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terça-feira, 29 de julho de 2025

.: Rafael Dentini, o homem que virou Elton John, responde sem piedade


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação

Com mais de meio século de carreira, Elton John é daqueles artistas que atravessam décadas, estilos e gerações. Ícone da música pop mundial, as canções dele embalaram amores, despedidas e revoluções pessoais - e ainda seguem ecoando, mesmo para quem nasceu muito depois de "Your Song" tocar pela primeira vez nas rádios. Na próxima sexta-feira, dia 1º de agosto, a Arena Tatuapé recebe o espetáculo "Tributo a Elton John by Rafael Dentini", considerado o maior da América Latina. 

Mais que um cover, Rafael Dentini mergulha na alma artística de Elton com voz, figurino, carisma e - principalmente - respeito. Nesta entrevista exclusiva para o Resenhando.com, Rafael fala sobre a trajetória, o que significa interpretar um ícone vivo, os desafios de não virar uma caricatura e os bastidores de um tributo feito com paixão, intensidade e muito glitter.

Resenhando.com - Rafael, a semelhança vocal com Elton John é impressionante, mas como você trabalha para ir além da imitação e trazer sua própria identidade artística para o palco?
Rafael Dentini - A minha voz natural, tanto falando quanto cantando outras músicas, normalmente não se assemelha à do Elton John. Mas para fazer esse tributo, estudei bastante. Foi um longo processo até entender a dinâmica e o jeito dele de cantar e falar. Por ser britânico, ele tem particularidades no inglês que são diferentes do inglês americano, o que influencia muito a forma de pronunciar as palavras. Ainda hoje continuo estudando bastante, e conforme avanço, descobri novas nuances e formas de cantar, ajustando minha voz para me aproximar mais do timbre dele. Tudo isso, somado ao figurino, ao visual do show e à produção como um todo, contribui para criar essa semelhança - fruto de muito estudo. A voz do Elton John também mudou bastante ao longo da carreira, então procurei focar no período em que ela mais se parecia com a minha, que foi nos anos 70 e início dos 80. Esse recorte me permitiu chegar mais próximo da essência dele. Foi um processo longo, mas muito divertido.


Resenhando.com - Em meio a figurinos e performances que marcaram gerações, qual foi o maior desafio que você encontrou para equilibrar espetáculo visual e autenticidade musical?
Rafael Dentini - O maior desafio foi, além de cantar e tocar músicas com alto grau de dificuldade técnica, incorporar a performance visual. Reproduzir os figurinos, os gestos e o comportamento de palco do Elton John - especialmente nos anos 70 - exigiu bastante. Ele era extremamente performático: subia no piano, corria pelo palco, interagia o tempo todo, tudo isso sem perder a qualidade musical. Para mim, o mais desafiador foi unir todos esses elementos de forma natural, reproduzindo cada performance com intensidade e fidelidade.


Resenhando.com - Elton John é conhecido por sua vulnerabilidade e personalidade multifacetada. Como você incorpora essa complexidade emocional na sua performance, especialmente para um público que já conhece tão bem o original?
Rafael Dentini - Desde o início, fiz questão de deixar claro que o show é de fã para fã. Eu não sou o Elton John, nem quero ser ele. O que busco é homenageá-lo da melhor forma possível. Me colocar no lugar do fã, ao lado de quem está assistindo, cria uma conexão muito especial. Todos ali reconhecem a importância e a relevância que Elton John tem em suas vidas. As músicas falam diretamente ao coração das pessoas, despertam lembranças e emoções. Isso tudo constrói um ambiente muito emocionante e cria uma conexão verdadeira entre a banda e o público.


Resenhando.com - A música de Elton John atravessa gerações. Qual história pessoal ou reação do público mais te marcou em algum show seu?
Rafael Dentini - Um momento que me marcou profundamente foi em um show, ao final, quando fui tirar fotos com o público. Uma senhora estava muito emocionada. Chorando bastante, ela se apresentou e disse que tinha 92 anos e quase não saía mais de casa, mas que o grande sonho da vida dela era ver um show do Elton John - algo que nunca conseguiu realizar. Quando soube do nosso show, decidiu ir. E para ela, aquela experiência foi tão significativa que disse que, a partir daquele momento, poderia morrer feliz. Histórias como essa nos tocam profundamente e dão ainda mais sentido a tudo o que fazemos.


Resenhando.com - O tributo é “feito por fãs e para fãs”. Como você lida com as expectativas do público mais tradicional versus os novos fãs que talvez conheçam Elton John apenas por memes ou redes sociais?
Rafael Dentini - O Elton John tem um público muito amplo e diverso, porque ele também é um artista que está sempre se renovando. É o único que conseguiu emplacar sucessos no topo das paradas por cinco décadas consecutivas. Fazer um show de no máximo duas horas tentando representar toda essa carreira é um grande desafio. Por isso, montamos o repertório com base no público que estará presente, escolhendo as músicas que acreditamos que irão tocar mais as pessoas naquele momento. O público costuma se entregar muito, canta, dança e se emociona... A conexão acontece de forma muito natural e espontânea, impulsionada pelos grandes hits e pelas músicas que marcaram a trajetória do Elton John.


Resenhando.com - Você acredita que um tributo pode ser considerado uma forma legítima de arte, ou ele está sempre à sombra do artista original?
Rafael Dentini - Acredito que um tributo pode levar a mensagem e a música de um artista para lugares e pessoas que nunca tiveram a oportunidade de vê-lo ao vivo. Encaro o tributo como um grande espetáculo musical, quase como uma peça de teatro, como acontece na Broadway, onde se reproduzem obras de outros autores. Orquestas tocam sinfonías de Beethoven, de Bach... E eu estou ali, fazendo a minha representação de um artista que considero um dos maiores músicos que já existiram. 


Resenhando.com - Qual o seu papel nesse diálogo entre homenagem e criação?
Rafael Dentini - Continuar o legado de Elton John, especialmente agora que ele encerrou as turnês, é uma forma de manter viva sua música e levá-la ao maior número possível de pessoas.

Resenhando.com - Em um mundo cada vez mais digital e efêmero, que papel você acha que a música ao vivo, especialmente tributos como o seu, tem para manter viva a memória de artistas lendários?
Rafael Dentini - Estar presente em um show, vivenciar a experiência ao vivo, muda completamente a forma como sentimos a música. Música é sentimento. E ali, além da música, há o visual, a iluminação, os detalhes pensados para emocionar e transmitir a essência do show original. Essa troca entre o público e a banda eleva a experiência a um nível que nenhuma gravação consegue alcançar. Isso é fundamental para manter viva a chama, especialmente porque o Elton John sempre transmitiu essa energia contagiante aos fãs.


Resenhando.com - Se pudesse sentar para uma conversa franca com Elton John, o que você gostaria de perguntar ou dizer para ele sobre o que representa seu trabalho como tributo?
Rafael Dentini - Se eu tivesse a chance de estar frente a frente com o Elton John, a primeira coisa que faria seria agradecer por tudo que ele representa para mim e pela influência que teve na minha vida. Também mostraria o trabalho que faço no Brasil em homenagem a ele. De resto, não teria nada muito programado... deixaria o momento guiar a conversa, falaria o que sentisse vontade ali na hora. Acho que seria algo muito natural e espontâneo.


Resenhando.com - Seu repertório inclui os clássicos que todos amam, mas há alguma música menos conhecida de Elton que você sente que deveria ganhar mais destaque nos shows?
Rafael Dentini - Nosso repertório é baseado nas músicas mais famosas do Elton John no Brasil, especialmente aquelas que tocaram em novelas e fizeram muito sucesso por aqui. São canções que marcaram épocas e momentos importantes na vida de quem vai ao show. Sempre incluímos alguma surpresa também - uma música menos conhecida, seja por satisfação pessoal ou para apresentar ao público outras obras do Elton que talvez ainda não conheçam. Escolher uma agora seria difícil, porque sempre trazemos algo diferente para renovar a energia do espetáculo.


Resenhando.com - Pensando na sua trajetória, qual foi o momento em que você percebeu que não estava apenas reproduzindo uma voz, mas contando uma história, uma vida, através da música de Elton John?
Rafael Dentini - Acredito que percebi o verdadeiro impacto do show já na estreia. Quando acabou, vi a reação do público, os comentários, os abraços sinceros. Muitos fãs de Elton John vieram falar comigo, dizendo o quanto acharam bonito e emocionante o tributo. A aceitação ali, no momento do show, e a repercussão on-line me trouxeram uma paz muito grande. Eu tinha muito receio de não estar à altura do que o Elton John representa. Mas perceber que consegui transmitir ao menos um pouco da sua essência ao público foi o que me deu a motivação e a certeza de que estou no caminho certo - e que devo continuar levando essa homenagem adiante.


segunda-feira, 28 de julho de 2025

.: Fran Ferraretto, a atriz que costura poesia e porrada com linha de cena


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Fotos:  Julieta Bacchin 

Se a arte fosse uma espécie de luta, Fran Ferraretto entraria no palco sem luvas, mas com a alma em punho. Ela faz mais que interpretar personagens - ela os encarna até o osso. E quando escreve, não faz literatura: brada em forma de texto. Atriz, dramaturga, professora, pesquisadora, premiada, inquieta e indisciplinadamente verdadeira, Fran transita entre o lúdico e o abismo com a naturalidade de quem se recusa a ser domesticada pela caretice estética, política ou espiritual.

Depois de colocar a infância para pensar sobre relacionamentos abusivos em "A Minicostureira", ela volta ao palco agora com "Adulto" - um espetáculo que não pega o espectador pela mão, mas empurra pela consciência. A peça se divide em duas camadas narrativas: a da autora que escreve a obra enquanto, em cena, acontece uma crise conjugal entre os personagens João e Sara, intensificada com a chegada de Vitor e Paula, um casal de amigos que acende o pavio de questões silenciadas. 

Entre revelações, rachaduras e provocações, temas como traição, monogamia, maternidade, machismo, saúde mental e o mito do amor romântico explodem em cena com honestidade brutal. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, Fran não economiza palavras, não disfarça verdades, não posa de musa e nem tenta parecer simpática. Ela é. Ela existe. Ela grita. Ela arrebata. E ponto. Quem não estiver preparado, que desvie o olhar. O palco já está armado.


Resenhando.com - Você já disse que “o palco a deixa em carne viva”. No Brasil de hoje, ser atriz é mais ato político, exercício espiritual ou sadomasoquismo profissional?
Fran Ferraretto - Eu disse isso? (risos). Bom, sem dúvida é um ato político! E se a gente pensar na falta de incentivo que temos no nosso país, eu diria que é um ato de resistência também. Mesmo que os teatros estejam lotados, e com toda a repercussão do cinema nacional pelo mundo, o investimento na cultura ainda é muito difícil, e sem isso não viabilizamos nada. Portanto, quando conseguimos realizar alguma coisa, esse trabalho é um retrato de luta. E isso precisa mudar!


Resenhando.com - Você fala com propriedade sobre relacionamento abusivo em obras para crianças. Mas e no mundo adulto da cultura, qual foi o "relacionamento abusivo" mais difícil de romper: com um diretor, um personagem ou com a ideia de sucesso?
Fran Ferraretto - Eu acredito que foi comigo mesma. Em me enxergar e me aceitar como uma mulher realizadora, não foi fácil. Tentei negar, diminuir essa pulsão, me descredibilizar, e isso tudo porque ainda temos muito poucas figuras de mulheres de autoridade e poder no nosso meio, infelizmente. Os espaços artísticos ainda são dominados por homens. E isso nos faz pensar que a gente não pode, ou não consegue. Mas isso não é verdade, e estamos concretizando essa mudança.


Resenhando.com - O espetáculo “Adulto” estreia em breve. Na sua opinião, quando é que a gente vira “adulto”? Ao pagar boletos, ao se apaixonar por quem não retribui ou ao ter que aplaudir colega ruim só por educação?
Fran Ferraretto - Sim, estrearemos muito em breve. Dia 29 de agosto no Sesc Ipiranga, e ficamos até 12 de outubro. Eu estou muito feliz! Acho que entre os muitos temas que a peça aborda, esse é um deles, o marco de entrada na vida adulta. Não existe uma regra, um guia, então acho que cada pessoa vai encontrar o seu caminho. Mas o capitalismo é imponente, e sem dúvida essa conquista passa pela liberdade financeira, seja para sair da casa dos pais, ter filhos, viajar, fazer uma faculdade, enfim. O dinheiro não é uma escolha, mas cada pessoa lida de uma forma com essa demanda, e isso será bem debatido no espetáculo.


Resenhando.com - Você já viveu o teatro sob direções muito distintas - das mais experimentais às mais afetivas. Qual foi a maior revolução estética ou ética que um processo de criação já provocou em você?
Fran Ferraretto - Olha, estou justamente passando por isso agora. Trabalhar com a Lavínia Pannunzio era um sonho antigo. Nos conhecemos em 2014, e eu sou louca nessa mulher desde então. E agora estar vivendo e dividindo a criação de uma obra com ela, tem sido extraordinário. A escuta, o cuidado, a atenção, o respeito, a inteligência, a generosidade, tudo isso tem sido uma revolução pelo amor. Um dia antes da gente começar os ensaios ela disse: "vamos colocar nossas almas nessa peça, Fran". E assim tem sido!


Resenhando.com - Você já lavava as mãos antes da pandemia. Hoje, o que você não lava mais: a consciência, as mãos de certos convites ou o sangue simbólico dos papéis que te atravessam?
Fran Ferraretto - Eu não sei se entendi a pergunta, mas acho que estou cada vez mais lavando a ideia de dar conta de tudo, sabe? Uma hora na vida adulta a gente entende que depende de nós, aí vamos virando uma máquina de fazer, render, produzir, e isso é muito perigoso. É uma armadilha dos nossos tempos, e tem adoecido muita gente. Então estou tentando me livrar dessas expectativas idealizadas que colocam nas nossas cabeças, e a gente aceita sem pensar.


Resenhando.com - Você disse que as crianças a ensinam a assimilar melhor as coisas do mundo. O que os adultos, principalmente os homens, ainda têm a aprender com você no palco?
Fran Ferraretto - Não sei se aprender comigo, mas o meu próximo espetáculo, "Adulto", vai propor algumas reflexões importantes nesse sentido, principalmente sobre a consciência de um privilégio estrutural direcionado aos homens. E sem esse entendimento não avançaremos.


Resenhando.com - “A Minicostureira” tem inspiração no Tarô egípcio. Se você tirasse uma carta hoje para o teatro brasileiro, qual seria e por quê?
Fran Ferraretto - A primeira que eu pensei foi a "Roda da Fortuna". Que é também um desejo de que as coisas mudem e se transformem para melhor. Que os projetos encontrem as pautas, que os artistas encontrem as oportunidades, que o teatro encontre fomento e o público sempre.


Resenhando.com - Se a Fran Ferraretto de 2025 encontrasse a Fran criança, aquela que não tinha respostas nem acolhimento, o que ela diria? E o que a pequena responderia?
Fran Ferraretto - Primeiro eu a abraçaria, e tenho feito isso diariamente. Diria que as coisas seriam melhores do que ela pensava, pediria para ela não perder alegria, e nem aquela confiança interna que sempre acompanhou a gente. E também agradeceria, afinal, de certa forma foi ela que me trouxe até aqui.


Resenhando.com - Como é trabalhar em um país em que o maior cachê de um artista pode vir de uma publi no Instagram e não de uma peça que esgota ingressos? Isso a desespera ou a desafia?
Fran Ferraretto - É desolador, né!? Foi tudo o que falei nas outras respostas. São tantos desafios, que sem resistência a gente não dura um dia nessa profissão. Mas falando individualmente, eu prefiro não colocar muito meu foco nessa questão, até porque acho que me desanimaria demais, sabe? Eu estou ciente, mas prefiro trabalhar nos meus projetos e brigar pelas minhas peças.


Resenhando.com - Entre Blanche Dubois, de "Um Bonde Chamado Desejo", Mirella, de “Feras”, Clara, “a minicostureira”, e a Fran da vida real - qual delas você levaria para uma ilha deserta? E qual você deixaria na rodoviária sem olhar para trás?
Fran Ferraretto - Eu levaria a Clarinha, óbvio. "A Minicostureira" foi minha primeira dramaturgia e idealização, significa muito para mim essa peça. Inclusive estamos voltando a circular aqui em São Paulo, depois de oito anos da estreia, e tem sido maravilhoso. Em setembro estaremos no Sesc Interlagos, e estou muito feliz. Acho que não conseguiria deixar nenhuma, sou apegadinha (risos).


Serviço
Espetáculo "Adulto"
Temporada: de 29 de agosto a 12 de outubro de 2025
Dias e horários: sextas e sábados, às 20h00; domingos, às 18h00
Sessão extra para grupos: quinta-feira, 9 de outubro, às 20h00 (em substituição ao dia 7 de setembro)
Local: Sesc Ipiranga – Teatro
Endereço: rua Bom Pastor, 822 - Ipiranga / São Paulo
Duração: Aproximadamente 90 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
Ingressos: à venda no site sescsp.org.br/ipiranga e nas unidades do Sesc
Valores: R$ 12,00 (credencial plena), R$ 20,00 (meia-entrada), R$ 40,00 (inteira)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

.: Entrevista: Pedro Guerra, o anti-herói da vez, desmonta mito do sucesso


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Pablo Vitale

O Brasil da vida real - aquele que mistura açúcar refinado, modafinila, LinkedIn, TCC sobre estoicismo e colostomia - raramente aparece na literatura com a crueza e o sarcasmo que Pedro Guerra despeja em "O Maior Ser Humano Vivo", publicado pela editora Record. Neste romance, não há espaço para romantismo juvenil ou arroubos líricos de superação: o que temos é um protagonista cínico, hipervigilante e funcionalmente descompensado, tentando sobreviver no capitalismo tardio com um dry martini em uma mão e uma crise de ansiedade na outra.

Pedro, cearense que trocou o Nordeste pela selva de pedra paulistana, teve a audácia de tirar seu protagonista de um dos escritórios mais elitistas do país e jogá-lo direto no palco de um boteco caindo aos pedaços, onde o stand-up não serve só para fazer rir - mas para anestesiar a alma e expor as feridas. A prosa é ácida, rápida e perigosamente viciante. Nesta entrevista, o autor se senta no banco dos réus e responde por seus crimes literários: zombar da meritocracia, debochar da hipocrisia corporativa, rir da nossa fome de sentido. Compre o livro "O Maior Ser Humano Vivo" neste link.


Resenhando.com - O seu protagonista, Nilo, engole a vida como um dry martini - forte, amargo e cheio de sobressaltos. Até que ponto esse vício na intensidade é uma metáfora para a própria São Paulo contemporânea, ou para a geração que você retrata?
Pedro Guerra - 
Essa ideia de São Paulo, embora também estereotipada, é uma representação bastante fiel de um certo recorte da geração nascida no final do anos 70 e começo dos anos 80. São pessoas que aprenderam que aqui “é onde as coisas acontecem”. Os americanos têm Nova Iorque, que Frank Sinatra resumia nos versos “se você consegue vencer aqui, consegue vencer em qualquer lugar”. São Paulo é, por esse prisma, a nossa Nova Iorque.
 

Resenhando.com - O sucesso vertiginoso e a queda do protagonista caminham lado a lado com uma crise profunda de identidade e saúde mental. Você acredita que essa mistura de ambição e vulnerabilidade é o novo normal do jovem profissional brasileiro?
Pedro Guerra - Existe uma força, que é ao mesmo tempo opressora e sedutora, agindo sobre nós todos e principalmente sobre os mais jovens. A promessa de riqueza anda lado a lado com o fantasma do fracasso - e quando falo "fracasso" estou me referindo a essa ótica reducionista de quem não tem grana ou status. Embora essa seja uma força presente, eu sinto ao mesmo tempo uma reação a esse movimento que é bastante vibrante. Eu conheci dois influenciadores comunistas com centenas de milhares de seguidores nos últimos tempos, veja só. Isso era impensável anos atrás: alguém que angariasse uma audiência que abraçasse ideias comunistas, completamente avessas ao que se consome massivamente. Então, acho que o jogo é desigual, mas está longe de estar perdido.

Resenhando.com - O que o levou a escolher a profissão de advogado e o universo das fusões e aquisições como palco para essa odisseia de excessos e derrotas? Há um pouco de autobiografia ali ou é uma crítica a um mundo que você observa de fora?
Pedro Guerra - Na verdade, eu tinha três ambientes que eu poderia usar como pano de fundo para a odisseia do Nilo: uma agência de publicidade, um escritório de advocacia e um banco de investimentos - são três profissões comumente associadas a essa ambição desmedida de que eu queria falar no meu romance. Embora eu seja publicitário, eu já tinha criado um protagonista da minha área no meu primeiro livro “Avenida Molotov”, de modo que fiquei com apenas duas opções restantes. A preferência pelo campo do direito se deveu apenas ao fato de que eu tinha muitos amigos advogados que poderiam ser fonte mais próxima de pesquisa. 

Resenhando.com - O seu romance mergulha em temas como o uso indiscriminado de modafinila e o culto à performance máxima. Na sua visão, estamos todos nos tornando zumbis hiperprodutivos dispostos a sacrificar a saúde pela aparência do sucesso?
Pedro Guerra - O capitalismo nos empurrou pra isso, o capitalismo tardio é o paroxismo disso. Eu estava lendo o ensaio “A Sociedade do Cansaço”, do Byung Chul Han, que fala justamente do regime de escravidão a que nos submetemos por vontade própria quando estava pensando em fazer o romance. Ele foi o empurrãozinho que faltava.

Resenhando.com - Nilo migra da rigidez dos escritórios para o palco do stand-up - uma transição que parece simbolizar uma tentativa de ressignificação da vida. O humor, para você, é uma válvula de escape, uma arma de resistência, ou uma nova prisão para o protagonista?
Pedro Guerra - Uma válvula de escape e uma arma de resistência com certeza, embora até hoje dois anos depois de ter escrito o livro ainda não saiba se o Nilo tenha seguido pelo caminho que ele apontava ou não. 


Resenhando.com - A narrativa em primeira pessoa expõe a fragilidade e a autoironia do protagonista. Quais são os riscos e os ganhos para um autor ao se entregar tanto à voz de um personagem tão corrosivo e moralmente ambíguo?
Pedro Guerra - O risco maior é o escritor se policiar, acho. Como se o protagonista fosse uma representação dele mesmo. O ganho é poder vivenciar a vitória ou a debacle do seu protagonista de pertinho. Acredito que consegui não me censurar ou me cercear e testemunhar os percalços do Nilo de camarote.  

Resenhando.com - “O Maior Ser Humano Vivo” parece ironizar a própria ideia de grandeza e sucesso. Como você lida com o paradoxo de criar um anti-herói que é ao mesmo tempo amoral, generoso e destituído de preconceitos?
Pedro Guerra - Uma das minhas primeiras leitoras me mandou uma mensagem dizendo que odiou Nilo, o protagonista. Eu ri: boa parte dele foi baseada em mim. Ele reagia aos estímulos do jeito que eu imagino que eu reagiria. É óbvio que a personalidade do Nilo é apenas uma parte da minha personalidade, mas o fato é que grande parte dele eu retirei de mim mesmo. Essa facilidade de abraçar a minha parte amoral e, ao mesmo tempo generosa, é algo que eu gosto muito como pessoa e como escritor. Eu sou o que sou, nós somos o que somos. Embora eu goste de ser uma boa pessoa é importante saber que também não sou tão boa pessoa assim e tenho pensamentos não tão engrandecedores. 

Resenhando.com - A linguagem iconoclasta e ágil do livro não dá trégua ao leitor. Você vê essa “velocidade narrativa” como um reflexo do ritmo frenético da vida moderna? E isso já foi um desafio na hora de construir o texto?
Pedro Guerra - É algo que eu fui ensinado e aprendi a ser. Sou publicitário e tenho que criar diariamente mensagens sedutoras em 30 segundos. Os meus diálogos são muito rápidos, são "raquetadas". Também sou filho da televisão dos anos 80 e do cinema americano, especialmente o cinema independente. Difícil fugir desse poder gravitacional embora tendo o José Saramago, por exemplo, com seus parágrafos de páginas e páginas sem ponto final, como escritor preferido.

Resenhando.com - Em meio à São Paulo do século XXI, seu protagonista convive com personagens que trazem referências fortes, do dublê traficante ao advogado brilhante. Como você construiu essa galeria de “Faria Limers” para mostrar diferentes faces da cidade e da sociedade? 
Pedro Guerra - Gosto de pensar que, mais do que escritor, eu sou criador de personagens. O que talvez pode ser uma mentira porque eu também adoro colar palavras umas atrás das outras. Juntando esses dois conceitos, acho que os personagens no fundo são o que me fazem juntar as palavras. Para mim é muito enriquecedor pôr no mesmo círculo um advogado destrambelhado, um garçom-traficante, um sérvio chamado Zé Preto, um bando de suingueiros e um milionário desmoralizado com suas idiossincrasias, glórias e fracasso... Isso tudo me dá oportunidade de falar sobre aspectos muito variados do ser humano 


Resenhando.com - Se “O Maior Ser Humano Vivo” fosse um stand-up, qual seria a piada que você escolheria para resumir a odisseia do Nilo - e, de quebra, lançar um olhar crítico sobre o Brasil atual?
Pedro Guerra - De que vale ter um Patek Philipe no pulso e uma tornozeleira eletrônica?


quinta-feira, 24 de julho de 2025

.: Entrevista: Claudio Lacerda fala sobre cantar a roça em tempos de algoritmo


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Aline Grego

Em uma era em que os algoritmos decidem o que vale a pena ouvir, um show que se propõe a reviver a música de raiz soa como um manifesto. No próximo dia 14 de agosto, no Centro Cultural São Paulo, Cláudio Lacerda se une a Rodrigo Zanc para lançar o EP "Tributo a Pena Branca e Xavantinho" - um projeto que surgiu do afeto, atravessou o luto e chegou ao palco como resistência.

A apresentação celebra uma dupla que marcou a história da música brasileira com voz, viola e verdade. Mas por trás do repertório que passeia por Patativa do Assaré, Rolando Boldrin e Chico Buarque, há um gesto político e poético: o de lembrar que o Brasil ainda pulsa no interior, nos causos, nos bois de chifre e nas janelas sem vidro que abrem para a paisagem da memória.

Em entrevista exclusiva para o Resenhando.com Cláudio Lacerda - cantor, compositor e defensor incansável da cultura caipira - fala sobre o espetáculo, o peso simbólico de homenagear Pena Branca, e os dilemas de cantar o campo em um país que insiste em asfaltar a própria história.


Resenhando.com - Depois de cantar ao lado de Pena Branca em sua última apresentação em vida, vocês se tornaram guardiões involuntários de um legado. Quando é que a homenagem deixa de ser reverência e começa a virar responsabilidade sufocante?
Cláudio Lacerda - Entendemos que de certa forma a responsabilidade seja grande, mas não chega a ser sufocante pois além da gente, muitos outros artistas trabalham para preservar e valorizar a obra de Pena Branca e Xavantinho. Somos apenas mais dois artistas que têm consciência da importância do legado deles.


Resenhando.com - Em tempos de algoritmos que premiam o descartável, lançar um EP com “Triste Berrante” e “Chuá Chuá” é quase um ato subversivo. Vocês acham que a música de raiz ainda tem chance de furar a bolha digital - ou está condenada ao rodapé da memória nacional?
Cláudio Lacerda - Adorei o subversivo! É improvável furar a bolha digital. O consumo de música, de cultura, está muito condicionado ao mainstream. Infelizmente é a realidade. Mas ainda são muitos os festivais de viola, são muitas as orquestras de viola e artistas queridos pela população nas cidades pequenas. Podemos ser rodapé, mas um rodapé que nunca vai sair de moda.


Resenhando.com - Pena Branca e Xavantinho sempre falaram do Brasil profundo. Como é lidar com esse Brasil hoje, onde o campo virou sinônimo de disputa política e o sertão, de esquecimento?
Cláudio Lacerda - Sim, sempre. Tanto que em todos os discos da dupla havia sempre ao menos uma Folia de Reis. Nos grandes centros é raro, mas as folias, congadas, jongos, as expressões populares têm sido vistas mais frequentemente nos rincões do Brasil. Pesquisadores como o Professor Ivan Vilela da USP também confirmam isso, o que nos enche de esperança.


Resenhando.com - Quando vocês sobem ao palco e tocam “Cálix Bento”, estão em busca de quê: fé, redenção ou apenas silêncio respeitoso da plateia?
Cláudio Lacerda - Acredito que estamos em busca da união da gente com o público, no sentido de comemorarmos a nossa cultura, que é rica, que é linda, e nos enche de orgulho e pertencimento. Andar com fé...sempre!


Resenhando.com - “Cio da Terra” e “Vide, Vida Marvada” são músicas que choram por dentro. Que dor do Brasil vocês ainda não conseguiram cantar?
Cláudio Lacerda - A dor mais “dilurida” hoje em nosso país é a desunião e polarização política. A música de Pena e Xavantinho suaviza e ajuda a mitigar essa segregação. A arte cura!


Resenhando.com - Já que o show nasce de uma despedida abrupta, me digam com franqueza: o que ficou engasgado naquele último encontro com Pena Branca?
Cláudio Lacerda - Pena Branca era um ser humano extremamente simples e gentil. Aquela noite fluiu docemente com sua presença. O que lamentamos foi não podermos ter realizado outras apresentações com ele. Foi tudo lindo.


Resenhando.com - Se Xavantinho estivesse vivo, o que ele detestaria no projeto de vocês — e o que, talvez, elogiasse com um meio sorriso?
Cláudio Lacerda - Não acredito que ele detestaria nada não. Provavelmente ele ficaria muito feliz em ver seus antigos companheiros com a gente. Falo dos músicos incríveis que o acompanhavam, e de quem somos muito amigos: Ricardo Zoyo, Priscila Brigante, Ana Rodrigues e Ed Graballos. E acho que ele elogiaria a inclusão da canção “Bandeira do Divino” do Ivan Lins e Victor Martins, que eles não cantavam. É uma folia mais moderna digamos, sabemos, mas eles eram mestres em fazer adaptações de canções da MPB para uma versão regionalista.


Resenhando.com - Vocês são músicos que resistem à pasteurização do sertanejo universitário. Como é manter a dignidade artística em um país onde o som do berrante foi trocado por um beat de TikTok?
Cláudio Lacerda - A dignidade é fácil de manter, pois a gente ama a cultura popular. Não é oportunismo ou estratégia. A gente gosta de verdade. Cada um com sua consciência!


Resenhando.com - Existe espaço para melodia sem maquiagem em um mundo que venera a estética autotune? Vocês já se sentiram tentados a trair a simplicidade por uns likes a mais?
Cláudio Lacerda - Somos totalmente contra o uso de VS (playback) em shows. Para ouvir músicos tocando de verdade, sem maquiagem, vão lá assistir a gente dia 14 de agosto no CCSP!


Resenhando.com - E se a alma caipira fosse, de fato, um espírito: onde ela ainda habita neste país rachado entre o concreto e o agronegócio?
Cláudio Lacerda - A alma caipira é um espírito sim, e muito presente por sinal na Paulistânia (área de aculturamento bandeirante). E esse espírito jamais será extinto. Se depender da gente e de um mundão de artistas, há de imperar.


Dia 14 de agosto, no Centro Cultural São Paulo, Cláudio Lacerda se une a Rodrigo Zanc para lançar o EP "Tributo a Pena Branca e Xavantinho". Foto: Adriano Rosa


Serviço
Tributo a Pena Branca e Xavantinho - com Cláudio Lacerda e Rodrigo Zanc
Centro Cultural São Paulo - Sala Adoniran Barbosa
Quinta-feira, dia 14 de agosto de 2025
Às 19h00 (duração: 90 minutos)
Rua Vergueiro, 1000 - Paraíso / São Paulo
Ao lado da Estação Vergueiro do Metrô
Entrada gratuita | Classificação: livre
Capacidade: 400 lugares (chegue cedo, sujeito à lotação)
Saiba mais: @claudiolacerdaoficial | @rodrigozanc

quarta-feira, 23 de julho de 2025

.: Novo estudo liga obra de Machado de Assis à origem da psicanálise


E se Freud fosse o segundo a chegar? Em novo livro, Adelmo Marcos Rossi revela que Machado de Assis pode ter fundado, pela literatura, uma psicologia conceitual antes de a psicanálise existir. Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação
 
Machado de Assis chegou antes. Antes de a psicanálise ser batizada por Freud, antes do narcisismo virar diagnóstico, antes mesmo de a ciência querer mapear os labirintos da alma humana, o "Bruxo do Cosme Velho" já desfiava, com ironia e precisão cirúrgica, as camadas do inconsciente coletivo - mesmo sem nomeá-lo assim. Em "O Imortal Machado de Assis - Autor de Si Mesmo", o engenheiro, psicólogo e filósofo Adelmo Marcos Rossi desmonta o altar europeu da teoria psicanalítica e aponta: o criador de "Dom Casmurro" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas" já operava, pela ficção, conceitos que Freud viria a descobrir décadas depois. Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, Adelmo discute narcisismo, escuta clínica, racismo estrutural no campo do saber e lança uma pergunta incômoda: será que estamos prontos para reconhecer que o maior psicanalista brasileiro morreu em 1908 - sem nunca ter ouvido falar de Viena? Compre o livro "O Imortal Machado de Assis - Autor de Si Mesmo" neste link.


Resenhando.com - Ao sugerir que Machado de Assis chegou a conceitos psicanalíticos antes de Freud, você está prestes a reescrever a história da psicanálise ou apenas dar um puxão de orelha no eurocentrismo acadêmico?
Adelmo Marcos Rossi - A pretensão é que Machado de Assis venha a ser lido como ele escreveu, e escreveu informando que no futuro, “cuido que por volta de 2222”, uma data qualquer, “um pequeno livro” seria publicado com sua “psicologia nova”. Quer dizer, a pretensão é que ele venha a ser lido como o criador de uma psicologia na qual “reúno em mim mesmo a teoria e a prática”. Escritor sutil, Machado não queria ser visto como cientista, propondo declaradamente uma psicologia nova, mas o fez por meio de personagens. Até teria sido perigoso que ele, literariamente, se mostrasse como estando conceituando os segredos que movem as relações humanas.


Resenhando.com - Machado de Assis, negro, epiléptico, pobre e autodidata, é muitas vezes reduzido a um “homem do século XIX” domesticado. A leitura dele propõe um autor que enxergou a alma humana mais fundo do que Freud. Por que ainda temos tanto medo de admitir a genialidade precoce dos nossos? 
Adelmo Marcos Rossi - O gênio não é facilmente reconhecível dentro do seu tempo, e menos reconhecível ainda quando ele, intencionalmente, esconde no subtexto as suas pretensões, ainda que informe que será encontrado. Também é comum afirmarem que o “eu lírico” não é o autor da obra, o disfarce em personagens não tem validade do ponto de vista científico. Resumindo: para fazer ciência, o pensador deve ser claro e reto, e não publicar uma nova ciência de modo escondido. Machado, também é importante dizer, não desejava ser visto como narcisista demais, vaidoso demais, pelo risco de ser severamente combatido. Sob esse aspecto, passar despercebido foi mais seguro para ele.


Resenhando.com - Você afirma que o narcisismo é estruturante na obra de Machado. A pergunta que não quer calar: Capitu amava Bentinho ou apenas amava ser amada?
Adelmo Marcos Rossi - Machado não deixou dúvida nenhuma, o leitor é quem não soube ler, basta ir à obra:
“Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:
— Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada”.
Ou seja, se Bento Santiago “acreditasse em Deus”, “a vontade de Deus explicaria tudo”, inclusive “a causalidade da semelhança”, e Capitu poderia ter quantos filhos quisesse, todos com as feições dos amigos, porque Deus explica tudo. Machado, aqui, estava fazendo uma brincadeira, empregando o recurso da Petalogia, o humor, tal como Alcides Maya notou em “Machados de Assis: Algumas Notas sobre o Humour” (1912).


Resenhando.com - Há quem diga que Brás Cubas é um morto mais lúcido do que muito vivo teórico. Se ele fosse seu paciente, que diagnóstico você arriscaria dar? Borderline? Narcisista perverso? Cínico funcional?
Adelmo Marcos Rossi - Machado era, até 1880, um escritor morto literariamente, um autor que já era defunto. Seus quatro livros anteriores, "Ressurreição", "A Mão e a Luva", "Helena" e "Iaiá Garcia", não teriam dado vida póstuma ao autor. Por isso, "Memórias Póstumas", e para isso ele tinha que criar algo espantoso, e criou a ideia de um "defunto autor", o autor que já era defunto virou defunto autor. Estando morto, poderia revelar os segredos sem ser condenado. Machado trouxe uma nota para Brás Cubas: “Capistrano de Abreu, noticiando a publicação do livro, perguntava: ‘As Memórias Póstumas de Brás Cubas são um romance?’”. Não podia ser, pois era um romance em que o amor era um adultério. Lobo Neves nunca aparece galanteando sua esposa Virgília, quem a namora é o amigo, ilustrando mais um conceito em Machado: Pílades e Orestes, do mito grego dos amigos inseparáveis. Em Freud, os “amigos inseparáveis” seria o par de confidentes, analisando e analista, pela confissão baseada no amor de transferência. Só que Freud se esqueceu de considerar o ódio de transferência: é comum o amor terminar em ódio, em traição, crime etc.


Resenhando.com - Em algum momento do seu mergulho nas obras machadianas você se sentiu espionado por ele? Como se o próprio Machado, com sua pena afiada, estivesse analisando você durante a leitura?
Adelmo Marcos Rossi - Quem reclamou disso foi o Mário de Andrade, no centenário de 1939: “Ele foi um homem que me desagrada e que eu não desejaria para o meu convívio”. Carlos Drummond de Andrade, em 1925, reclamou dizendo que Machado era “perverso, profundo e ardiloso”, sem informar o motivo. De fato, Machado revelou o lado perverso, profundo e ardiloso das relações humanas, e isso incomodou a muita gente que não o compreendeu.


Resenhando.com - Freud leu os clássicos gregos. Machado lia Shakespeare e Molière, mas também conversava com os delírios da alma carioca. O que o ambiente cultural brasileiro oferece à psicanálise que Viena talvez nunca ofereceu?
Adelmo Marcos Rossi - O ambiente cultural brasileiro sempre ofereceu a malandragem, a esperteza, a malícia, também tão criticada, e motivo da enorme diferença social entre os espertos e os malandros que vivem da malandragem se contentando com o carnaval e o futebol.


Resenhando.com - Você é engenheiro civil, virou psicólogo, filósofo e agora investiga as camadas mais profundas de um escritor morto há mais de um século. O que constrói mais: o concreto armado ou a literatura psicanalítica?
Adelmo Marcos Rossi - O concreto armado me permitiu ganhar dinheiro na vida prática, dando-me tempo suficiente para retornar para a universidade e cursar uma nova graduação, agora, em psicologia, além do acompanhamento psicanalítico, e assim, estudar as profundezas da alma humana. Esse caminho ajudou-me a evitar enlouquecer, cometer crimes, e compreender, primeiro, o erro do Narcisismo em Freud, que somente o descobriu em 1914, e, segundo, a descoberta dos conceitos psicológicos em Machado correspondentes aos conceitos depois criados por Freud atendendo doentes na clínica.


Resenhando.com - Há alguma ideia que você encontrou em Machado e que Freud nunca ousou formular? Algo que o "Bruxo do Cosme Velho" teria escrito com toda a sutileza e que escapou ao austero vienense?
Adelmo Marcos Rossi - Como Machado trabalha com a desconfiança no ser humano, ele era menos ingênuo, em acreditar nas relações, do que Freud. Ele empregou de modo repetido o conceito do cínico Diógenes, inexistente em Freud, Diógenes procurava um homem digno de confiança. Há no livro um capítulo, “Lanterna de Diógenes”, que trata dessa questão. A relação “Pílades e Orestes”, de confiança, entre Freud e Jung, terminou em ódio. O conceito de Espelho, “a palavra espelha a alma”, também a alma exterior que sustenta a alma interna, não existia em Freud, embora tivesse sido denotada por Jacques Lacan, tal como no artigo “O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu”.


Resenhando.com - O livro se chama "O Imortal Machado de Assis - Autor de Si Mesmo". Se Freud é o pai da psicanálise, Machado seria o quê? Um avô ilegítimo? Um irmão bastardo que nunca foi convidado para a foto de família?
Adelmo Marcos Rossi - Como Machado tinha consciência do que estava fazendo, quer dizer, não foi por acaso que ele deixou os conceitos, que foram encontrados, então, pode-se dizer que, se depois não tivesse aparecido Freud, que ele não sabia que surgiria, então, Machado teria sido o primeiro e único a ter inventado o que José Miguel Wisnik intitulou como “Machado Psicanalista Avant la Lettre”, em 25 de outubro de 2019. Machado nunca poderia imaginar que surgiria um médico literato disposto a escutar as intimidades da alma para localizar nelas a fonte das doenças, e fazer isso citando os grandes pensadores. Devo acrescentar que somente descobri que em Machado existem conceitos correlatos aos de Freud naturalmente após tê-los estudado em Freud. Sem o estudo de Freud, eu jamais os teria visto.


Resenhando.com - Em um mundo dominado por algoritmos, pressa e diagnósticos de 15 minutos, o que os leitores de hoje têm a ganhar com a escuta literária e clínica de um autor que ainda escreve para a alma de quem não tem pressa?
Adelmo Marcos Rossi - Segundo informou uma gerente da Livraria Leitura, está havendo uma intensa procura pela obra de Machado, porém, a menos que estudem “O Imortal Machado de Assis - Autor de Si Mesmo”, creio que continuarão a ler Machado como sempre foi lido por leitores comuns, e incluindo especialistas, ou seja, sem descobrir a “psicologia nova” que Machado escondeu por entre as linhas. Ler a obra de Machado tendo em mente os conceitos Pílades e Orestes, Travessia do Rubicon, Prometeu no Cáucaso, Similia similibus curantur, Caiporismo, o tema central da Vaidade, modifica completamente o modo de lê-lo. É como você ver um filme depois de ter visto os comentários do diretor. Uma “análise”, na verdade, é isso: tirar do tumulto os conceitos ocultos que o regem. Todos nós vivemos a experiência, sem saber que nela se escondem os conceitos do psiquismo apresentados por Machado e depois por Freud.


terça-feira, 22 de julho de 2025

.: Giancarlo Giannelli e a urgência de fotografar o que está desaparecendo


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: @lukefotografia

Entre a floresta e o esquecimento, um clique. Foi assim que o fotógrafo e jornalista Giancarlo Giannelli escolheu contrariar o silêncio que recobre os rios da Amazônia como uma névoa de abandono. No livro "Amazônia - Rio Tapajós", não há apenas retratos. Ele se envolve e se contradiz para se entregar ao ritmo de uma realidade que a maioria dos brasileiros jamais ousou encarar de perto.

O que surgiu como um projeto de saúde itinerante virou poesia visual, crítica social e uma espécie de elegia à resistência dos povos ribeirinhos e indígenas. Giannelli, que já circulou por bastidores de shows, convenções corporativas e corredores do poder, agora finca os pés na lama - e revela o Brasil que escorre pelas bordas. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, o fotógrafo encara perguntas que vão da ética do olhar à política do esquecimento. O resultado é um retrato em palavras: ora nítido, ora borrado, mas sempre urgente.


Resenhando.com - "Amazônia - Rio Tapajós" nasce da urgência de documentar uma Amazônia que está mudando rápido demais. O que mais mudou em você depois de encarar o silêncio profundo da floresta e o barulho ensurdecedor do abandono estatal?
Giancarlo Giannelli - 
Minhas interpretações têm mudado muito desde os 40 anos de idade, o que já soma 14 anos... Encaro o homem como parte do universo, e não o contrário. Logo, a urgência é algo humano, mas não universal. Como alguém que pensa, penso que seja natural aceitar a emergência desses fatos ativados pela ação humana e procurar, mediante uma razoabilidade, manter o status quo original do meio ambiente, digamos que algo de um milênio atrás. Alimentar a vida é também parte do homem, e parece-me que ele tem conseguido criar fome até mesmo ao meio ambiente, que passou a se alimentar de águas poluídas, materiais radioativos dispersos por aí, afora a utilização de águas profundas, que não serão refeitas tão cedo, pelo agrobusiness, que ocasionalmente servem somente ao propósito enriquecedor de um grupo, mas que não garante o sustento de milhares de outros. O silêncio, então, é só uma resposta espontânea daqueles que o homem calou única e exclusivamente por meios que se desenvolveram principalmente a partir do século XX, mas que foram sendo construídos intelectualmente nos séculos anteriores, dentro do pensamento dominantemente higienista. O abandono estatal não deixa de ser também uma ação humana, que, ao invés de servir ao povo, serve ao controle financeiro de uma elite que emprega políticos para trabalharem em benefício desses grupos financeiros, onde os fins justificam os meios... A classe política não é mais uma classe, deixou de ser. Passou a ser somente um meio pelo qual a elite controla o poder e, a este meio, sem nome ou CPF, recai a culpa e a responsabilidade. Nada vai mudar enquanto não houver nome e CPF atribuídos aos mandantes. Os CNPJs parecem ser sérios, mas são somente um subterfúgio dos verdadeiros nomes e CPFs na hierarquia da responsabilização.

Resenhando.com - Ao fotografar comunidades que vivem do rio e da floresta, você se deparou com um Brasil que muitos preferem ignorar. Em algum momento você sentiu vergonha de ser brasileiro?
Giancarlo Giannelli - 
Eu me deparei com povoados que, infelizmente, não possuem acesso à informação, mas, além disso, não possuem sequer o que possuem. Os locais onde estão garantindo a sobrevivência própria não garantem a eles a posse do local, senão até o momento que a tecnologia consiga alcançar aquele espaço e retirá-los, impiedosamente, de lá, sem qualquer pudor. Por enquanto, eles estão garantidos porque a classe política ainda não conseguiu viabilizar estruturas de exploração, como estradas, navegação, escolas e saúde pública. Se, por acaso, a estrutura começar a chegar, acontecerá dessas pessoas terem de sair ou virarem escravos de uma vida quase sem sentido, somente de trabalho para a rentabilidade de alguém que pode até nunca pisar ali. Curiosamente, eu não sinto vergonha de ser brasileiro, pois prefiro ser quem é explorado do que ser quem explora. Não obstante esse pensamento, sei que a minha pele tornou minha vida muito mais fácil que mais de 70% da população. Tenho orgulho do povo brasileiro e de ser brasileiro, porque, antes de ser um criminoso, é necessário saber o que é um crime, por meio de uma educação consensual, alimentação e conscientização de que a sobrevivência tem seu preço. Tenho vergonha é da elite brasileira, que tem uma difícil missão de criar um projeto de país há mais de 200 anos e, simplesmente, vendem esse projeto à exploração dos impérios, admirados primeiro por eles próprios e depois pela educação da mídia que eles financiam publicamente, para depois ser absorvida forçosamente por esse povo maltratado em sua própria casa. Educar dá trabalho e exige estrutura. É mais fácil, para eles, venderem então os recursos que, pela mão deles, passam, sem, no entanto, nunca terem tido merecimento para isso, senão a força hereditária.


Resenhando.com - O projeto Barco da Saúde levou assistência, mas também levou câmeras e olhares externos. Como equilibrar a beleza da imagem com o risco de folclorizar a miséria?
Giancarlo Giannelli - 
De fato, esse é um cuidado que tenho pessoalmente. O tempo todo, reconheço minha hereditariedade a fim de promover mudanças no conceito do que se trata, de fato, o merecimento, palavra tão desgastada e insensata nos últimos tempos. A importância de se haver um olhar externo é compartilhar histórias e condições reais, profundas e, principalmente, muito relevantes no contexto social. Não escondo de ninguém, e acho isso muito importante, que vou onde vou porque me interessa, porque me faz bem, porque é relevante para mim e entendo que, principalmente, para a minha profissão. Dentro do panorama de benfeitorias à minha carreira, sei que é um tipo de comunicação que pode reverberar socialmente a favor de um despertar social para a sociedade. Não tenho, todavia, a ilusão de que o recurso chegará para eles antes do que para mim. Evito, na prática, aproveitar-me de cenas brutas, da miséria alheia. Acho isso desnecessário, pois isso é sabido até por quem não vê essas imagens. Procuro a beleza nos mínimos detalhes da miséria como um fio de esperança e como uma poesia à solidez de caráter, alegria e fé de um povo para lá de esquecido. Penso que essa poesia tem a sutil função de quebrar paredes cardíacas normais e mais resistentes à sensibilidade, e promover o debate e a mudança ao longo do tempo por meio da arte. Fazer da minha vida uma riqueza por meio do uso da imagem da pobreza - aquela social e não financeira - não está em meus planos e acho que nunca estará.

Resenhando.com - Há uma tarja amarela na capa do livro, símbolo solar e brasileiro, segundo você. Mas e se essa cor também sugerisse um alerta? O que há de luminoso - e de perigoso - nesse amarelo?
Giancarlo Giannelli - 
Sim, uma tarja que pode chamar atenção por vários significados absorvidos na natureza, onde o amarelo e preto quase sempre significa perigo. Claro que não podemos nos ater a um significado somente, o mesmo sol que traz alegria traz também a violência, e o azul do frio traz tristeza, mas também calmaria. Vivemos em um mundo cada dia mais semiótico e, prioritariamente, o amarelo é a flora, é a alegria, é o sol, é a natureza de um país vibrante, mas que, ao mesmo tempo, pode vibrar com o mesmo poder para o lado contrário. Devemos estar atentos, sempre!

Resenhando.com - Você viveu entre os dois extremos: o glamur dos grandes eventos corporativos e o chão de terra batida das comunidades do Tapajós. Qual Giannelli te parece mais verdadeiro hoje?
Giancarlo Giannelli - 
Infelizmente, o que vemos de glamouroso nos eventos corporativos é uma construção social daquilo que querem que seja glamouroso, sem contudo o ser naturalmente. Estão todos já com essa semiótica absorvida, e o conjunto das pessoas ali, disponíveis, confere poder aos estereótipos, ratificando-os sem terem dito sim. Mas acabei de voltar da Amazônia, e lá entreguei um exemplar do meu livro ao senhor Adelmo Pimentel Cruz, cuja amizade começou a partir dele, que veio me perguntar a respeito desse trabalho social que todos ali realizavam, e como ele respeitava isso e admirava. Batemos um papo por um tempo, fiz fotos dele sendo atendido nas especialidades e tirei uma foto com ele e sua esposa segurando o livro. O valor disso é um lastro de sinceridade que tem um valor difícil de encontrar em grandes eventos, onde tudo está produzido sem a possibilidade de “falhas”, ou um realismo que deixou de existir fora do eixo íntimo familiar. É bom participar de eventos grandes, corporativos, porque todo o tempo tento resgatar conversas sinceras e mais profundas, ainda que dentro desse cenário. Mas o set de vida real de uma Amazônia nos expõe à vida verdadeira, onde se sente dor, fome, calor, mas, ao mesmo tempo, alegria intensa, prazer em ouvir pássaros e respeitá-los livremente, fora das gaiolas - porque a gaiola deles é muito maior que a nossa... O desequilíbrio produz esse resultado da separação daquilo que importa. Nós estamos presos dentro, e eles estão presos fora, assim como a cena final do filme A igualdade é branca, de Krzysztof Kieslowski. A sociedade adoecida separa e aprisiona as relações sociais, dividindo-as apenas em direita e esquerda. Nós somos muito mais que apenas isso. Mas, obviamente, não é possível dialogar com quem decidiu-se por argumentos que não ultrapassam a infantilidade.


Resenhando.com - Ao se debruçar sobre rostos anônimos, você capturou histórias que talvez nunca sejam contadas em palavras. Já pensou em abandonar o texto e deixar que a imagem diga tudo?
Giancarlo Giannelli - 
Comecei por isso, o que é o padrão dos livros fotográficos, e mesclei recentemente com o meu pensamento, porque, antes de ser uma obra universal, é uma obra minha. A partir de mim, a pessoa que interagir com a fotografia pode optar por aquilo que lhe convém. A imagem é algo que não se pode ignorar, mesmo que seja esse o desejo. O texto, sim. A partir do texto, pode haver um aprofundamento entre eu e o espectador. A proposta de manter-se no clássico livro com fotos é optar por uma figura geométrica como o quadrado, num mundo rico em formas e curvas. Já perdemos os grãos de prata redondos quando a fotografia se tornou descrita por pixels de formato quadrado. Basta! Precisamos recuperar as curvas.


Resenhando.com - A floresta, como você viu, é viva, complexa e politizada. Se a Amazônia fosse uma personagem, que adjetivos ela teria - e que tipo de governo ela elegeria?
Giancarlo Giannelli - 
O homem, em suas ações, não se sente integrante da natureza; entretanto, o é! Ainda que maltrate o meio-ambiente com todo o requinte de crueldade, o processador ambiental tratará de liquidificar e responder a seu tempo, que é bem diferente do nosso. Se será mais inóspito daqui algumas eras, outras eras tratarão de limpar o dano e reequilibrar o sistema. Pode ser que o sistema já não integre mais o homem, mas daí não nos interessa numa matéria humana. A eleição da natureza provavelmente emposse a liberdade. É muito provável que a multiplicidade de espécies não se aceite sem ressalvas, o que naturalmente nos leve aos desentendimentos, como, por exemplo, utilizar-se do peixe para lazer, de bichos selvagens para desfiles ornamentais que eles sequer compreendem, ou mesmo construir atrações motorizadas que só servem ao prazer de alguns poucos. No fundo, no fundo, se tornou muito simples avaliar a sociedade dominante: é muita falta do que fazer daqueles que nada fazem e ordenam fazerem tudo por eles...

Resenhando.com - Em tempos de redes sociais saturadas por selfies e filtros, lançar um livro de fotografia autoral é quase um ato de resistência. Ainda vale imprimir o invisível?
Giancarlo Giannelli - 
Eu creio que é mais simples que isso. É só uma natureza que não consigo controlar. Se serve a esse propósito, espero que o cumpra com qualidades boas, energizantes e, quem sabe, conscientizadoras. Uma coisa é a minha vida que acontece. A partir dela, é natural o acontecimento dela interferir numa parcela pequena de pessoas relativas a mim, dentre os quais muitos refutarão minha visão, outros irão apenas ignorar, e outros irão dialogar comigo mesmo sem me conhecer. Assim como imprimir o invisível, o diálogo no vácuo pode reverberar numa esfera social pouco atomizada.


Resenhando.com - Você se diz impactado pela forma como aquelas comunidades vivem. Mas o que mais o assustou: o que falta para eles ou o que sobra para nós?
Giancarlo Giannelli - 
Diferentemente de indígenas sem contato com a natureza, eles começam a degustar o sabor da desilusão social ao experimentarem uma vida que não é a deles, cada dia mais digital, até mesmo nesses locais mal urbanizados. As soluções artísticas tratam de filmes de ficção, em romances que não fazem sentido, em troféus que envergonham, em crenças que tiram o toque da mão na realidade e transformam o virtual em pura realidade. A criação da imagem de super-homens ilude, de forma massificada, a sociedade que deveria se preocupar mais com a obscenidade da fome que da pornografia, como disse certa vez José Saramago. Damos nossos lastros à elite em troca de vida virtual, likes. Ou seja, sobra para eles ainda um lastro de vida que, em breve, também lhes será tomado em troca de likes... Na prática, o que acontece é que saúde e educação não chegam para eles. Tomam água do rio, onde a correnteza limpa um pouco as sujeiras, mas nas margens, cheias de motores de barcos eliminando diesel neste momento, ainda com toda a sujeira dos bichos ali dividindo o espaço.


Resenhando.com - Se fosse possível colocar uma única imagem deste livro em todos os painéis de LED do Brasil por um dia, qual seria - e que legenda ela teria?
Giancarlo Giannelli - Creio que esse livro não tem uma grande foto que sintetize o todo. Penso que, de certa maneira, uma fotografia apoia a fluidez da outra e, assim, sucessivamente a cada página. É mais ou menos o caminho da floresta, os pássaros, os rios, os lagos, a água na pele, os sulcos das águas na floresta, o que fica sob a sombra da copa da árvore iluminada pelo sol. Assim sendo, se tivesse de eleger, como me propôs, eu elegeria a fotografia da página 32, na comunidade Enseada do Amorim, onde o senhor Raimundo Alves é exposto com toda essa síntese no rosto: a mata, a alegria, o sol, a noite, a procriação, o vento, a água, os costumes, os afluentes, as estrelas e tudo mais. Para a legenda, eu manteria o meu padrão poético, que mistura a visão da imagem ditada pelas letras sob uma atmosfera onírica, algo como segue na legenda da foto: “Aqui jaz a memória de um momento em que o rio encontrou o oceano, alimentou os seres, fez crescer a mata, enrugou o homem após conhecer o amor, escureceu a pele, mas, infelizmente foi criado, morto e sepultado ao oitavo dia por falta de informação, fraternidade e compaixão".

segunda-feira, 21 de julho de 2025

.: Romeu Benedicto já foi o diabo, salvou animais e leva fúria para a guerra do sol


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Rebecca Wesolowski

Sem filtros, sem retoques e, felizmente, sem medo de sujar os pés em uma indústria que premia o excesso de filtros e o déficit de conteúdo, o ator Romeu Benedicto segue na contramão: atua como quem tem terra debaixo das unhas, suor na memória e um pacto silencioso com a verdade. Agora, ele surge como Tonhão, um militar aposentado e inflamável na novela "Guerreiros do Sol", disponível no Globoplay, provando que ainda há personagens que sangram de verdade e não apenas repetem frases de efeito com cara de comercial de banco.

Romeu Benedicto é ator, mas poderia ser cronista das entranhas do Brasil. Filho do Mato Grosso profundo, já vendeu manga em carrinho de mão, plantou grama, salvou bichos queimados no Pantanal e teve que se perdoar por ter escolhido a arte em vez da estabilidade. Hoje, aos 59 anos, transforma o sertão em palco e a vingança de Tonhão em um ritual quase ancestral. Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, ele fala sobre cangaço, bastidores sufocantes, a força do chão queimada pela história - e confessa que sua maior cena talvez ainda esteja por vir. 


Resenhando.com - Você já plantou grama, vendeu manga, campeou gado e hoje interpreta patriarcas tomados por vingança em novelas de época. O que ainda há de selvagem - ou de rural - no Romeu que pisa no set?
Romeu Benedicto - Muito bom. O que há em mim são as experiências vividas, as memórias que tenho, o aprendizado que trago e isso me serve como recursos que posso usar nos personagens quando piso no set. Todas essas memórias fazem parte de mim. 

Resenhando.com - Tonhão entra em “Guerreiros do Sol” com a fúria de um homem que teve tudo arrancado. Qual foi a sua tragédia pessoal mais difícil de não transformar em ódio?
Romeu Benedicto - Graças a Deus não tive nenhuma tragédia pessoal como a do Tonhão ou próximo a isso, ainda bem, mas imaginar a possibilidade é apavorante, e foi nessa possibilidade que eu fui de cabeça. A única coisa que me veio na memória foi quando meu pai morreu: um dia antes eu passei o dia com ele, a Monica, minha esposa, grávida de oito meses da Fernanda, e a noite quando fui pra casa ele me pediu pra dormir com ele... Eu disse que não podia, tinha que dormir na minha casa, e ficar com a Monica. À noite, quando recebi a ligação da minha irmã, saí correndo desesperado pra casa do meu pai, veio uma voz, dizendo "calma, ele está bem, está em paz". Cheguei em casa e a ambulância já tinha saído com ele e minha irmã. Aí fui atras, e no caminho eu encontrei a ambulância parada. O médico me olhou e balançou a cabeça, minha irmã chorando, aí ele me falou que não podia levar o corpo ao pronto-socorro, por quando pegaram ele já estava em óbito. Eu me revoltei com aquilo, tive que carregar meu pai morto, colocá-lo no banco de trás do meu carro, que era um Gol, foi um horror ver aquilo. Só de lembrar, eu me emociono. E levamos eu e minha irmã o corpo dele ao pronto-socorro.

Resenhando.com - No sertão onde a trama foi gravada, o tempo mandava mais que a direção. No teatro da vida, quem manda em você hoje: a intuição ou a necessidade?
Romeu Benedicto - A intuição é um dos meus guias, sempre dá certo quando a ouço. Ela me impulsiona e a razão ajuda a lidar com a incerteza de hoje ter, amanhã não ter, porque a necessidade bate à porta todo mês.


Resenhando.com - Você estudou depoimentos de ex-cangaceiros e vítimas de um Brasil bruto. Qual foi o relato mais cruel - ou mais poético - que ainda ecoa na sua cabeça?
Romeu Benedicto - Quando nós chegamos no local onde a equipe de produção, se não estou enganado, montaram a casa da Rosa ou o QG numa propriedade locada para as gravações. Esse local era onde Corisco executou uma família: mulher, crianças e tinha um local onde ele cortou a cabeça do pai na frente das crianças e depois fez o mesmo com cada um. A energia daquele lugar era brutal de pesada, dava pra sentir um calafrio quando eu olhava pros locais, e imaginar aquelas crianças vendo e esperando sua vez. 

Resenhando.com - Você foi o Diabo de Gil Vicente aos 16 anos. De lá pra cá, já teve que negociar sua arte com algum "Anjo da Barca"?
Romeu Benedicto - Eu acredito que nossa dignidade não tem preço, mas às vezes o mais difícil é perceber quando estamos sendo usados. Eu sou do tipo que prefiro confiar primeiro, eu confio nas pessoas, mas uma vez traída essa confiança não consigo mais ser o mesmo e procuro afastar da minha convivência. Já passei por isso, e não negócio o que eu mais amo fazer. Minha arte é parte de mim e tem que ser feita de forma leve, porque é pra alma. 


Resenhando.com - Seu pai dizia que arte não enche barriga. Se pudesse tê-lo como plateia por uma noite, qual cena da sua carreira você gostaria que ele visse - e o que espera que ele dissesse no fim? 
Romeu Benedicto - Primeiro, eu iria querer que ele conhecesse meus filhos. Ele ia amá-los. Eu gostaria que ele visse esse momento da minha carreira e que ele percebesse que estou mantendo um equilíbrio entre ter e ser e que é possível. Então ele me diria: “Filho siga seu sonho e seja feliz, eu te liberto e te autorizo”. E na primeira fileira ele levantasse e gritasse: “Bravo!”, e falasse: “Esse é meu filho!”


Resenhando.com - Entre um cavalo sem sela e um set em que o tempo fecha como em Londres, qual foi o perrengue mais cinematográfico da sua vida fora das câmeras?
Romeu Benedicto - Foi numa travessia de barco da Barra da Lagoa até a ilha do Campeche em Florianópolis, estávamos eu, minha esposa grávida do meu filho Heitor, e eu com minha filha no colo de um ano e meio. Na ida, foi uma tranquilidade, mas na volta, meu Deus do céu, o tempo fechou, o céu escureceu, e as ondas ficaram gigantescas. Elas cresciam ao lado do barco em uma altura de mais de três metros e jogava o barco para cima e para o lado. Eu agarrava com minha filha e, ao mesmo tempo, segurava minha esposa tentando com que ela não sentisse tanto o baque no barco quando caía. Foi um desespero. Eu vi aquele barco virar, rezei muito pra que chegássemos em terra firme o mais rápido possível. Aquela viagem parecia interminável. Foi aterrorizante, só de falar ainda sinto o frio na barriga. Quando chegamos, foi um alívio. Nunca mais fiz passeio de barco. No cavalo sem cela a gente tem um certo controle, mas do tempo, não temos e ficamos reféns. Reconhecer a grandeza do tempo, da natureza, e sua força é fundamental. Somos pequenos diante dela. 

Resenhando.com - Você já salvou bichos queimados no Pantanal. A atuação, de certa forma, também o salvou?
Romeu Benedicto - Sim, por causa dela sou quem eu sou hoje. Acreditar que é possível e não desistir me salvou de não ser raso, de não ser inteiro. No ofício de ser ator, posso ser pleno.


Resenhando.com - Belarmino guiava o público por caminhos à beira do lago. Se hoje você fosse convidado a fazer um monólogo chamado "Tonhão", qual seria o território cênico ideal: um campo de guerra, um confessionário ou uma mesa de boteco?
Romeu Benedicto - Seria um confessionário (risos). Haja ouvido! Tonhão teria muitos pecados a confessar porque apesar de toda a tragédia em sua vida, ele ainda poderia escolher o caminho do bem. Sempre temos escolhas, mas ele foi tomado pela cegueira do ódio e da vingança. E matou, bateu, aliou-se ao diabo, Arduino, o cavalo Cão.


Resenhando.com - Se a Globo decidisse filmar sua biografia em formato de novela épica, qual seria o título, o seu par romântico ideal e a cena final?
Romeu Benedicto - Nossa que sonho (risos)! Não sei nem o que falar aqui (risos). Mas seria "Do Pantanal Profundo às Telenovelas", com uma mulher de cabelos cacheados, vinda do Paraná, Londrina, e uma cena final com o pôr do sol belíssimo do Pantanal.

domingo, 20 de julho de 2025

.: Humberto Werneck desafia o tempo e reencena a crônica como gênero vivo


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Luiza Sigulem

Sentado no meio-fio da memória brasileira, Humberto Werneck acende um cigarro imaginário e convida o leitor a conversar - sem pressa, mas com precisão. Aos 80 anos, o mineiro que já rabiscou reportagens, biografias e dicionários de lugares-comuns, lança "Viagem no País da Crônica" e transforma o que era um acervo digital em um passeio literário que atravessa estações, feriados, goleadas e golpes de Estado.

Werneck não só comenta Clarice Lispector, Rubem Braga e Fernando Sabino como se estivesse em um bate-papo informal - ele os costura com o cuidado de quem também é parte do tecido. Entre crônicas sobre uísque, chuva, fotografia e República, o jornalista transforma o gênero “maleável e indefinido” em mapa e espelho de um Brasil realista e fantástico, às vezes no mesmo parágrafo.

Nesta conversa exclusiva ao rés do chão com o Resenhando.com, Werneck fala do patinho feio da literatura, dos jogos de futebol com poetas e das dores e delícias de ser cronista em um país que parece sempre em véspera de alguma coisa. E prova, mais uma vez, que escrever bem é mais que talento: é saber escutar a rua com os ouvidos de quem consegue interpretar as entrelinhas da vida. Compre o livro "Viagem no País da Crônica" neste link.

Resenhando.com - Se a crônica é o patinho feio da literatura, quem seria o cisne da vez - o romance autoficcional ou o livro de autoajuda disfarçado de literatura?
Humberto Werneck - O cisne da vez pode ser um desses dois, ou ambos. O primeiro, tão em moda, me sugere anemia criadora. O segundo, nem isso.

Resenhando.com - Entre o meio-fio e a torre de marfim: como foi sobreviver a décadas de jornalismo sem ceder ao clichê do cronista que vira personagem de si mesmo?
Humberto Werneck - O jornalismo, ao contrário da literatura, busca ser objetivo e impessoal. Talvez isso explique que alguns jornalistas, na hora de serem cronistas, vão à forra, concentrando-se na observação do próprio umbigo. 

Resenhando.com - Tem alguma crônica que você se arrepende de não ter escrito - ou pior, alguma que gostaria de ter assinado no lugar de Clarice Lispector, Rubem Braga ou Fernando Sabino?
Humberto Werneck - Arrependimento? Nenhum. Mas perdi a conta das crônicas alheias que me enchem de inveja benigna. “Viúva na Praia”, de Rubem Braga, por exemplo. “Esquina”, de Mário de Andrade. “O Amor Acaba”, de Paulo Mendes Campos. “O Inventor da Laranja”, de Fernando Sabino. “Canção de Homens e Mulheres Lamentáveis”, de Antônio Maria.
 

Resenhando.com - Ao organizar essa “viagem” literária de janeiro a dezembro, que estação do ano você acha que o Brasil definitivamente não sabe viver?
Humberto Werneck - O Brasil se dá bem com todas as estações do ano, até porque, na barafunda climática cada vez maior, as quatro têm estado muito parecidas.

Resenhando.com - Carnaval, uísque, fé e futebol: qual desses temas envelheceu melhor nas crônicas?
Humberto Werneck - Talvez o futebol tenha envelhecido melhor - embora não me pareça hoje nem remotamente merecedor de um Nelson Rodrigues.

Resenhando.com - Qual foi a maior mentira já contada sobre a crônica brasileira - e por que ela ainda sobrevive?
Humberto Werneck - A crônica sobrevive porque todos nós gostamos de uma conversa boa. Quanto às mentiras... bem, estou pensando aqui em Alceu Amoroso Lima, um crítico para quem “uma crônica, num livro, é como um passarinho afogado”. E tem o Ledo Ivo, que falou da crônica como sendo ”esse gênero anfíbio que, pertencendo simultaneamente ao jornalismo e à literatura, assegura notoriedade e garante o esquecimento”. A frase, aliás, está num livro dele que se chama "O Ajudante de Mentiroso".

 
Resenhando.com - No fim das contas, escrever sobre o cotidiano com humor é mais sobre rir do mundo - ou sobre disfarçar o próprio desespero?
Humberto Werneck - Talvez seja uma tentativa de consertar o mundo e as coisas.

Resenhando.com - O que dói mais: a pressa do deadline de um jornal ou a lentidão do reconhecimento da crônica como gênero literário legítimo?
Humberto Werneck - Cronistas como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Antônio Maria passaram anos escrevendo para o jornal do dia seguinte, e nesse regime brabo produziram textos capazes de atravessar o tempo. Com isso, se deram melhor do que muito contista e romancista que visava a eternidade, e cuja obra acabou não tendo a sobrevida de alguns recortes de jornal ou revista. O reconhecimento está chegando, mas ainda tem muito nariz cronicamente torcido para a crônica...

Resenhando.com - Ao costurar crônicas sobre a Revolução de 30, o golpe de 64 e a construção de Brasília, não deu vontade de escrever também sobre o golpe do PIX, o Enem da redação nula e a CPI do fim do mundo? A crônica ainda dá conta do Brasil de hoje?
Humberto Werneck - Para o bom cronista não há assunto que não sirva. Até mesmo a falta de assunto rendeu pérolas de mestres como Rubem Braga, Drummond ou Vinicius de Moraes. Drummond, aliás, deliciou os leitores com uma crônica sobre o que fazer com os pelos das orelhas. Por que o golpe do PIX, o Enem da redação nula e a CPI do fim do mundo não renderiam coisa boa de ler? A dificuldade não está no tema, mas da capacidade de tratá-lo sem que daí venha, em vez de crônica, um artigo ou editorial.

Resenhando.com - Se a crônica é uma conversa no meio-fio, o que fazer quando o leitor está com fone de ouvido, olhando pro celular e atravessando a rua sem olhar? Ainda dá pra puxar papo?
Humberto Werneck - Assim como acontece com o autor, não é sempre que o leitor está brilhante. Mas pode se dar também uma coincidência feliz, aquela em que, numa ponta e na outra, haja quem adore uma conversa boa.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

.: Entrevista com Edson Aran: Machado, Drácula e outras heresias deliciosas


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: arte feita a partir de foto publicada no Instagram @edsonaran.

Imagine o seguinte: Brás Cubas andando distraidamente pelas ruas do Rio de Janeiro enquanto Capitu, mais instável do que nunca, recebe uma visita noturna do conde Drácula - e tudo isso sob o olhar nada complacente de Quincas Borba, que talvez tenha finalmente encontrado um adversário à altura do Humanitismo. Se essa cena parece um delírio febril de um crítico literário viciado em absinto, é porque você ainda não leu "Quincas Borba e o Nosferatu", o novo e audacioso romance de Edson Aran, autor que há anos reescreve, com ironia e precisão, os manuais de estilo da literatura nacional.

Aran - que já foi cartunista, editor de revistas masculinas, roteirista de TV, criador de memes, cronista ácido, conspirólogo confesso e um dos poucos homens que podem dizer que superaram a revista Playboy - volta ao romance com um livro que mistura Machado de Assis, Bram Stoker e um senso de humor afiado como as presas do vampiro em questão. O resultado? Uma obra que desafia puristas, diverte iconoclastas e talvez incomode mortos ilustres.

Nesta entrevista exclusiva para o Resenhando.com, Aran abre o caixão de suas ideias, morde o pescoço dos clássicos e lembra a todos, com irreverência e elegância, que a literatura continua sendo o melhor dos vícios - mesmo quando escrita com sangue e sarcasmo. É uma conversa sem crucifixos nem pudores. Compre o livro "Quincas Borba e o Nosferatu" neste link.


Resenhando.com - Como foi transformar a ironia machadiana em terreno fértil para criaturas das trevas?
Edson Aran - Esse foi um desafio dos mais divertidos. “Quincas Borba e o Nosferatu” é um romance polifônico construído com cartas, diários e notícias de jornal, exatamente como o “Drácula” de Bram Stoker. Só que dois dos narradores - Brás Cubas e Bento Santiago - não são confiáveis. Cubas continua sendo o dândi cínico de “Memórias Póstumas” e entra na história mais por tédio e vaidade, do que para entender a natureza dos fatos. Bentinho é ciumento, inseguro e não tem muita convicção do que presenciou. A mistura do romance gótico de Bram Stoker com a narrativa irônica do Machado reforça o horror da história. Porque, veja bem, “Quincas Borba e o Nosferatu” não é um livro de humor. É uma história de terror com momentos bem-humorados, é outra coisa.


Resenhando.com - Qual foi o limite ético (ou estético) que você precisou ignorar para colocar Brás Cubas e Capitu sob o mesmo teto que um vampiro sedento e aristocrata? A provocação foi literária ou existencial?
Edson Aran - Ao contrário de Capitu, eu sou fiel aos meus amores. Os personagens do Machado estão lá com todas suas características originais. Quincas Borba ainda é o filósofo meio doido que criou o Humanitismo. Capitu ainda é uma mulher sedutora e impulsiva de olhar oblíquo e dissimulado. Bento Santiago ainda é o marido ciumento e melindrado (talvez apenas um pouquinho mais cruel no meu livro do que em “Dom Casmurro”). Escobar é o mesmo Escobar, Sancha é a mesma Sancha e Drácula é o mesmo Drácula. Só Capituzinha, a filha de Sancha e Escobar, é um pouco mais levada no meu livro, mas criança tem que ser levada mesmo.


Resenhando.com - Você acredita que Machado de Assis teria rido ou processado você? E, no Tribunal das Letras, quem seria seu advogado: Kafka, Stan Lee ou Ariano Suassuna?
Edson Aran - Acho que Machado se divertiria muito com “Quincas Borba e o Nosferatu”. Bram Stoker também, por falar nisso. Antes de serem capturados e mantidos em cativeiro pelos acadêmicos, esses escritores produziam folhetins publicados regularmente em jornais e revistas. Era o streaming da época. Se Machado estivesse vivo, ele estaria escrevendo a novela das nove, talvez com Bram Stoker na sala de roteiro. Literatura é pra ser lida, não pra juntar poeira na estante. Tenho a impressão de que Machado gostaria de ver seus personagens ganhando vida numa narrativa contemporânea, mas com raízes na obra que ele escreveu. Eu não ia precisar de advogado, não. Principalmente se fosse o Kafka, que nunca ganhou um processo.


Resenhando.com - No Brasil atual, o que assusta mais: um Nosferatu rondando o Paço Imperial ou a ascensão de políticos que não leem nem bula de remédio?
Edson Aran - Ando bastante desanimado com o Brasil. Quer dizer, deixa eu explicar. Por um lado, sou muito fã da minha geração e acho que a gente mandou e manda muito bem na cultura, no jornalismo e na literatura. Estou com 62, então coloco nessa turma gente como a Fernanda Torres, a Debora Bloch, o Claudio Manoel, o Marçal Aquino, o Renato Russo...não dá pra reclamar, né? Agora, na política, foi um desastre. Fizemos o mesmo que todas as gerações anteriores: falhamos totalmente em tirar o país da estagnação burocrática, política e econômica. Mas olha, você acha que “Quincas Borba e o Nosferatu” não reflete essa melancolia? Achou errado, pois reflete.


Resenhando.com - Você tem um histórico marcante com o humor gráfico e a cultura pop. Quais personagens dos gibis ou da pornografia elegante dos anos 90 você gostaria de ver em um “cross-over literário” nos moldes de Quincas Borba e o Nosferatu? 
Edson Aran - Os quadrinhos vivem fazendo crossover desde sempre, então não tenho muito o que acrescentar não. E a literatura erótica não tem personagens muito marcantes. A não ser que a gente inclua “Drácula” nesta categoria, coisa que faz sentido pra mim. E talvez “Dom Casmurro”, já pensou? Será que Bentinho, no fundo, no fundo, não se excita com a ideia de Capitu se entregar ao Escobar? Será que aquilo tudo não é a fantasia sexual de um seminarista travado? Mas, voltando à pergunta, é bem possível que eu promova outros encontros inusitados no futuro. Será que “Quincas Borba e o Nosferatu” é o início de um multiverso? Quem sabe, quem sabe...


Resenhando.com - Existe alguma personagem da literatura brasileira que você jamais ousaria parodiar? É por reverência, medo ou falta de graça mesmo? 
Edson Aran - O humor é por natureza irreverente. Quando a reverência entra pela porta da frente, o humor sai pela porta dos fundos. Mas eu não faria paródia com o José de Alencar, por exemplo. Eu teria que reler os livros dele e a vida é muito curta. É a mesma coisa com “O Ateneu” do Raul Pompéia, com aqueles paragrafões de cinco quilômetros sem ponto final. Seria divertido zoar isso, mas quem leu esse troço até o fim? Quem ia entender a piada? A paródia é uma forma de homenagem e, quando é bem-feita, também é uma declaração de amor.


Resenhando.com - Você já criou a Telma Luíza, o Romero morto-vivo e até um livro de epitáfios. Quem você gostaria que assinasse seu próprio obituário - e o que gostaria que dissesse? 
Edson Aran - O obituário é um ótimo gênero literário porque o personagem nunca reclama, mas eu prefiro ser autor do que objeto. Já o meu epitáfio está no “Aqui Jaz – O livro dos epitáfios”: “Agora sim... espirituoso”.


Resenhando.com - No seu livro anterior, você brincou de reescrever a história literária brasileira. Se pudesse reescrever a história do jornalismo cultural brasileiro, qual revista você salvaria do esquecimento - e qual apagaria com gosto?
Edson Aran - De muitas maneiras, “Quincas Borba e o Nosferatu” é uma continuação de “Histórias Jamais Contadas da Literatura Brasileira”, só que num outro gênero, o horror. O jornalismo cultural teve bastante coisa interessante: Senhor, VIP, Playboy, Realidade, Oitenta, Pasquim... muita coisa boa. Mas eu não apagaria nenhuma revista da história não. A gente sequer lembra delas, pra quê apagar?


Resenhando.com - Seu livro tem Capitu, mas e Bentinho, foi cancelado, virou coach ou está preso na Cracolândia dos ciumentos anônimos?
Edson Aran - Bentinho foi um homem demasiadamente apaixonado e inseguro. Tudo o que ele fez na vida - largar o seminário, aproximar Sancha de Escobar - foi por causa de Capitu. E aí ele foi traído. Por Capitu e Escobar, seu melhor amigo. E, veja, Bentinho vivia no Rio de Janeiro do Segundo Império, não no Leblon do Terceiro Milênio. A infidelidade na época era um tremendo problema social, principalmente quando era explícita (e o romance é cheio de detalhes sobre isso, todo mundo sabia). Só que a traição de Capitu o tornou um homem demasiadamente cruel, característica eu ressalto em “Quincas Borba e o Nosferatu”. Agora, essa bobagem de que Capitu nunca traiu, que vejo muita gente defendendo, é uma atitude moralista sem-noção. Coisa de seminarista católico, igual ao Bentinho. Como assim, não traiu? Capitu deu sim. Deu muito. E daí? Ela continua sendo uma personagem fascinante, intrigante e apaixonante. Talvez porque tenha pulado a cerca sem medo de ser feliz. Deixa ela, pô.


Resenhando.com - Se fosse possível exumar um autor morto para conversar sobre seu novo romance, quem você traria à vida por uma noite - e o que pediria que ele lesse em voz alta para você e o Drácula?
Edson Aran - Conversei algumas vezes com o Millôr Fernandes, mas ele faz muita falta neste Brasil empacado no tempo. Então eu o traria de volta não apenas por mim, mas pelo país. Também enviaria uma cópia do livro para o Ivan Lessa, claro, que certamente retribuiria com um e-mail econômico, mas cheio de sacadas. Quando escrevi o “Delacroix Escapa das Chamas”, foi o Ivan quem inventou o conceito “um romance em quatro tempos” para um livro de quatro narrativas independentes. E com certeza eu mandaria o livro para o Jô Soares. Com certeza. A gente trocava muitas mensagens nos meus tempos de Playboy e tive a honra de ler “As Esganadas” antes de todo mundo. Eu gostaria muito de ouvir o autor de “O Xangô de Baker Street” sobre “Quincas Borba e o Nosferatu".


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