sábado, 20 de setembro de 2025

.: Entrevista com Daniel Perroni Ratto: poeta assume o risco da insubordinação


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com.

Daniel Perroni Ratto escreve para se expor. Em "Destemida Ferrabraz", publicado pela editora Algaroba, sétimo livro dele, o poeta, jornalista e editor decide encarar um dos maiores riscos que um escritor homem pode correr na contemporaneidade: falar com e através da voz feminina. Mas o que poderia soar como apropriação, vira, nas mãos dele, um gesto de reverência, insubordinação e amadurecimento.

Entre o épico medieval de Ferrabrás, os cordéis de Leandro Gomes de Barros e as panelas fumegantes da avó dele, Dagmar, no Ceará, o poeta compõe um caleidoscópio em que o feminino não é metáfora distante, mas presença íntima. A cada resposta, ele mostra que a “destemida” não nasceu apenas da imaginação, mas do sangue, do suor e da cabidela feita no alpendre.

Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, Daniel Perroni Ratto fala sobre amadurecimento, erros reconhecidos, a arrogância masculina que precisa ser desarmada, e a poesia como possível antídoto - ainda que microscópico - contra a violência de gênero. Com a coragem de quem sabe que a palavra nunca basta, mas sempre insiste, Ratto transforma lembrança em verso e transforma verso em corpo.


Resenhando.com - Você diz que “Destemida Ferrabraz” traz à tona o feminino do seu eu-lírico. Como é que um homem aprende a calar a própria voz para dar lugar à de tantas mulheres silenciadas?
Daniel Perroni Ratto - Na verdade, se reparar, nunca disse que “Destemida Ferrabraz” traz à tona. A poeta e produtora cultural Marta Pinheiro, no posfácio e quarta capa, a escritora, poeta finalista do Jabuti, Íris Cavalcante e o icônico professor da UFC e jornalista, Ronaldo Salgado, tiveram a mesma leitura em seus textos, pois o livro assim se apresenta, creio. Sobre calar a própria voz, a gente aprende na lida, na vida, na família. A capa do livro, linda pintura da escritora e artista plástica, Deborah Dornellas, representa as matriarcas da minha família, do lado paterno, lá no Ceará. Então, desde pequeno, o respeito e a reverência. Também aprendemos a olhar para nossos próprios erros, a reconhecê-los e não querer mais fazê-los, pois o machismo é estrutural, é milenar. Esse processo é um aprendizado de toda uma vida, até pegar aquela carona para além-mar.


Resenhando.com - “Ferrabraz” é nome de cavalo bravo, de serra do Sul, de personagem mitológico. Em que medida essa destemida figura feminina do título é uma invenção poética e em que medida ela é autobiográfica?
Daniel Perroni Ratto - Deixo aqui, o que escrevi em nota, no livro: "Minha avó do Ceará, Dagmar Ferreira da Costa, tinha o apelido de Ferrabraz, que no Nordeste é sinônimo de gente valente, forte, destemida, corajosa, dura e até bruta". Ela era assim. A origem da palavra “Ferrabraz” vem da idade média, de poemas épicos, alexandrinos e assonantes, apareceu primeiro em francês antigo e contava a história de Ferrabrás, um gigante, cavaleiro sarraceno, rei de Alexandria e filho de Balão (Balan), emir da Espanha muçulmana, que enfrenta os paladinos do rei francês, Carlos Magno. Existem adaptações em holandês, inglês e italiano, na Renascença. Em Portugal, desenvolveu-se no século XV, através de folguedos e autos populares. Aqui, no Brasil, virou literatura de cordel sob a pena de um dos mais importantes cordelistas, o recifense, Leandro Gomes de Barros (1865-1918), que escreveu os folhetos “Batalha de Oliveiros com Ferrabrás” e “A Prisão de Oliveiros”. Ferrabrás virou o adjetivo Ferrabraz e foi se popularizando pelos sertões. Pois sim, este livro, para além de tudo que diz, é uma homenagem às mulheres nordestinas que sobrevivem às condições áridas de suas regiões natais e às mulheres retirantes, feito minha avó, que saiu do Ceará e criou seis filhos fazendo marmita em Santos, litoral do Estado de São Paulo.


Resenhando.com - Em tempos em que o termo “lugar de fala” gera ruído e medo entre escritores homens, você decidiu mergulhar de cabeça numa poética feminina. Em algum momento pensou: “isso pode dar ruim”?
Daniel Perroni Ratto - Nunca pensei se podia dar errado. O que seria do poeta ou de qualquer artista se não pudéssemos sentir a poesia no outro, no mundo, no universo?


Resenhando.com - Se a poesia fosse um corpo, qual parte você acha que “Destemida Ferrabraz” representa: o útero, o punho ou a garganta?
Daniel Perroni Ratto - "Destemida Ferrabraz" representa o corpo do etéreo, da matéria escura, dos átomos, da poesia.


Resenhando.com - O livro parece ser tanto um ato de reverência quanto um gesto de insubordinação. Qual mulher da sua vida - morta ou viva - você acredita que se irritaria mais com o livro?
Daniel Perroni Ratto - Sim, pode ser, também, reverência, já dita em outra resposta. Insubordinação sim, ao status quo milenar de dominância do macho-alfa. Por que você acha que as mulheres se irritariam com o livro?


Resenhando.com - Você já escreveu sobre São Paulo, amor, delírio e drinques flamejantes. Agora, decide escrever sobre mulheres com uma intensidade quase mística. O que aconteceu com você nos últimos anos para esse deslocamento acontecer?
Daniel Perroni Ratto - Aconteceu aquela coisa de amadurecer, saca? Tudo tem sua hora, não é mesmo? O sentimento e a intuição vão fluindo do subconsciente (há quem diga que não existe), ao mesmo tempo em que a cognição se expande. Alguns livros que li durante a adolescência e não entendi porra nenhuma, quando adulto, os li novamente e, entendi, compreendi e senti.


Resenhando.com - A crítica diz que seu novo livro é uma travessia entre o masculino e o feminino. Que homem você era antes de escrevê-lo - e que homem sobrou depois da última página?
Daniel Perroni Ratto - Aprendi ao longo da vida a reconhecer meus erros, tomar a responsabilidade por eles e decidir que não quero repeti-los. Essa construção não é de uma hora para outra e só acontece se deixarmos o ego, a arrogância, a soberba, de lado. E como disse ali, ela só cessará no último respiro.


Resenhando.com - Avó Dagmar, tia Mirtes e a poeta Laís aparecem como pilares da sua travessia poética. Se uma delas pudesse narrar “Destemida Ferrabraz” no seu lugar, o que mudaria na história contada por você?
Daniel Perroni Ratto - A história de vida delas, penso, é a própria narrativa de cada uma delas.


Resenhando.com - Você acredita que a poesia pode ser um antídoto contra a violência de gênero - ou ela ainda é um terreno muito confortável para o machismo?
Daniel Perroni Ratto - Acredito sim. Mesmo que em nanoescala. Um grão de areia. Claro que entre os pares, a literatura ainda é muito machista. Lembro de estar numa mesa de boteco, há uns dez anos, com a poeta Alice Ruiz e o poeta Lau Siqueira, em São Paulo. Conversávamos exatamente sobre isso e eu comentei que o termo “poetisa” foi criado no século XIX por homens poetas, com uma conotação depreciativa ou condescendente. Falei do poema de Cecília Meireles, “Motivo”, onde ela se afirma poeta: “Eu canto porque o instante existe/e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste:/sou poeta”. Nessa hora, a Alice falou que era isso mesmo, a palavra poeta já era uma palavra feminina e o homem, se quiser, que seja poeto.


Resenhando.com - Se a “Destemida Ferrabraz” pudesse levantar da página e encarar o poeta que a inventou, o que ela te diria que você ainda não teve coragem de escrever?
Daniel Perroni Ratto - Se a Destemida Ferrabraz que deu nome ao livro, minha avó Dagmar Ferreira, lá do fogão a lenha do alpendre do sítio, cozinhando uma galinha a cabidela, diria: “Niel, pegue o sangue que deixei ali e um mói de coentro no terreiro”. Galinha a cabidela sem sangue e sem coentro inexiste, saca?

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