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domingo, 12 de maio de 2019

.: Redação do Enem: cinco dicas que valem mil pontos


No vestibular e no Enem é preciso ir além das regras gramaticais. Confira  sugestões para gabaritar a prova. Mais de um milhão de inscrições já foram realizadas para a edição de 2019 do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), de acordo com o balanço do Ministério da Educação (MEC). O prazo acaba no dia 17 de maio e as provas acontecem nos dias 3 e 10 de novembro.

Para se destacar nesse vasto universo de candidatos, que em 2018 foi de 5,5 milhões de pessoas, é preciso estudo, dedicação e preparação com estratégia, especialmente no que diz respeito à redação. Por ser uma avaliação aberta, a escrita pede que o aluno mostre domínio gramatical, repertório argumentativo e coerência ao articular ideias. 

Para Marília Manfredi Gasparovic, professora do Colégio Marista Cascavel, é o momento em que os estudantes podem se destacar da maioria. “Ter informação é diferente de ter conhecimento e é no momento da redação que diferenciais como senso crítico e repertório de mundo entram em cena”, analisa. Para orientar os estudantes que vão encarar esses desafios durante as provas, Marília listou algumas dicas importantes:

  • Planejar o texto em relação ao gênero textual.Saber quais são as características de cada gênero é essencial. O Enem pede um estilo, as universidades pedem outros formatos e por aí o vestibulando tem que se esforçar para dar conta de adaptar a escrita conforme a orientação. A dica é entender onde cada tipo de texto se encaixa. Por exemplo, artigos opinativos pedem argumentos críticos, uma dose de humor e escrita em primeira pessoa, pois são usados em jornais e revistas.
  • Ser um bom leitor é a melhor forma de escrever bem.Para argumentar, construir um texto, é preciso ter repertório de mundo. Assim, torna-se necessário ter como base uma grande diversidade de conteúdos para poder construir um bom texto argumentativo. Em tempos de redes sociais, com muita quantidade de informações rasas, ler somente a manchete das notícias impede que o aluno se aprofunde nos assuntos e consiga opinar e discorrer.

  • Surpreender e encantar o corretor.Além de pensar o próprio texto, é válido questionar o que os outros candidatos vão escrever para tentar se destacar e sair do senso comum. Seja pelo conteúdo, seja pelo estilo, encarar o corretor como uma audiência a ser conquistada e não somente como uma máquina é um passo importante para ganhar pontos na redação.
  • Ter estilo próprio e saber que escrita é construção.
    Foi-se o tempo em que os vestibulares pediam textos engessados e quadrados. Adequar-se ao gênero pedido não quer dizer abandonar o estilo de escrita. A busca por uma construção textual interessante e rica é bastante valorizada e rende pontos.
  • Deixar o texto respirar.A dica mais prática da lista é essa: comece a prova pela redação. Ler com atenção o que é pedido para poder executar o texto com tempo é o básico. Fazer o texto inicial no rascunho e deixá-lo “na gaveta” enquanto realiza as demais questões é importante para dar um tempo e poder reler o texto depois. Antes de passar a limpo, é hora de ler com olhar crítico e reconstruir frases e sentenças que possam ser melhoradas.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

.: Semelhanças: De Hércules para outros clássicos Disney

Por: Mary Ellen Farias dos Santos
Em junho de 2016


Não é de hoje que as semelhanças entre as produções Disney chamam atenção do público. Quem ainda não sabe que o peixe "bravinho" de "Procurando Nemo", Gil, está logo na abertura de "Lilo &Stich", não é? Contudo, na animação "Hércules", somente no trecho da música "Não direi" há muitos elementos para observar e associar.

Já num jardim parecido com o de Agrabah, muito circulado pela princesa Jasmine e invadido por "Aladdin", está a tritagonista de "Hércules": Mégara. Além do verde durante a noite, ambas têm direito a estátua de um cupido fofinho -tanto Mégara quanto Jasmine.

Choramingando pelas mazelas do amor que se recusa a sentir, a personagem passa pela estátua de um casal dançando. Esse é o lembrete discreto da música "Parte do seu mundo", de Ariel, em "A Pequena Sereia". Sim, Mégara! "Tudo é tão lindo no início" e ambas as cenas acontecem no período noturno. Desabafos de mocinhas na luz da lua? Sim! 

Contudo, "Aladdin" volta a dominar a cena quando Mégara pula em pedras na piscina, mas na última... um quase acidente acontece, mas a mão amiga do amado está estendida. Quem é fã Disney já escuta mentalmente a fala apaixonante: 
"Você confia em mim? Confia em mim". Aonde se ouve isso? Na animação do príncipe Ali Ababwa.

Então, um retorno ao clássico de "A Pequena Sereia" com o olhar apaixonado para a estátua do amado, em pose viril. Aqui Hércules está eternizado como o príncipe Eric. Mesmo que por um momento breve, Mégara age como a sereiazinha e demonstra felicidade ao estar junto daquele que mexe com o coração dela -aceitando esse fato ou não. 




De repente, as musas reforçam a mensagem de não fugir do amor, mas em estátuas de busto. Contudo, a segunda, a mais baixinha e fofinha está tal qual o danadinho gato de Cheshire. Sem cabeça! Não! Sem chance para a Rainha de Copas, mas estabelece uma nova relação, como o clássico "Alice no País das Maravilhas".

Por mais que a fonte principal do jardim ganhe e perca adornos, não há como deixar de conectar a cena com o clássico "A Bela e a Fera". Principalmente de quando a mocinha exterioriza a paixão que tem por histórias de amor, bem na fonte da praça pública.



*Editora do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm


Trecho de Hércules

Trecho de Aladdin

Trecho de A Pequena Sereia

Trecho de A Bela e a Fera

Trecho de Lilo & Stich


quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

.: #RESENHANDOMAISLIDAS1 Análise da música "Alegria, Alegria"

Por Mary Ellen Farias dos Santos*
Em janeiro de 2015 *


Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro,
Eu vou.

O sol se reparte em crimes
Espaço naves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas,
Eu vou.

Em caras de presidente,
Em grandes beijos de amor,
Em dentes, pernas, bandeiras, 
Bomba e Brigitte Bardot.

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça.
Quem lê tanta notícia?
Eu vou 

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos.
Eu vou
Por que não? E por que não?

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento
Eu vou.

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
Uma canção me consola
Eu vou.

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone,
No coração do Brasil.

Ela nem sabe até pensei 
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito

Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos 
Eu quero seguir vivendo amor.
Eu vou 
Por que não? E por que não?

Memória discursiva: 
A música "Alegria, Alegria", de autoria de Caetano Veloso, sobre liberdade, é um dos marcos iniciais do movimento tropicalista da década de 1960. Datada de 1967, Alegria, Alegria, a canção modernista foi apresentada no Festival da Record em disputa pelo “Berimbau de Ouro”. 

Embora seja intitulada de "Alegria, Alegria", sua letra nada tem de alegria, apenas reflete a repressão do período militar no Brasil, ou melhor, os “anos de chumbo”. De tão potente, a música de Caetano Veloso está incorporada na mente e na história do povo brasileiro, pois a marcha leve e alegre, com letra caleidoscópica e libertária, tem força nas palavras que a compõem. 

Entretanto, ao apresentá-la ao público, Caetano Veloso recebeu vaias (até porque fez a apresentação com os argentinos, Beat Boys). A gritaria foi tão infernal que nacionalistas o chamaram de traidor e oportunista. O talento e a performance de Caetano Veloso, aos poucos, ganhou o público e transformou as vaias em aplausos, mas ficou somente com o quarto lugar do festival.

"Alegria, Alegria" é uma obra famosa e muito lembrada, é, pelo menos a mais emblemática do período militar do Brasil. Por esta e outras canções revolucionárias que usaram da metáfora para burlar o regime militar, Caetano Veloso foi o grande divulgador deste período de grande revolução popular e de tanta inquietação cultural. 

Estrutura do texto 
Em sua estrutura textual, "Alegria, Alegria" é simples, principalmente se comparada a outras de Caetano Veloso, utiliza basicamente elementos do Modernismo Brasileiro, da contra-cultura, da ironia, rebeldia, anarquismo e humor ou terror anárquico. Para salientar que a cultura importada era alienante, Caetano usa palavras como Brigitte Bardot, Cardinales  (Claudia Cardinale) e Coca-Cola (maior símbolo do império norte-americano que financiava os exércitos em toda a América Latina).

Pelo fato de ser uma canção escrita no período tropicalista, Alegria, Alegria tem nas entrelinhas uma crítica à esquerda intelectualizada, a negação a qualquer forma de censura, uma denúncia da sedução dos meios de comunicação de massa e um retrato direto da realidade urbana e industrial.

De acordo com o poeta, ensaísta, professor e tradutor brasileiro Décio Pignatari, a letra possui uma estrutura cinematográfica, trata-se de uma "letra-câmera-na-mão", citando o mote do Cinema Novo. Nesta canção há intertextualidade com a canção Para não dizer que não falei das flores e com uma pequena citação (modificada) do livro "As Palavras", de Jean-Paul Sartre: "nada nos bolsos e nada nas mãos", que ficou, "nada no bolso ou nas mãos".

Marcadores da narrativa e da oralidade 
A presença de muitas vírgulas na canção segue o ritmo da marcha, ou seja, há uma ebulição de ideias e ações acontecendo concomitantemente, por tanto não há abertura para pontos finais (que fecham estas ideias), mas apenas para as vírgulas. As vírgulas passam a ideia de aglutinação, como se representassem a pólvora, tão presente nas ruas neste período.

Inicialmente, o verbo caminhar está no gerúndio, o que transmite a ideia de que este caminhar é contínuo e que nada será capaz de interrompê-lo, mesmo que lhe falte uma identidade e as impunidades dos crimes brasileiros permaneçam. Logo, o verbo está no presente: (eu) vou, (me) enche, (ela) pensa.

Da instância lexical 
Os versos “Caminhando contra o vento” e “em Cardinales bonitas” têm o valor semântico da expressão popular “nadando contra a corrente”, com o significado de ser e manter-se contra. Ao considerar o período, este se refere ao lutar contra a Ditadura Militar.

Eixo paradigmático da canção
A luta pelos ideais ganham mais força ao colocar cada ação na primeira pessoa do singular: EU, estando este oculto, como em “Caminhando contra o vento”, ou quando este sujeito é simples, como nos últimos versos das estrofes: “Eu vou”. No contexto do momento histórico vivido pelo autor na época do Regime Militar, a expressão “caminhando contra o vento” vem reforçar a idéia central do texto: ser do contra, lutar contra as forças armadas pelo regime ditatorial, promover a união da população contra o governo imposto de forma indireta e arbitrária. Idéia corroborada pelo descumprimento das regras gramaticais da língua padrão, como no exemplo: “Me enche de alegria...”, em que a frase é iniciada pelo pronome oblíquo ME.

Métrica
Tomando como exemplo a primeira estrofe, é possível escandi-los e dar nomes aos metros da seguinte forma:

Ca/mi/nhan/do /con/tra o /ven/to - Verso octossílabo
Sem /len/ço e /sem /do/cu/men/to - Verso octossílabo 
No /sol /de /qua/se /de/zem/bro, - Verso octossílabo
Eu /vou. – Verso dissálabo

Metáforas
Toda a opressão sofrida pelo cidadão comum, nas ruas, nos meios de comunicação, em sua cultura nativa, no seu próprio país é relatada na letra desta canção. Desta forma, Alegria, Alegria, denuncia os exageros dos militares, porém utilizando-se de metáforas. “Caminhando contra o vento/sem lenço e sem documento” que se refere à violência praticada pelo regime. Ao dizer “sem livros e sem fuzil,/ sem fome, sem telefone, no coração do Brasil” revela a precariedade na educação brasileira proporcionada pela ditadura que queria pessoas alienadas, e complementa: “O sol nas bancas de revista /me enche de alegria e preguiça/quem lê tanta notícia?”

Para evidenciar a alienação da massa, na letra há elementos externos à cultura nacional, como alguns símbolos impostos pelo cinema norte-americano da época, que são: Cardinales, Brigitte Bardot e a Coca-Cola, fortes representantes da imposição comercial da mídia na época.

Ao denunciar os desníveis sociais dos “anos de chumbo”, Caetano Veloso faz comparações metafóricas, com o intuito de destacar os contrastes regionais, sociais ou econômicos, o que fica evidente nos seguintes versos: “Eu tomo uma coca-cola,/Ela pensa em casamento”, “Em caras de presidente/em grandes beijos de amor/em dentes, pernas, bandeiras, bomba e Brigitte Bardot.”

Jogo das pressuposições: Alegria, Alegria, canção que ajudou a criar o estilo musical MPB, escrita, musicada e interpretada pelo cantor e compositor Caetano Veloso (em novembro de 1967) transformou a expressão artística musical brasileira em crítica social. Por esse motivo, Caetano Veloso teve grande parte de suas músicas censuradas pelo regime militar, sendo que algumas foram até banidas. Em 27 de dezembro de 1968, tanto Caetano Veloso quanto Gilberto Gil foram para a cadeia, acusados de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira. Os dois foram levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio, e tiveram suas cabeças raspadas. Entretanto, ambos ficaram exilados em Londres até 1972.

É possível notar também que "Alegria, Alegria" faz intertextualidade com "Para Não Dizer Que Não Falei das Flores", do cantor Geraldo Vandré. Ambas as músicas suscitam em sua letra os sentimentos daqueles tinham conhecimento (não eram alienados) do que de fato acontecia no Brasil e, assim convocam os brasileiros engajados a ir às ruas e lutar contra a ditadura vigente.

Ao convocar a todos para esta luta, fica evidente a crítica à alienação, pois o verso “Ela pensa em casamento” aparece duas vezes na canção, ou seja, evidencia que enquanto algumas brasileiros lutavam para dar fim à repressão militar outros estavam completamente desinformados e sob o domínio do governo.

Rima 
"Alegria, Alegria" é uma canção poética, considerando, inclusive, o título. A marcha compassada denuncia a presença do som do “O” precedido da letra “T” e “R”, ao mesmo tempo em que dá o ritmo a cada verso, também reflete a dureza da época e o disparar das armas, que pode ser notado na terminação dos três primeiros versos, da primeira estrofe, além da presença do fonema “K”: “Caminhando contra o vento/ Sem lenço e sem documento / No sol de quase dezembro”

As figuras de som predominam, pois o ritmo é constante, quebrado por palavras e/ou expressões como “eu vou”, no final de cada estrofe. A aliteração pode ser notada na repetição de sons consonantais (consonância) quanto de sons vocálicos (assonâncias), como nos versos: “Entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone, no coração do Brasil.”: repetição do som do fonema “F”. Nos versos “Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro”, percebe-se a presença do fonema /k/. Também nos versos “entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone, no coração do Brasil”, percebe-se a presença dos sons vocálicos de /em/. O que se repete também nos versos “sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro”

Conclusão do ponto de vista estilístico: 
"Alegria, Alegria" é uma canção que pode ser definida como um poema. Sua história acontece no presente, sendo que o eu – lírico “desenha” a história por meio do pronome EU, 1ª pessoa do singular. No entanto, não tende ao egocentrismo ou narcisismo, apenas posiciona-se como um lutador contra a repressão militar. 

Para provocar a ideia de uma marcha contra a ditadura utiliza-se de fonemas duros que remetem ao marchar dos militares (e até dos civis unidos em direção aos repressores) e fonemas frios que remetem ao som dos tiros e bombas, itens bastante presentes nas ruas, neste período.

Em contrapartida, há também a denúncia da alienação a partir de ídolos impostos e fabricados pela mídia “exterior” (Brigitte Bardot, francesa e Claudia Cardinale, atriz italiana), que infundiam um comportamento novo. 

Texto originalmente escrito em 4 de maio de 2010
*Editora do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. 

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

.: Análise das frases de Marguerite Duras e Clarice Lispector

O outro eu de Clarice e Marguerite
Por: Mary Ellen Farias dos Santos*
Em janeiro de 2015*


Em análise, algumas reflexões das escritoras Marguerite Duras e Clarice Lispector, as quais se complementam e mostram a inquietação de ambas pelo ato de escrever, ou seja, o fato de ser escritora, aquela que mostra o que está além de si: o outro. Ao escrever sobre o escrever, ambas ingressam no percurso da curiosidade e do questionamento de tudo e todos que o circundam.

De acordo com o Dicionário Enciclopédico Focus, escrever é redigir, compor, rabiscar, garatujar, enquanto que escritor está definido como autor, publicista, literato, homem de letras. Marguerite e Clarice, “mulheres de letras” passeiam nos caminhos da composição e, ambas, questionam-se sobre este exercício.
Marguerite descreve tal ansiedade na frase: “Escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos se escrevêssemos – só o sabemos depois – antes, é a interrogação mais perigosa que nos podemos fazer”. Grande semelhança há na frase de Clarice Lispector: “O que escrevo de mim é o que sai naturalmente. Escrever memórias não faz meu estilo. É levar ao público passagens de uma vida. A minha vida é muito pessoal”.

Na tentativa de escrever o que poderia escrever, Duras e Lispector mostram o seu outro eu, ou pelo menos reconhecem que dentro delas há um outro eu. Ambas escritoras, nesta busca de escrever, mostram-se determinadas na idéia de escrever como e para outro. 

Exemplo disto é quando Marguerite diz que “o escritor é uma coisa curiosa. É uma contradição e, também, um contra-senso”. Também rodeada por essas incongruências e este universo peculiar, está Clarice, que diz que quando não está escrevendo, simplesmente não sabe como escrever. “E ainda não me habituei a que me chamem de escritora. Porque, fora das horas em que escrevo, não sei absolutamente escrever”.

Pode-se perceber que os pensamentos chegam a convergir na mesma direção e resultam de maneira idêntica, interrogações constantes e rebates nunca satisfatoriamente respondidos.

Enfim, embora escritores/escritoras não tenham contato direto, seja pela distância, época de vida, entre outros, as inquietações podem ser as mesmas, isto é, o eu que os incomoda, desperta o mundo das dúvidas e os torna em um ser literato, pode ser o mesmo, embora o escritor o expresse de maneira diferente, como no caso de Marguerite Duras e Clarice Lispector. Como já dizia uma propaganda conhecida: “Cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”.


* Mary Ellen é editora do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm
*Trabalho originalmente realizado para o módulo Literatura Comparada, do curso de Pós-graduação em Literatura, da Universidade Católica de Santos, em 28 de outubro de 2005.

.: "O novo" em análise comparativa e intertextual

O produto resultante do produto
Por: Mary Ellen Farias dos Santos*
Em janeiro de 2015*


Em análise, trechos de Sandra Nitrini e Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade, de Diana Luz Pessoa de Barros e José Luis Fiorin, os quais têm como tema principal a relação com o sujeito, o inconsciente e a ideologia, isto é, a intertextualidade, a qual foi concebida por Julia Kristeva e recebida por comparatistas “como um instrumento eficaz para injetar sangue novo no estudo dos conceitos de ‘fonte’ e de influência”. 

De acordo com Bakthin, “o texto, portanto, situa-se na história e na sociedade. Estas por sua vez, também constituem o texto que o escritor lê e nas quais se insere ao reescreve-las”. De fato, escrevemos aquilo que vemos, lemos e ouvimos, isto é, hoje somos o resultado da experiência do “ontem” e “amanhã” seremos o resultado do “hoje”. Somos complexos. Logo o que produzidos é também complexo. 

Exemplo disto é este texto escrito. É por meio deste que resumirei o que foi assimilado e darei o meu ponto de vista sobre o tema: intertextualidade. Tal produção é o resultado da leitura dos textos indicados em sala de aula, o qual também terá contribuições da minha experiência de vida e de outros textos que li até o presente momento.

Talvez, seja por isto que no Dicionário Enciclopédico Focus, escrever está definido como: redigir, compor. De fato ao re-digir algo, nós compomos, principalmente os artistas que tanto gostam de inovar, isto é, fazer a sua releitura de algo que marcou uma determinada época.

A releitura seria uma maneira de aproximar a obra de uma época distante para os dias atuais e seus conflitos. É seguindo o pensamento de Bakthin que melhor pode-se explicar este pensamento: “A diacronia se transforma em sincronia, e à luz dessa transformação, a história linear surge como uma abstração”.

Embora Kristeva diga que a intertextualidade no sentido estrito não tenha relação com a crítica das “fontes”, o estudioso Laurent Jenny define esta máxima contestando tal afirmação da melhor maneira: “A intertextualidade não é uma adição confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos operado por um texto centralizador que mantém o comando do sentido”.

Tendo esta afirmativa em vista, pode-se chegar à conclusão de que a “sua” produção, seja esta expressa nas mais diferentes áreas da arte, ela, de certa forma, não é “sua”. É apenas o resultado do que já se viveu. Exemplo bastante próximo é a atividade de Criatividade, logo abaixo. 

Canção ao sabiá, foi criada, após a leitura e análise dos poemas Canção do Exílio, de Gonçalves Dias e Nova Canção do Exílio, de Carlos Drummond de Andrade, ou seja, é o resultado do produto primeiro, o qual originou o produto segundo. No entanto, o produto primeiro também foi gerado a partir das experiências de Gonçalves Dias.

Enfim, gera-se sempre um produto de um outro produto, e assim, por diante. Resultado: “Tudo que nos parece inovador é um subproduto”.





*Trabalho originalmente realizado para o módulo Literatura Comparada, do curso de Pós-graduação em Literatura, da Universidade Católica de Santos, em 16 de novembro de 2005.
* Mary Ellen é editora do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm

.: “Dedicatória”, de Herberto Helder é uma alegoria fechada

Por: Aline Alves da Silva e Mary Ellen Farias dos Santos*
Em janeiro de 2014* 


dedicatória

– a uma devagarosa mulher de onde surgem os dedos, dez e queimados por uma forte delicadeza. Atrás, o monumento do seu vestido ocidental – erguido e curvo. E o vestido trabalhava desde o fundo e de dentro – como uma raiz branca – para o aparecimento da cabeça. A paisagem posterior é de livros, todos eles de costas voltadas, dominados pelas ardentes pancadas das suas letras. Algures vai passar a lua cavalgando a luz de um só lado, impressamente no papel redondo do céu. Os peixes são também números e tremem de subtileza à volta do lugar ameaçado. E o pescoço da mulher é uma letra de catedral, a letra de um alfabeto morto que um dia se encontrará noutro planeta – arcaica e reinventada. As letras evaporam-se intimamente: são magnólias. E aí está essa mulher que se move na paisagem escorregadia – rodeada por casas arrancadas pela raiz, voltadas no ar. Penso muito em todas essas letras simplesmente pousadas no A da sua cor vermelha, tal como a maçã que se põe – quieta e morosa – sobre o quanto vai ser de madura, e isso vindo da sua obscuridade, da sua salva infância de maçã. E a mulher enche-se de folhas para a sua maçã. E ocupamo-nos novamente na bela insensatez. Como o alfabeto. A lua cavalga a grandeza da mulher, as letras aparecem impressas no muro desse vestido branco ocidental, letras como estátuas de animais. A mulher vai ter uma cabeça de cão aberta em basalto – os cabelos lavrados no osso como as linhas numa página. E a cabeça de cão sorri implantadamente no alfabeto, apoiada no ocidente do vestido. E é um livro.

Herberto Helder

(suspiro)




Analisar o texto “Dedicatória” de Herberto Helder requer certa maturidade literária e um aprofundamento por parte do leitor, tendo em vista que este é o produto final do trabalho de um escritor muito rico estilisticamente. A seleção rigorosa dos recursos estilísticos deste autor português instiga o leitor a uma pesquisa interpretativa para a compreensão da teia de ideias lançadas por ele.

Por meio de esclarecimentos prestados pela professora Sylvia Maria C.R.H. de Bittencourt, durante as aulas de estudos estilísticos, constatamos que “Dedicatória” pode ser classificado como uma alegoria fechada, pois apresenta imagens sequenciadas. Neste texto há uma associação de ideias, ou seja, uma coerência que leva o leitor a uma chave interpretativa.

Na análise semântica notamos que há palavras que pertencem a apenas um, a dois e até, simultaneamente, aos três grupos semânticos estabelecidos em nossa leitura. No decorrer do texto o autor envolve o leitor nos campos semânticos: escrita/livro, paisagem/natureza e mulher, que por vezes se misturam, não deixando claro do que trata o texto, até que, no final, tenhamos descoberto a chave interpretativa que é o LIVRO.

Numa primeira leitura, as ideias estão aparentemente desconectadas. Entretanto, isso tem um fim com a leitura da chave interpretativa, quando o autor acende uma luz que convida o leitor a (re)ler e a (re)interpretar o texto, que se torna, repentinamente, uma dança sincronizada e extremamente harmônica, transformando várias ideias em uma só. Esta é a grande revelação que faz com o que leitor note a transparência constante do autor e, só então, encontre o fio interpretativo, presente da primeira à última linha. 

* Texto originalmente escrito em 1 de outubro de 2010
* Mary Ellen é editora do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

.: Análise da letra musical de "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso

Por: Mary Ellen Farias dos Santos*
Em janeiro de 2015 *


Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro,
Eu vou.

O sol se reparte em crimes
Espaço naves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas,
Eu vou.

Em caras de presidente,
Em grandes beijos de amor,
Em dentes, pernas, bandeiras, 
Bomba e Brigitte Bardot.

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça.
Quem lê tanta notícia?
Eu vou 

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos.
Eu vou
Por que não? E por que não?

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento
Eu vou.

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
Uma canção me consola
Eu vou.

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone,
No coração do Brasil.

Ela nem sabe até pensei 
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito

Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos 
Eu quero seguir vivendo amor.
Eu vou 
Por que não? E por que não?



Memória discursiva: A música Alegria, Alegria, de autoria de Caetano Veloso, sobre liberdade, é um dos marcos iniciais do movimento tropicalista da década de 1960. Datada de 1967, Alegria, Alegria, a canção modernista foi apresentada no Festival da Record em disputa pelo “Berimbau de Ouro”. 

Embora seja intitulada de Alegria, Alegria, sua letra nada tem de alegria, apenas reflete a repressão do período militar no Brasil, ou melhor, os “anos de chumbo”. De tão potente, a música de Caetano Veloso está incorporada na mente e na história do povo brasileiro, pois a marcha leve e alegre, com letra caleidoscópica e libertária, tem força nas palavras que a compõem. 

Entretanto, ao apresentá-la ao público, Caetano Veloso recebeu vaias (até porque fez a apresentação com os argentinos, Beat Boys). A gritaria foi tão infernal que nacionalistas o chamaram de traidor e oportunista. O talento e a performao nce de Caetano Veloso, aos poucos, ganhou o público e transformou as vaias em aplausos, mas ficou somente com o quarto lugar do festival.

Alegria, alegria é uma obra famosa e muito lembrada, é, pelo menos a mais emblemática do período militar do Brasil. Por esta e outras canções revolucionárias que usaram da metáfora para burlar o regime militar, Caetano Veloso foi o grande divulgador deste período de grande revolução popular e de tanta inquietação cultural.

Estrutura do texto: Em sua estrutura textual, Alegria, Alegria é simples, principalmente se comparada a outras de Caetano Veloso, utiliza basicamente elementos do Modernismo Brasileiro, da contra-cultura, da ironia, rebeldia, anarquismo e humor ou terror anárquico. Para salientar que a cultura importada era alienante, Caetano usa palavras como Brigitte Bardot, Cardinales  (Claudia Cardinale) e Coca-Cola (maior símbolo do império norte-americano que financiava os exércitos em toda a América Latina).

Pelo fato de ser uma canção escrita no período tropicalista, Alegria, Alegria tem nas entrelinhas uma crítica à esquerda intelectualizada, a negação a qualquer forma de censura, uma denúncia da sedução dos meios de comunicação de massa e um retrato direto da realidade urbana e industrial.

De acordo com o poeta, ensaísta, professor e tradutor brasileiro Décio Pignatari, a letra possui uma estrutura cinematográfica, trata-se de uma "letra-câmera-na-mão", citando o mote do Cinema Novo. Nesta canção há intertextualidade com a canção Para não dizer que não falei das flores e com uma pequena citação (modificada) do livro As Palavras, de Jean-Paul Sartre: "nada nos bolsos e nada nas mãos", que ficou, "nada no bolso ou nas mãos".

Marcadores da narrativa e da oralidade: A presença de muitas vírgulas na canção segue o ritmo da marcha, ou seja, há uma ebulição de ideias e ações acontecendo concomitantemente, por tanto não há abertura para pontos finais (que fecham estas ideias), mas apenas para as vírgulas. As vírgulas passam a ideia de aglutinação, como se representassem a pólvora, tão presente nas ruas neste período.

Inicialmente, o verbo caminhar está no gerúndio, o que transmite a ideia de que este caminhar é contínuo e que nada será capaz de interrompê-lo, mesmo que lhe falte uma identidade e as impunidades dos crimes brasileiros permaneçam. Logo, o verbo está no presente: (eu) vou, (me) enche, (ela) pensa.

Da instância lexical: Os versos “Caminhando contra o vento” e “em Cardinales bonitas” têm o valor semântico da expressão popular “nadando contra a corrente”, com o significado de ser e manter-se contra. Ao considerar o período, este se refere ao lutar contra a Ditadura Militar.

Eixo paradigmático da canção: A luta pelos ideais ganham mais força ao colocar cada ação na primeira pessoa do singular: EU, estando este oculto, como em “Caminhando contra o vento”, ou quando este sujeito é simples, como nos últimos versos das estrofes: “Eu vou”. No contexto do momento histórico vivido pelo autor na época do Regime Militar, a expressão “caminhando contra o vento” vem reforçar a idéia central do texto: ser do contra, lutar contra as forças armadas pelo regime ditatorial, promover a união da população contra o governo imposto de forma indireta e arbitrária. Idéia corroborada pelo descumprimento das regras gramaticais da língua padrão, como no exemplo: “Me enche de alegria...”, em que a frase é iniciada pelo pronome oblíquo ME.

Métrica: Tomando como exemplo a primeira estrofe, é possível escandi-los e dar nomes aos metros da seguinte forma:

Ca/mi/nhan/do /con/tra o /ven/to - Verso Heptassílabo ou Redondilha Maior
Sem /len/ço e /sem /do/cu/men/to - Verso Heptassílabo ou Redondilha Maior 
No /sol /de /qua/se /de/zem/bro, - Verso Heptassílabo ou Redondilha Maior
Eu /vou. – Verso Dissílabo

Metáforas: Toda a opressão sofrida pelo cidadão comum, nas ruas, nos meios de comunicação, em sua cultura nativa, no seu próprio país é relatada na letra desta canção. Desta forma, Alegria, Alegria, denuncia os exageros dos militares, porém utilizando-se de metáforas. “Caminhando contra o vento/sem lenço e sem documento” que se refere à violência praticada pelo regime. Ao dizer “sem livros e sem fuzil,/ sem fome, sem telefone, no coração do Brasil” revela a precariedade na educação brasileira proporcionada pela ditadura que queria pessoas alienadas, e complementa: “O sol nas bancas de revista /me enche de alegria e preguiça/quem lê tanta notícia?”. 

Para evidenciar a alienação da massa, na letra há elementos externos à cultura nacional, como alguns símbolos impostos pelo cinema norte-americano da época, que são: Cardinales, Brigitte Bardot e a Coca-Cola, fortes representantes da imposição comercial da mídia na época.

Ao denunciar os desníveis sociais dos “anos de chumbo”, Caetano Veloso faz comparações metafóricas, com o intuito de destacar os contrastes regionais, sociais ou econômicos, o que fica evidente nos seguintes versos: “Eu tomo uma coca-cola,/Ela pensa em casamento”, “Em caras de presidente/em grandes beijos de amor/em dentes, pernas, bandeiras, bomba e Brigitte Bardot.”

Jogo das pressuposições: Alegria, Alegria, canção que ajudou a criar o estilo musical MPB, escrita, musicada e interpretada pelo cantor e compositor Caetano Veloso (em novembro de 1967) transformou a expressão artística musical brasileira em crítica social. Por esse motivo, Caetano Veloso teve grande parte de suas músicas censuradas pelo regime militar, sendo que algumas foram até banidas. Em 27 de dezembro de 1968, tanto Caetano Veloso quanto Gilberto Gil foram para a cadeia, acusados de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira. Os dois foram levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio, e tiveram suas cabeças raspadas. Entretanto, ambos ficaram exilados em Londres até 1972.

É possível notar também que Alegria, Alegria faz intertextualidade com Para não dizer que não falei das flores, do cantor Geraldo Vandré. Ambas as músicas suscitam em sua letra os sentimentos daqueles tinham conhecimento (não eram alienados) do que de fato acontecia no Brasil e, assim convocam os brasileiros engajados a ir às ruas e lutar contra a ditadura vigente.

Ao convocar a todos para esta luta, fica evidente a crítica à alienação, pois o verso “Ela pensa em casamento” aparece duas vezes na canção, ou seja, evidencia que enquanto algumas brasileiros lutavam para dar fim à repressão militar outros estavam completamente desinformados e sob o domínio do governo.

Rima: Alegria, alegria é uma canção poética, considerando, inclusive, o título. A marcha compassada denuncia a presença do som do “O” precedido da letra “T” e “R”, ao mesmo tempo em que dá o ritmo a cada verso, também reflete a dureza da época e o disparar das armas, que pode ser notado na terminação dos três primeiros versos, da primeira estrofe, além da presença do fonema “K”: “Caminhando contra o vento/ Sem lenço e sem documento / No sol de quase dezembro”. 

As figuras de som predominam, pois o ritmo é constante, quebrado por palavras e/ou expressões como “eu vou”, no final de cada estrofe. A aliteração pode ser notada na repetição de sons consonantais (consonância) quanto de sons vocálicos (assonâncias), como nos versos: “Entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone, no coração do Brasil.”: repetição do som do fonema “F”. Nos versos “Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro”, percebe-se a presença do fonema /k/. Também nos versos “entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone, no coração do Brasil”, percebe-se a presença dos sons vocálicos de /em/. O que se repete também nos versos “sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro”. 

Conclusão do ponto de vista estilístico: Alegria, Alegria é uma canção que pode ser definida como um poema. Sua história acontece no presente, sendo que o eu – lírico “desenha” a história por meio do pronome EU, 1ª pessoa do singular. No entanto, não tende ao egocentrismo ou narcisismo, apenas posiciona-se como um lutador contra a repressão militar. 

Para provocar a ideia de uma marcha contra a ditadura utiliza-se de fonemas duros que remetem ao marchar dos militares (e até dos civis unidos em direção aos repressores) e fonemas frios que remetem ao som dos tiros e bombas, itens bastante presentes nas ruas, neste período.

Em contrapartida, há também a denúncia da alienação a partir de ídolos impostos e fabricados pela mídia “exterior” (Brigitte Bardot, francesa e Claudia Cardinale, atriz italiana), que infundiam um comportamento novo. 

Texto originalmente escrito em 4 de maio de 2010
*Editora do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm


.: Breve análise estilística de neologismos e virtualidade

Análise estilística: Neologismos e virtualidade
Por: Mary Ellen Farias dos Santos*
Em janeiro de 2015*


Sabe-se que neologismo é o emprego de palavras novas, derivadas ou formadas de outras já existentes, na mesma língua, ou seja, a atribuição de novos sentidos a palavras já existentes na língua, portanto, o conto "Sangue da avó manchando a alcatifa", do escritor português Mia Couto é um texto referencial para destacar neologismos, entre eles estão improvérbio, luscofuscava e desconseguiram.

O neologismo improvérbio assume o sentido de negação de um provérbio -frase curta que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou uma regra social ou moral-, ou seja, um não provérbio. Ao inventar luscofuscava o autor transforma este substantivo masculino em verbo conjugado, ou seja, ele "coloca-o" no pretérito aquilo que se trata de um momento de transição entre o dia e a noite, crepúsculo vespertino, o anoitecer. Outro neologismo interessante é desconseguiram. Para dizer que quando "tentaram lavar" não conseguiram, o autor cria uma nova e diz que desconseguiram, ou seja, a ação foi contrária.

Considerando que virtualidade é uma realidade que pode ser, poderia ter sido e poderá vir a ser. Esta criação de palavras que permeia os idiomas esbarra na linguagem virtual, pois é a partir da criação, que esta nova palavra tem a chance de existir, desta forma, ela era algo que poderia ter sido (poderia ter sido outra palavra “diferente/nova” da que foi), algo que pode ser (a palavra criada) e algo que poderá vir a ser (a palavra criada passa a ser incorporada no vocabulário de determinado idioma e, posteriormente, inclusa no dicionário).

Mia Couto, em especial, é um escritor, criador de histórias, que mergulha nas profundezas da Língua e cria também outras palavras.


*Editora do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm

*Texto originalmente escrito em 10 de novembro de 2010

domingo, 7 de dezembro de 2014

.: Análise de “O Plano de Metas – Compromisso Todos Pela Educação”

Por Helder Miranda
Em maio de 2014


O Plano de Metas “Compromisso Todos Pela Educação” se fosse indiscutivelmente aplicado, e não ficasse apenas na teoria, seria ótimo. Mas já no título que apresenta demonstra incoerência – “Todos pela educação”. Todos quem? Todos é uma palavra muito ampla, envolve todos os setores envolvidos, inclusive família, profissionais que trabalham na escola e até alunos, como se todos fossem cúmplices em prol de algo maior.

Deveria ser assim, mas sabe-se, sem generalizar, que há famílias que se envolvem e outras que colocam uma criança na escola para se exaurir da responsabilidade e dos aborrecimentos que ocasionam dentro de casa – barulho, bagunça, horários, etc.. Existem profissionais sérios e outros que não cumprem nem o papel que lhes é atribuído. Mas, mais grave que isso, é o próprio governo – representado neste plano de metas como União, Estados, Distrito Federal e Municípios – que, é nítido, relega à educação a segundo e terceiro planos, com salários baixos, falta de infraestrutura, dirigentes desinteressados e, além disso, a crescente falta de autonomia e de iniciativas que protejam professores dentro das salas de aula. Tudo em prol da “melhoria da qualidade da educação básica”, como afirma o artigo 1º.

Este termo, por sinal, também está errado. A “educação básica” deveria vir de casa, de berço, enquanto as escolas deveriam vir com a “educação complementar”. Dentro deste contexto, o que seria, então, uma “educação intermediária”, ou “educação avançada”?. São perguntas que não são fáceis de responder, mas deixam nítida a intenção de eximir o governo da responsabilidade maior e, enquanto existir essa mentalidade de “educação básica”, as coisas realmente ficam difíceis para o setor.

No item I do 2º artigo tem como meta estabelecer como foco a aprendizagem, aprontando resultados concretos a seguir. Correto, porque até um aluno ter resultados não satisfatórios não deixa de ser um resultado concreto. O problema se torna quando estas informações são “maquiadas”, até por bonificações, que acontecem.

O item II determina que as crianças devem ser alfabetizadas até alcançarem os oito anos. O que se vê não é bem isso. Há analfabetos funcionais entre as classes, seja nos ensinos básico, fundamental ou médio. Então, isso não é cumprido, pois, na maioria das vezes, os professores são obrigados a “fechar os olhos” e aprovar alunos que não sabem ler ou escrever.

O III item segue com outro impropério: “acompanhar cada aluno individualmente”, em uma realidade de salas que podem chegar a mais de 40 alunos. Praticamente impossível! O combate à repetência no item IV acontece, de certa forma, de uma maneira até “não declarada”, pois algumas séries, exatas, não repetem de ano. A adoção de práticas com aulas de reforço no contra-turno, estudos de recuperação e progressão parcial não acontecem em todas as escolas, então, se o Governo quisesse efetivamente que isto fosse realizado, deveria fiscalizar esta questão.

Combater a evasão escolar está previsto no item V. Não entendo como é possível o acompanhamento individual das razões de não-frequência de um educando, mas é válida a intenção, embora eu acredite que várias questões estão intrinsicamente ligadas e vão além da educação – as áreas de assistência social e saúde também deveriam ser contempladas.

Matricular o aluno na escola mais próxima da residência, no item VI, ótimo, mas todos sabem que há escolas em que não há vagas para a demanda, então, na prática, pode não acontecer. No VII item, ampliar as possibilidades de permanência do educando na escola, além da jornada escolar, também é uma boa iniciativa. Em Santos, há o programa “Escola Total – Jornada Ampliada”, que preenche o tempo de alunos da rede municipal com atividades esportivas e culturais. Mas, obviamente, não abrange a todos. 

O VIII item, sobre valorizar a formação ética, artística e a educação física eu acho muito improvável. Porque não se têm muitas questões éticas voltadas para o ambiente escolar e o professor fica sobrecarregado de ensinar alguma coisa além da matéria, para muitos alunos na sala de aula. A questão ética talvez devesse ser tratada como algo extracurricular, ou talvez o professor devesse abrir espaço para debates sobre assuntos pontuais. Quanto à educação artística, discordo, tendo em vista que na maioria das salas de aula, esta matéria ainda é tratada, tanto pelas escolas quanto pelos alunos, como uma atividade menor. Não há incentivo para que o aluno goste de arte ou queira se aprofundar. Já na educação física, são cumpridas as aulas, mas na maioria dos casos também não há professores comprometidos a ponto de motivar alunos a se exercitarem, ou o próprio professor detectar novos talentos.

O IX trata da educação inclusiva. Hoje, mais do que antes, acontece de alunos com necessidades especiais frequentarem classes comuns, quando antes eram isolados da sociedade. Mas não é o suficiente. A inclusão deve começar de casa, e se alastrar a todos, do servente da escola, ao diretor, passando pelos alunos, saibam lidar com as diversidades.

Promover a educação infantil é o décimo item. O governo mantém as escolas abertas, e matricula regularmente alunos. Mas será isso suficiente? O programa de alfabetização de jovens e adultos, no 11º item, é uma iniciativa que funciona, nas escolas em que é realizada, porque há gente querendo aprender e sem mais tempo a perder. Pode ser uma maneira de ressocializar e, principalmente, abrir novas perspectivas.

A formação continuada de profissionais da educação, prevista no item XII, é algo que acontece. Vários cursos online e presenciais são oferecidos aos professores, que podem encontrar, a partir desta iniciativa, uma maneira de se manterem atualizados. O plano de carreira, cargos e salários de um professor, privilegiando o mérito, a formação e a avaliação do desempenho, nos itens XII  e XIV é algo que desconheço, talvez por ainda não atuar na área, mas principalmente pela classe ser tão desvalorizada.

A estabilidade após o período probatório, prevista no item XV, é real, e por isso ainda atrai muitos profissionais, que sabem que entrar em um concurso público como professor pode ser mais fácil, pelo excesso do número de vagas – que nunca é preenchido, pois, como todos sabem, sempre falta professor.
O envolvimento dos professores no projeto político pedagógico, previsto no item XVI, acontece de acordo com a vontade da direção. Já ouvi relatos de que os professores realmente participam, com sugestões e propostas e, por outro lado, profissionais, além de não participarem da elaboração, recebem projetos pedagógicos impostos. No item XVII, incorporação de coordenadores pedagógicos, realmente acontece, alguns realmente acompanham as dificuldades enfrentadas pelo professor e intermediam, junto à direção, a busca de soluções. Mas, em outros casos, há coordenadores que simplesmente ignoram os problemas e “lavam as mãos”, sem nada a fazer. Esses méritos também são contemplados, de acordo com o item XVIII, considerando mérito e desempenho, nomeação e exoneração de um diretor da escola. 

O item XIX prevê a divulgação na escola e na comunidade o IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica da escola, o que, na prática, não acontece. Assim como no item XX, que determina o acompanhamento e avaliação, com a participação da comunidade do Conselho de Educação, as políticas públicas na área de educação para garantir condições para continuidade das ações efetivas. São tantas coisas que não acontecem, que o item XXI, que determina que zelar pela transparência da gestão pública na área de educação, garantindo o funcionamento, principalmente autônomo e articulado dos conselhos de controle social e o XXII, o de promover a gestão participativa na rede de ensino – o que acontece com bem poucas escolas.

“Quando existentes”, elaborar um plano de educação e instalar Conselho de Educação. Coerente que a lei prevê a não-existência, principalmente para o Conselho de Educação, que é raro existir. Eu acredito que até tentam integrar saúde, esportes, assistência social e cultura dentro dos programas de educação na escola. Mas as ações, ainda assim, são insuficientes, porque apenas dentro do contexto escolar não é o suficiente, mas vale a intenção, se for executada. 

O envolvimento de famílias e apoio aos conselhos escolares, para zelar pela manutenção das escolas e monitorar as ações e metas, prevista no item XXV, é utópico, mas bem-intencionado. Efetivamente, nas escolas em que isso acontece, o que deve ser raro, pode fazer a diferença – se as famílias realmente se envolverem, o que não deve ser fácil também.

Da mesma forma, soa utópico o item XXVI, com a sugestão de transformar as escolas em espaços comunitários para manter e recuperar equipamentos públicos. Se a escola realmente contasse com o envolvimento de pais, responsáveis ou membros da comunidade, muita coisa do que se sabe que é realidade dentro da instituição e do próprio entorno dela não aconteceriam.
As parcerias externas, com o objetivo de tornar possíveis projetos socioculturais, ações educativas e visando a melhoria da infraestrutura das escolas, como previsto no item XXVII, simplesmente não acontece. Até porque a direção das escolas não têm essa autonomia que estas leis querem passar. A  autoridade das escolas não têm autonomia, muitas vezes não têm interesse em fazer um comitê com representantes dos setores público e privado.

Em poucas palavras, o Plano de Metas Compromisso Todos Pela Educação é, no mínimo, questionável. Para não dizer, de uma maneira pouco respeitosa, risível. Na maioria das vezes, não é culpa da direção, dos professores, nada disso. É culpa do governo, que não cumpre o que ele estabelece como meta ou norma.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

.: "O Pagador de Promessas" e a tentação de Cristo no deserto

Por: Mary Ellen Farias dos Santos
Em outubro de 2014


No filme e na peça teatral "O Pagador de Promessas", o cumprimento de uma promessa é o fio condutor da ação, e, ao mesmo tempo uma metáfora que está acima das ideias e dos conhecimentos ordinários da questão religiosa. 

A promessa de Zé-do-burro origina metáfora que transcende a religiosidade pelo fato de um homem humilde e inocente carregar consigo uma cruz igual à da figura central do cristianismo: Jesus Cristo, aquele que é a encarnação de Deus e o "Filho de Deus", enviado à Terra para salvar a humanidade. De fato, há aproximação entre ambos, afinal muitos professam a fé de Jesus Cristo foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos e ressuscitou no terceiro dia.

A situação de Zé é semelhante, pois todo o seu esforço foi feito por outo ser vivo, o seu melhor amigo, um burro. Desta forma, ao seguir com a promessa, do Nordeste do Brasil, a Salvador, local em que há a igreja de Santa Bárbara, Zé é acompanhado pela esposa, Rosa. Ela por sua vez o tenta a desistir da promessa, o que permite uma leitura significativa. Enquanto ele carrega a cruz para salvar o burro, ela também tem a função de ser uma representante do anjo mau, pois insiste para que ele desista de tudo. Da mesma forma, que aconteceu com Cristo, na passagem bíblica “Jesus tentado no deserto” (Mt 4,1-11).

A figura de Zé-do-burro estabelece proximidade com a de Jesus Cristo, tanto é que há quem acredite no seu poder de cura. Em contrapartida, ao ser visto como um novo Cristo, por sua jornada até a igreja de Santa Bárbara, Zé também é associado ao próprio demônio, principalmente pelo Padre responsável do local, que proibe a entrada do homem na igreja. 


Logo, assim como Cristo, Zé ganhou seguidores e perseguidores. Já no final, os manifestantes colocam o corpo morto de Zé em cima da cruz e entram à força na catedral. Este cena remete novamente ao calvário de Cristo, mas, por fim, pode representar a ascensão de Cristo, pois Zé levado pelo outros para junto de Deus (a igreja), em uma cruz (sendo que Cristo, afinal foi retirado da cruz), sendo que a igreja fica no alto da escadaria (a ascensão do corpo), local em que Zé tanto esperou horas para poder cumprir o seu objetivo, que era o de entrar na igreja de Santa Bárbara com a cruz.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

.: "O Pagador de Promessas" é inocente ou omisso?

Por: Mary Ellen Farias dos Santos
Em outubro de 2014


Inocente ou omisso? De acordo com o Dicionário Houais da Língua Portuguesa, inocente é um adjetivo de dois gêneros que significa: que não faz mal, não é nocivo; inócuo, inofensivo; destituído de segunda intenção, de malícia; que denota candura; singelo, puro ou adjetivo de dois gêneros e substantivo de dois gêneros: diz-se de ou pessoa não conspurcada pelo pecado, pelo mal; que ou quem é inexperiente nas coisas do amor; diz-se de ou criança de tenra idade; rubrica: direito civil, direito penal, que ou aquele que não cometeu ato ilícito, penal ou civil. Já omisso é um adjetivo, aquele que se omitiu ou se omite; que não se manifesta ou não se manifestou; que deixou de mencionar ou fazer algo; que é dado ao esquecimento ou não faz o que deveria; que revela ou age com negligência; descuidado, negligente; em que há omissão; que contém falha ou lacuna.

Considerando a definição acima, tomando como objeto de estudo o texto da peça teatral "O Pagador de Promessas" do dramaturgo brasileiro Dias Gomes e a adaptação brasileira do filme homônimo, de 1962, escrito e dirigido por Anselmo Duarte, fica possível apontar as diferenças e semelhanças entre ambos. 

Um bom exemplo para ilustrar uma modificação já é a cena inicial. Na criação de Dias Gomes, às escuras, um jato de luz apresenta uma pequena praça onde desembocam duas ruas, enquanto que no filme brasileiro de 1962, adaptado por Anselmo Duarte, às escuras, escuta-se um batuque, sendo que, consequentemente são apresentados aqueles que fazem o som e cantam em um terreiro de candomblé.

Contudo, deve-se salientar que esta é uma adaptação, logo baseada no texto teatral de Dias Gomes. Ao ajustar um texto existente para os cinemas é preciso de dinamismo e agilidade, pois cinema e teatro são meios diferentes. Portanto, a dimensão do gênero textual deve ser respeitada para que possa aceito e compreendido.

Uma das maiores diferenças entre ambos está no texto. Ao comparar o original de Dias Gomes com o trecho do filme de 1962 (cena: 16 minutos 09 segundos a 17minutos 41 segundos), nota-se que, para o meio cinematográfico, o texto sofreu alterações: cortes, modificações ou acréscimos. 


Um exemplo de corte está apresentado no diálogo a seguir. Inicialmente o texto de Dias Gomes completo: 

“BONITÃO - (Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível) A senhora faz mal em ser tão descrente. Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida? E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador?

ZÉ - (Muito ingenuamente) O senhor não era fiscal do imposto de renda? Agora é pagador de Santa Bárbara...

BONITÃO - Meu caro, com o custo de vida aumentando dia a dia, a gente tem que se virar. Mas não é esse o caso. Digo que Santa Bárbara já deve estar tratando de liquidar o débito hoje contraído com sua senhora, porque me fez passar por aqui esta noite.

ZÉ - Não vejo nada de mais nisso.

BONITÃO - Porque o senhor não sabe que eu posso, em cinco minutos, arranjar uma boa cama, com colchão de mola, num hotel perto daqui.” (DIAS GOMES, 1960)

A seguir o texto da adatapção de Anselmo Duarte:

“BONITÃO - (Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível) A senhora faz mal em ser tão descrente. Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida? E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador?

ZÉ - (Muito ingenuamente) O senhor? 

BONITÃO – Sim! Porque o senhor não sabe que eu posso, em cinco minutos, arranjar uma boa cama, com colchão de mola, num hotel perto daqui.” (ANSELMO DUARTE, 1962)

Esta ruptura no diálogo deixa a impressão de que Zé-do-burro não é tão inocente, apenas deixa a impressão de ser um homem omisso quanto ao que pode acontecer com a esposa Rosa, caso a deixe ir com o Bonitão. Em contrapartida, no texto original o Bonitão usa de artimanha para convencer um homem inocente, o que descaracteriza, brevemente, o protagonista da história.

Há também modificações simples no texto, como por exemplo, neste trecho. A seguir o texto de Dias Gomes:

“ZÉ - Eu não posso. Tenho que esperar abrir a igreja. Se soubesse que não iam roubar a cruz...

BONITÃO - (Rapidamente) Oh, não, a cruz não deve ficar sozinha. Esta zona está cheia de ladrões. A cruz é de madeira e a madeira está caríssima.”

Abaixo a modificação na fala de Zé-do-burro e de Bonitão, sendo que o trecho final do diálogo foi cortado no filme: “A cruz é de madeira e a madeira está caríssima”.

ZÉ – Obrigada, mas eu não posso. Tenho que esperar abrir a igreja. Se soubesse que não iam roubar a cruz...

BONITÃO - (Rapidamente) É sim! O senhor não deve deixar a cruz sozinha. Esta zona está cheia de ladrões.”


O jogo de palavras é mantido, tanto no texto teatral quanto no cinematográfico. No entanto, é no segundo texto que o duplo sentido pode ser mais facilmente percebido, não só na encenação de Zé Bonitão, mas pelo fato de anteriormente Rosa dizer que uma cruz Zé-do-burro carrega e a outra vai atrás dele. Quando Bonitão fala que não se deve deixar a cruz sozinha, pois há ladrões na região, o jogo de palavras é ainda mais reforçado, pois fica evidente que Bonitão refere-se à mulher, não à cruz de madeira. Bonitão é o grande ladrão da região.´

O texto apresenta outros cortes e modificações, mas também acréscimos e detalhes que não estão no texto original de Dias Gomes, como por exemplo, o nome do hotel. Na produção de Anselmo Duarte, o hotel tem o nome de Ideal. No texto, que aparece abaixo, acrescenta uma frase: “Além do mais, essa história de hotel não está no trato”.

“ZÉ - É o que eu acho. Não devo sair daqui. Além do mais, essa história de hotel não está no trato”

Uma mudança brusca do original é o final da cena analisada acima. Por Dias Gomes, Zé, “senta-se ao pé da cruz e procura uma maneira de apoiar o corpo sobre ela. Aos poucos, é vencido pelo sono. As luzes se apagam em resistência”, enquanto que no filme ele apenas abraça a cruz e rapidamente corta para Rosa e Bonitão correndo na chuva, com destino ao hotel.

No filme o personagem Bonitão é mais astuto, pois percebe rapidamente o quanto Zé-do-burro é inocente, sendo que na peça teatral ele trabalha mais o seu discurso para conseguir convencê-lo. Por outro lado, Rosa mostra ser uma mulher omisssa. Na peça, Rosa é aquela que tem como objetivo a satisfação de seus próprios interesses, pois casa-se com aquele que tem terras, o “melhor” homem da região. 

Já no filme, apesar de estar muito interessada em ter uma cama para dormir, ela, inicialmente, não confia em Bonitão e até rebate Zé a respeito da ideia de deixá-lo e seguir até um hotel, acompanhada por um estranho. Contudo, a sede por um homem, acaba jogando-a nos braços de Bonitão.

A inocência de Zé pode ser destacada novamente quando ele nem mesmo percebe o ocorrido entre a mulher e o Bonitão, na noite anterior. Por sua vez, Rosa omite o fato, o quanto pode e somente quando não consegue lidar com a situação, revela. 

De ingenuidade tamanha, Zé-do-burro não é somente enganado por Bonitão, mas também pelos praticantes de candomblé que tentam usá-lo como líder contra a discriminação que sofrem da Igreja Católica e os jornalistas sensacionalistas que transformam a promessa de dar a terra -o que ele fez antes de seguir até a igreja de Santa Barbára- aos pobres em grito pela reforma agrária.

O cenário no filme com a visão do diretor é muito diferente do apresentado no texto teatral, em que, apesar dos detalhes descritos, permite que o leitor imagine o espaço, ou seja, cada um tem o seu próprio cenário, de acordo com a imaginação. 

Algumas adaptações realmente falham na transposição, retirando, até mesmo, informações importantes do texto original. Há também situações em que as adaptações são melhores recebidas pelo público do que o texto original. Acredito que há espaço para ambos, porém nada é mais agradável do que a leitura de um texto original, ou seja, é preciso beber da verdadeira fonte, para que, então, tenhamos a opinião formada antes de ter acesso à outras visões.
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