusive a minha avó, usam roupas tradicionais. De fato, não tive contato com nenhum parente que tocasse instrumentos musicais locais. Mas isso não os torna menos africanos. São indivíduos pertencentes a um continente que possui uma diversidade cultural riquíssima e que continua sendo a fonte de referência para toda a diáspora, incluindo o Brasil.


Se fosse possível colocar seu livro nas mãos de uma única pessoa - viva ou morta - para que ela o lesse com atenção, quem seria essa pessoa?
Ernesto Mané Seria o meu pai, seguramente. Na verdade, o diário de viagem que serviu de inspiração para o livro ficou por algum tempo guardado junto com alguns dos meus pertences na casa do meu pai. Tenho algumas evidências de que ele talvez tenha lido o diário, embora nem ele nem eu jamais tenhamos puxado o assunto em nossas conversas.


Em algum momento, entre o transporte de uma galinha viva e os silêncios da memória familiar, você se sentiu um estrangeiro em sua própria origem?
Ernesto Mané Eu me senti bastante acolhido pela minha família africana. A etnia a qual pertenço, a balanta, é patrilinear, de modo que todos reconheceram que eu era guineense, a única diferença sendo a de que eu fui “parido fora” da Guiné-Bissau. Hoje, minha leitura sobre os silêncios da memória familiar tem muito a ver com o dano causado pelo colonialismo ao tecido social e familiar do país, que sofreu com a presença colonial portuguesa por mais de 500 anos. Esse dano causou e causa muita dor, sofrimento e vergonha para todos os afetados, de modo que eu entendo que estava sendo poupado pela minha própria família dos detalhes acerca de um capítulo triste da história recente da Guiné-Bissau.


Você é um diplomata que lida com desarmamento e segurança internacional, mas seu livro desmonta outro tipo de armamento: o emocional, o simbólico, o familiar. Foi mais difícil negociar com líderes mundiais ou com seus próprios fantasmas?
Ernesto Mané Se, por um lado, minha decisão de publicar livro sobre a viagem que fiz a Guiné-Bissau foi fruto de uma negociação interna, em que tive que lidar com meus próprios fantasmas, por outro, a questão do armamento nuclear está intimamente vinculada com as relações coloniais. Portugal, por exemplo, já fazia parte da Organização do Tratado do Atlantico Norte - OTAN, durante a luta pela independência da Guiné-Bissau. Cabe lembrar que a OTAN é uma aliança fundada em cima do poderio nuclear de seus membros. Atualmente vivemos em um período de grande tensão internacional, que tem colocado em xeque a segurança de toda a humanidade. Meu trabalho como diplomata e como físico tem sido guiado pela convicção de que essas armas precisam ser eliminadas, pois representam um grande risco existencial. Sem dúvidas, essa tarefa é urgente e muito mais difícil do que lidar com meus próprios fantasmas, uma vez que o livro foi publicado, mas os países nuclearmente armados seguem aumentando seus arsenais.


O crioulo é falado por todos na Guiné-Bissau, mas não é língua oficial. No Brasil, o racismo é falado em silêncio, mas rege as relações sociais. Em qual idioma se traduz melhor o que é ser negro entre dois mundos?
Ernesto Mané Fiz essa reflexão no livro, em que verifiquei ser o crioulo a língua franca da Guiné-Bissau, ao passo que o português ainda está associado com a língua do colonizador. Registrei que minha avó simplesmente se recusava a falar o português, ao mesmo tempo em que há guineenses que deixam de ensinam o crioulo a seus filhos, por acreditarem ser o português o melhor veículo para ascensão social. No Brasil, país que se tornou independente a mais tempo, acabamos por moldar o português através das contribuições dos africanos trazidos para cá e das nações originarias, como nos ensinou Lélia Gonzales. Em ambos os casos, o crioulo e o português brasileiro trazem consigo a marca da resistência contra o colonizador.


Sua trajetória parece negar a ideia de origem fixa - como se você tivesse que começar sempre outra vez. Qual é o seu ponto de partida hoje?
Ernesto Mané Essa sensação de ter que recomeçar constitui experiencia definidora dos processos diaspóricos. Ao longo de cinco séculos, sofremos violências físicas, psicológicas, epistêmicas e materiais. Muitas vezes, o que temos é apenas nosso corpo. Meu ponto de partida é saber que carrego comigo esse legado e tenho que seguir a diante, reconstruindo pontes e criando possibilidades de existir. Isso passa, por exemplo, em ser capaz de garantir as condições para que as próximas gerações não tenham que começar do zero.


Para quem acredita na meritocracia como dogma, sua trajetória seria um exemplo da famosa “superação”. Mas você parece rejeitar esse rótulo. O que existe por trás do homem que venceu - e o que ele ainda precisa perder para se reencontrar?
Ernesto Mané Existe uma pessoa que cobra de si o tempo inteiro excelência em tudo o que faz, porque não consegue esquecer uma frase que ele escutou ainda quando criança, vinda de pessoas próximas: “o preto quando não caga na entrada, caga na saída”. Essa frase é de um fatalismo gigantesco, porque não importa o quanto você seja um “vencedor”, a branquitude sela o seu destino, ao dizer que você, em dado momento, vai colocar tudo a perder, pelo fato de ser preto. Eu trabalho tanto para assegurar que esse dia nunca chegue, mas, se chegar, preciso ser capaz de reivindicar minha humanidade, porque como cantava o mestre Jorge Bem, “errare humanum est”.


terça-feira, 5 de agosto de 2025

.: Fernanda Emediato fala sobre o livro que devolve a infância ao Brasil


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação

Em um tempo em que infância e poesia parecem cada vez mais deslocadas da paisagem cotidiana, o livro "As Pipas de Portinari" surge como um gesto raro: não é apenas um livro, mas uma travessia entre a arte e as brincadeiras de criança. A obra organizada por Fernanda Emediato e Leo Cunha reúne dez autores brasileiros em um voo poético sobre as telas do pintor Candido Portinari. São textos de Cíntia Barreto, Dilan Camargo, Henrique Rodrigues, João Bosco Bezerra Bonfim, José Carlos Aragão, Marco Haurélio, Roseana Murray e Sônia Barros. Mais do que uma antologia, o livro é um gesto de reconexão com o Brasil que brinca, sonha e sobrevive. 

Com formas diversas - haicais, cordéis, sonetos, parlendas, poemas visuais e limeriques - a obra transforma o olhar do artista em linguagem acessível, multiforme e profundamente brasileira. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, Fernanda Emediato, que começou a trajetória editorial ainda menina - ela é filha do escritor Luiz Fernando Emediato - e hoje dirige a Tróia Editora, fala sobre a gênese do projeto, a relação entre arte e literatura, o papel da infância e os riscos de tentar voar com uma pipa em um país em que o vento, às vezes, sopra contra. Compre o livro "As Pipas de Portinari" neste link.


Resenhando.com - Se Portinari pintava o Brasil que doía e sonhava, “As Pipas de Portinari” pinta um Brasil que ainda se permite brincar? Ou é um suspiro poético diante de um país que insiste em cortar as linhas da infância?
Fernanda Emediato - Vejo "As Pipas de Portinari" como uma ode à infância. A ideia do livro nasceu em 2022, quando visitei a exposição “Portinari para Todos”. Havia um espaço encantador chamado “Quintal do Portinari”, voltado especialmente às crianças. Naquele dia, fui com meu filho Raul, então com cinco anos, e minha irmã Serena, de seis. Começamos a visita por esse quintal lúdico, onde as crianças corriam de um lado para o outro, encantadas, interagindo com as obras do artista. Uma das estações convidava os pequenos a desenhar sua própria pipa, que depois ganhava vida em uma das telas de Portinari - um momento mágico. Mas o mais surpreendente foi o que veio depois: avançamos para a parte principal da exposição e, mesmo diante das obras mais densas e simbólicas, as crianças continuaram engajadas, comentando, observando, se emocionando. Foi comovente perceber que a arte, quando acessível, toca todas as idades. Ali, antes mesmo de sairmos da mostra, nasceu a ideia de unir poesia e pintura em uma obra literária que resgatasse a potência sensível da infância brasileira. Este livro é um suspiro poético, sim, mas é também um grito de urgência. Um apelo para que a infância não seja esquecida. Que não cortemos as linhas que a fazem voar. A arte, o brincar, o encontro entre crianças precisam ser preservados. Precisamos tirá-las das telas, devolvê-las ao vento, ao chão, às pipas. Nós - pais, educadores, cuidadores - temos a responsabilidade de manter viva essa essência. Não podemos continuar tentando silenciar nossas crianças com tecnologia. Elas têm direito à alegria, à poesia, ao sonho - e também ao tédio. Sim, ao tédio de contar palitos no restaurante durante conversas que não as interessam, de observar formigas no chão, de contar postes pela janela do carro durante longos trajetos.


Resenhando.com - Você cresceu em meio a livros, editores e ideias. O que a pequena Fernanda, que publicou seu primeiro livro aos nove anos, diria ao ver que um projeto seu agora dialoga com um gigante das artes como Portinari?
Fernanda Emediato - De fato, eu passei a vida cercada por livros - mesmo antes de saber ler, já abria meus exemplares e recriava as histórias a partir das ilustrações. Aos 14 anos, comecei a trabalhar com meu pai, na Geração Editorial, e quando chegou a hora de me formar em Publicidade, precisei decidir: seguir no caminho da comunicação ou continuar aprendendo o ofício de editar livros. Um momento marcante foi quando ajudei meu pai a editar a obra "As Maluquices do Imperador", de Paulo Setúbal. Fizemos uma edição especial, com pinturas da época, e mesmo sendo uma obra em domínio público, ela se destacou justamente pela escolha das imagens. Ali eu aprendi que as pinturas também contam histórias - e que a união entre palavra e imagem pode transformar uma leitura. Hoje, como editora, gosto muito de usar essa estratégia em obras de domínio público: resgatar não só a literatura clássica, mas também as artes visuais. Trabalhar com as obras de Candido Portinari foi uma experiência profundamente tocante. E ter o apoio, a generosidade e a confiança de João Candido Portinari foi essencial para tornar esse projeto possível. Sou imensamente grata por isso. Portinari se importava com as crianças. E isso é algo que temos em comum. Esse projeto é todo voltado a elas. É uma ponte entre o olhar da arte e o olhar da infância - e acredito que a pequena Fernanda de nove anos, que publicou seu primeiro livro ainda criança, se emocionaria ao ver que sua paixão por palavras e imagens a levou até aqui.


Resenhando.com - Há algo de contrarrevolucionário em apostar em poesia para crianças num tempo de TikTok, fake news e hiperconectividade?
Fernanda Emediato - Olha, hoje em dia, lançar qualquer obra literária já é, por si só, um ato contrarrevolucionário. O mercado editorial vive um momento muito delicado. As vendas caíram cerca de 45% e, segundo a 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 53% dos entrevistados não leram sequer um trecho de livro no último ano. Onde estão os nossos leitores? As listas de mais vendidos seguem dominadas por livros de colorir - o que não é um problema em si, mas revela uma busca por algo rápido, efêmero. E eu me pergunto: cadê os leitores que amam palavras? Cadê as crianças e os jovens que mergulham nas histórias com o mesmo brilho nos olhos que têm ao abrir um aplicativo? As pessoas precisam se reconectar com a leitura. Precisam lembrar que um livro pode trazer muito mais satisfação - e transformação - do que um vídeo de 15 segundos. O que falta, muitas vezes, é só encontrar o gênero certo. Tem literatura para todo mundo: de Sabrina a Agatha Christie, dos clássicos “cabeças” à ficção leve, da não-ficção à fantasia, autores internacionais e nacionais - é impossível que alguém não encontre seu gênero favorito e se divirta com ele. E o mais triste é perceber que até quem já era leitor está se afastando dos livros, como se esquecesse da própria essência. Hoje, eu vivo essa agonia. 


“As Pipas de Portinari” é também um manifesto?
Fernanda Emediato - O mercado editorial parece estar murchando diante dos nossos olhos. Os programas de aquisição pública de livros estão desaparecendo. Os editais estão sendo encerrados. Muitas editoras estão vivendo uma fase melancólica - quase uma resistência silenciosa. Por isso, sim,  "As Pipas de Portinari" é também um manifesto. Um grito poético. Uma aposta radical na infância, na arte e na palavra. É dizer: "ainda dá tempo! Ainda podemos voar!".


Resenhando.com - Por que reunir tantos estilos poéticos e formas tão distintas? Foi uma escolha estética, política ou um desejo de descomplicar a arte para todos os públicos - inclusive os que têm medo de poesia?
Fernanda Emediato - Quando tive a ideia do projeto, meu objetivo era unir arte e poesia. Sempre acreditei que um poema pode contar a história de uma pintura de forma mais sensível, mais ampla - criando pontes entre palavra e imagem, entre memória e imaginação. Também queria que o livro pudesse ser usado como ferramenta pedagógica nas escolas, tocando leitores de diferentes idades e repertórios. Para me ajudar nessa missão, convidei o escritor Leo Cunha para organizar a obra comigo. Conversamos bastante sobre qual seria a melhor faixa etária para dialogar com as pipas - e foi ele quem assumiu com sensibilidade e inteligência a curadoria dos poetas. Leo foi brilhante ao trazer diversidade geográfica, estética e afetiva para a seleção. Reunimos vozes de diferentes cantos do Brasil, e cada poeta pôde escolher a tela que mais o tocava e o estilo poético com que desejava conversar com ela. O resultado foi uma coletânea rica, vibrante e plural. Há cordel, haicai, soneto, verso livre, adivinha, parlenda, quadrinha, décima, limerique e poema visual - cada forma com sua própria melodia e o seu modo único de tocar o leitor. E quem dá vida a esse arco-íris de linguagem, além de mim e de Leo Cunha, são poetas contemporâneos que admiro profundamente: Cíntia Barreto, Dilan Camargo, Henrique Rodrigues, João Bosco Bezerra Bonfim, José Carlos Aragão, Marco Haurélio, Roseana Murray e Sônia Barros. Sim, essa escolha foi estética, pedagógica e também política: porque é urgente descomplicar a poesia, torná-la acessível, brincante, viva. Há muita gente que tem medo de poesia - como se fosse difícil demais, ou elitista demais. Mas a poesia pode ser simples, leve, divertida. Pode emocionar sem explicar tudo. E é isso que queremos mostrar com "As Pipas de Portinari".


Resenhando.com - Em um país em que as políticas públicas de cultura são tão instáveis, como foi lidar com três frentes de fomento (ProAC, Aldir Blanc e Lei Rouanet)?
Fernanda Emediato - O projeto demorou quase três anos para se concretizar. Eu poderia ter lançado a obra sem apoio de políticas públicas, mas, justamente pela importância do conteúdo e pelo apelo simbólico, decidi aguardar e insistir. A primeira vez que o inscrevi no ProAC, ele foi reprovado - teve uma boa pontuação, mas não foi suficiente para aprovação. Mesmo assim, não desisti. Aprimorei o projeto, esperei mais um ano e, nesse meio-tempo, também consegui viabilizá-lo pela Lei Rouanet. A espera valeu a pena. Hoje, boa parte da tiragem impressa está sendo distribuída gratuitamente. E no próximo mês, o livro estará disponível também em formato digital com descrição de imagens, gratuito para download pela Amazon. Além disso, a obra está sendo adaptada para audiolivro com acessibilidade, que será disponibilizado gratuitamente no YouTube. Também teremos um vídeo-aula sobre Portinari e poesia, disponível para qualquer pessoa, e um caderno de atividades para crianças, tanto impresso quanto digital, para download livre. Mesmo com acabamento de luxo e capa dura, o livro físico também tem um preço acessível: está à venda por R$ 49,90. Isso é fruto de uma escolha consciente: acessibilidade em todos os sentidos - estética, econômica, pedagógica e tecnológica.


Ainda dá para sonhar em alto nível com incentivo público ou é preciso ser contorcionista cultural?
Fernanda Emediato - Acho que o maior segredo para trabalhar com incentivo público é manter o foco no público. O papel do produtor cultural é distribuir cultura com qualidade - e se empenhar para que ela chegue, de fato, às pessoas. Sim, as políticas públicas são instáveis, nem sempre justas e quase nunca fáceis de acessar. Mas com amor, persistência e compromisso com o bem comum, a gente chega lá.


Resenhando.com - Se o Brasil fosse uma tela de Portinari hoje, que cores estariam mais gastas? E que verso você escreveria sobre ela?
Fernanda Emediato - As cores mais gastas seriam justamente o verde, o amarelo e o azul - e isso me entristece profundamente. Durante muito tempo, essas cores eram celebradas com orgulho, especialmente nos esportes, como símbolo de união. Mas hoje, elas carregam disputas, bandeiras ideológicas, rupturas. Perderam o brilho, o afeto. O que antes era de todos, agora parece dividido. O verso que eu escreveria seria uma paráfrase do início da minha parlenda no livro: “Um, dois... ela se foi?” Como quem pergunta: e a nossa alegria? E o nosso Brasil? Mas eu sigo acreditando. Ainda dá tempo de resgatar o amor pelo país - e não um amor vazio ou de ocasião, mas aquele que valoriza nossos artistas, escritores, professores, atores, artesãos, agricultores, cuidadores. O Brasil tem tudo o que precisamos: alma, talento e beleza. Só falta devolver às nossas cores o que elas sempre representaram: esperança, criação e pertencimento.


Resenhando.com - Por que ainda é tão difícil unir literatura e artes visuais de forma realmente integrada nas escolas?
Fernanda Emediato - Essa é realmente uma batalha difícil. Na minha opinião, mais do que medo ou teimosia institucional, o que existe é despreparo - e isso só se resolve com formação e valorização dos professores. É preciso investir mais em quem está na ponta: oferecer treinamento de qualidade, incentivo, tempo para estudar, liberdade criativa. Não adianta exigir inovação se os educadores estão sobrecarregados, mal remunerados ou sem apoio. Sou apaixonada pela filosofia Waldorf, e meu filho estuda em uma escola assim desde a Educação Infantil. Lá, a arte é usada como pano de fundo para tudo: matemática, linguagem, ciências, história. E isso faz uma diferença imensa na forma como as crianças aprendem e se relacionam com o mundo. Se as escolas tradicionais tivessem um pouco mais disso - mais espaço para o sensível, para o estético, para o simbólico - seria maravilhoso. Acredito, sim, que um dia chegaremos lá. Acompanho de perto o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e sei que há boas intenções. Mas também vejo com preocupação a aposta excessiva em livros digitais convertidos em HTML. Sou totalmente a favor da tecnologia quando ela é uma ponte de acessibilidade. Mas sou crítica do uso de conteúdos digitais como substitutos do livro físico em sala de aula. Nada substitui o vínculo concreto com o objeto-livro - com o virar da página, com o toque, com a presença da arte no papel. Literatura e artes visuais nasceram juntas. Separá-las foi um erro do sistema. Reuni-las exige coragem, preparo e, acima de tudo, confiança na sensibilidade das crianças.

Resenhando.com - “As Pipas de Portinari” traz uma carta emocionante do filho do pintor. Para você, que cresceu com a figura paterna tão presente no mundo editorial, o que significa esse gesto de João Candido Portinari? Foi também um aceno simbólico de pai para filho?
Fernanda Emediato - A carta do João Candido Portinari para seu pai é emocionante em muitos aspectos. É um texto que carrega amor, memória e uma busca sincera por reconexão. Já assisti a diversas palestras do João, e todas me tocaram profundamente - são sempre generosas, inspiradoras e carregadas de afeto. O trabalho de resgate que ele faz da obra e da figura de Portinari é um gesto de amor filial, mas também de amor ao Brasil. Ele não está apenas preservando a memória de um artista - está dizendo: este país tem raízes, tem arte, tem beleza que não podemos esquecer. Meu trecho favorito da carta é este: "Até que, no ano passado, comecei a te reencontrar. Aos poucos, foi se esboçando em mim a necessidade de te buscar. Buscar você, buscar o Brasil". Esse trecho me tocou profundamente. Eu me identifiquei. Como filha de um escritor e editor muito conhecido, também carrego essa herança com orgulho. Os prêmios que meu pai recebeu, as obras que escreveu, o que ele construiu - tudo isso me acompanha. Muitas vezes discordamos (aliás, acho que discordamos de quase tudo! risos), mas temos algo essencial em comum: o amor pelos livros e a vontade de fazer a literatura chegar às pessoas. Vivendo no mundo editorial, vejo muitos herdeiros apagarem as vozes dos seus pais - deixando de autorizar o uso de seus textos ou ilustrações, muitas vezes pensando apenas em questões monetárias. Isso me entristece, porque acredito que todo artista carrega, no fundo, o desejo de ver sua obra difundida, compartilhada, viva. Por isso, sim - vejo essa carta também como um aceno simbólico de pai para filho. E, para mim, poder ter esse gesto dentro da obra "As Pipas de Portinari" é um presente. Porque é, no fundo, uma carta sobre pertencimento, reconciliação e continuidade - valores que eu também carrego, como filha, como mãe, como editora.


Resenhando.com - A arte pode ser libertadora - mas também pode ser domesticada. Como você evita que um projeto como este vire apenas “conteúdo pedagógico” e perca sua alma poética?
Fernanda Emediato - A arte pode - e deve - entrar nas escolas. Mas ela precisa chegar como experiência sensível, não apenas como tarefa ou prova. Para mim, o maior cuidado é esse: preservar a alma da obra. A poesia não é feita para ser decodificada como fórmula, mas para ser sentida, lida em voz alta, desenhada, reinventada. "As Pipas de Portinari" foi pensada para dialogar com o universo escolar, sim - mas como uma ponte, não como uma cartilha. Sou totalmente a favor de que a literatura esteja nas escolas - desde que respeite a infância, a subjetividade e o tempo de cada leitor. A arte não deve ser domesticada, nem usada como um “treinamento para o Enem”. Ela precisa provocar, encantar, abrir perguntas. Acredito, sim, que uma obra pode ser usada pedagogicamente sem perder a força poética - desde que o educador esteja comprometido com isso. Por isso, insisto tanto em produzir também materiais de apoio com sensibilidade, como os cadernos de mediação, os audiolivros acessíveis, as videoaulas criativas.


Resenhando.com - Se você tivesse que resumir o livro em um bilhete que voasse preso na rabiola de uma pipa, o que escreveria para os leitores do futuro?
Fernanda Emediato - Se eu tivesse que resumir o livro em um bilhete preso na rabiola de uma pipa, eu escreveria: “Nem toda linha aprisiona. Algumas ensinam a voar”. E, logo abaixo: “Saiam das telas, entrem nos livros”. Porque "As Pipas de Portinari" é exatamente isso: um convite ao voo. Um chamado para que as crianças e os leitores do futuro não se esqueçam do corpo, do vento, da arte, da palavra. Que saibam que há outros caminhos - mais lentos, mais belos, mais vivos - do que os oferecidos pelas telas.

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