Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Bel Pedrosa
Há algo de poético em ver um matemático virar texto de vestibular. Marcelo Viana, diretor-geral do IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) e um dos maiores nomes da ciência brasileira, acordou um dia e descobriu que suas palavras estavam sendo “avaliadas” por milhares de jovens na UERJ (Unoiversidade do Estado do Rio de Janeiro). Justo ele, que há anos tenta mostrar que a matemática é mais humana do que parece - feita de dúvida, descoberta e espanto.
Autor de "Histórias da Matemática: da Contagem nos Dedos à Inteligência Artificial", publicado pela editora Tinta-da-China Brasil, Viana acaba de ser lido por um público que talvez ainda não saiba que também faz parte dessa história. Ele agora está de volta às livrarias com "A Descoberta dos Números", um livro ilustrado que transforma a curiosidade em caminho.
Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, Marcelo Viana fala sobre o medo que a escola criou da matemática, a beleza escondida nas equações, o papel da inteligência artificial e as surpresas de quem vive entre o caos e a ordem, tanto na teoria quanto na vida cotidiana. Leia a crítica do livro - Antes do “pix” e da fatura do cartão, havia uma ovelha e Marcelo Viana conta - neste link.
Resenhando.com - Seu livro "Histórias da Matemática" virou texto de vestibular e agora “examinou” milhares de estudantes. O que é mais assustador: estar diante de uma banca de especialistas ou ver seu próprio texto servir de filtro para futuros universitários?
Marcelo Viana - De repente me ver no lugar dos autores daqueles textos que estudei na escola. Por alguma razão, lembro particularmente de Érico Veríssimo... Foi um pouco assustador: lisonjeiro, claro, mas um pouco intimidador. Mas o mais assustador foi o pensamento: “Será que eu sei responder as perguntas sobre o meu texto?”.
Resenhando.com - O senhor transita entre a teoria do caos e a contagem nos dedos. No fundo, a matemática é mais sobre ordem ou sobre desordem?
Marcelo Viana - A matemática é sobre o universo, sobre tudo o que nos rodeia. Tanto a ordem quanto o caos estão incluídos. Como seres pensantes, nós precisamos estruturar as nossas percepções, organizar para compreender. Passei boa parte da minha vida como matemático identificando padrões, organizando o caos.
Resenhando.com - Muitos têm medo da matemática como se fosse um monstro inatingível. Na sua opinião, a escola mata mais sonhos matemáticos do que estimula?
Marcelo Viana - Eu acredito que o gosto pela matemática é inato a (praticamente) todos nós. Em seguida, as experiências dos primeiros anos moldam o modo como realmente nos relacionamos com a disciplina. Primeiro no seio da família, logo nos bancos escolares. É bem cedo, na primeira infância que o que vivenciamos determina se a matemática vai ser um pesadelo ou uma fonte de prazer.
Resenhando.com - O livro "A Descoberta dos Números", é ilustrado e acessível. Isso é uma estratégia de “popularizar” ou, secretamente, de mostrar que até os grandes teoremas cabem num traço de desenho?
Marcelo Viana - Esse livro nasceu sozinho: ele já existia, do jeito que ele é, bem antes de eu tomar consciência disso. Foi durante uma conversa com a editora, a Sofia Mariutti, que eu me apercebi: “Peraí, isso que vem passando pela minha cabeça constitui um pequeno livro sobre um tema fascinante”. Estou exagerando, claro. Durante a escrita eu conversei com colegas que me inspiraram a ir mais além, o próprio pessoal da Tinta-da- China Brasil contribuiu com várias ideias ótimas, e o belo traço do Rafael Sica transformou as ilustrações em algo diferente. Mas o conceito de um livrinho que conta a todo mundo o fascínio da aventura dos números, sem fugir nunca da verdade matemática, lançando mão de diferentes recursos para falar com diferentes pessoas ao mesmo tempo, esse a Musa trouxe prontinho da caverna de Platão.
Resenhando.com - Se o senhor pudesse escolher uma única equação para ser lida em voz alta todos os dias pelas pessoas, como um mantra, qual seria?
Marcelo Viana - “Muitas eras devem ter passado antes que alguém se apercebesse de que um par de dias é um casal de pássaros são, ambos, manifestações do número dois”, frase de Bertrand Russel. Pode não parecer uma fórmula como as pessoas entendem fórmulas, mas isso é intencional. Uma fórmula é apenas uma forma compacta (e muito útil) de expressar uma ideia. Infelizmente, muitas vezes ficamos com a fórmula e ignoramos a ideia. Mas a ideia é tudo. E nessa frase Russel descreve, melhor do que ninguém, uma das grandes façanhas do intelecto humano: a descoberta do número.
Resenhando.com - O senhor já ganhou prêmios importantes, como o Louis D. na França. Mas no Brasil, onde a ciência é sempre disputada com a precariedade, qual é o verdadeiro prêmio: o reconhecimento externo ou a resistência diária para manter a pesquisa viva?
Marcelo Viana - O apoio à ciência no Brasil hoje é precário e amplamente insuficiente. Quando eu era recém doutor e decidi ficar no país e me tornar pesquisador, ele era essencialmente inexistente. Então precisamos reconhecer os avanços e ir à luta por cada vez mais apoio e melhores condições para a pesquisa científica. Para mim, o prêmio maior é ajudar a construir o futuro, sobretudo a satisfação de formar jovens pesquisadores talentosos. A satisfação de ver seu orientando ter suas primeiras ideias originais não é muito diferente do que sentimos quando um filho bebê dá os primeiros passos.
Resenhando.com - O senhor acredita que os números são descobertos ou inventados? E o que essa resposta revela sobre como vemos a realidade?
Marcelo Viana - (Risos) Eu sou platônico, tal como a maioria dos matemáticos: acredito que as ideias matemáticas fazem parte do tecido da realidade e que a nossa tarefa é descobri-las. Euler observou que se contarmos o número de faces (F), de arestas (A) e de vértices (V) de qualquer poliedro, o valor de F-V+A é sempre 2. O que tem de inventado nisso? É uma lei do universo, tanto quanto a lei da gravitação de Newton ou as leis do eletromagnetismo de Maxwell.
Resenhando.com - A inteligência artificial, tema abordado em "Histórias da Matemática", já começa a resolver problemas que antes eram exclusivos de matemáticos. Há um risco real de a IA tornar o matemático obsoleto - ou a máquina ainda precisa aprender a errar com criatividade?
Marcelo Viana - Algumas décadas atrás acreditávamos que a máquina nunca poderia jogar xadrez melhor do que nós, porque ela seria ensinada por humanos e portanto não poderia nos ultrapassar. Então Deep Blue venceu o campeão do mundo, Gary Kasparov. E hoje em dia as máquinas nem precisam ser ensinadas por humanos para jogarem de um modo que nós nunca conseguiremos. Mas isso não tornou o xadrez obsoleto, nem diminuiu o prazer em jogá-lo. Eu acredito que não está longe o dia em que algoritmos resolverão problemas matemáticos e provarão teoremas importantes e, portanto, nos ajudarão a fazer avançar o conhecimento. Mas não acredito que isso torne o matemático humano obsoleto.
Resenhando.com - Como diretor do IMPA, o senhor lidera um espaço de elite da ciência brasileira. Mas se tivesse que ensinar matemática para uma turma de alunos do ensino médio de periferia, por onde começaria?
Marcelo Viana - Esse é um enorme desafio, provavelmente o maior na minha área de atuação. Acho que eu começaria tentando buscar um tema do interesse dos alunos e levar a turma a se debruçar sobre esse tema para entendê-lo e identificar um conceito matemático nele. Não sei qual tema, mas acho que teria que ter a forma de um desafio, com um resultado concreto em vista. Provavelmente eu falharia na primeira tentativa rsrsrs Mas sei muito bem o que eu não faria: “Hoje vamos estudar a fórmula de Baskhara”…
Resenhando.com - O senhor vive imerso em sistemas dinâmicos e caos. Mas, no plano pessoal, o que mais bagunça sua própria rotina: números, política científica ou o inesperado da vida cotidiana?
Marcelo Viana - Eu sou bastante organizado, o meu instinto é planejar as coisas tanto quanto possível. Mas do jeito como as coisas funcionam no Brasil isso não é nada fácil. Os meus colegas do exterior se surpreendem que a minha agenda para daqui 1 ano parece totalmente livre, quando a deles já está bem lotada. Eles nem imaginam como a minha agenda para mês que vem está, menos ainda as mudanças que estão acontecendo neste exato momento na agenda da semana que vem (risos).
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