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segunda-feira, 17 de novembro de 2025

.: “As Narradoras”: podcast celebra autoras fundamentais do século XX

A literatura do século XX acaba de ganhar um novo espaço para celebrar as vozes femininas mais vibrantes. "As Narradoras", minissérie em áudio apresentada pela editora Stéphanie Roque, revisita vidas, obras, afetos e rupturas de escritoras que moldaram a literatura mundial - e o faz conectando gerações, temas e possibilidades de leitura. São sete episódios que reúnem autoras distantes no tempo e no espaço, mas profundamente entrelaçadas por afinidades temáticas: amizade, cotidianidade, imaginação, família, escrita íntima e criação artística.

A proposta é simples e ambiciosa ao mesmo tempo: aproximar duplas de autoras para entender como as experiências, estilos e obsessões delas dialogam entre si e permanecem vivas na escrita contemporânea. Para isso, "As Narradoras" traz também a participação de nomes atuais - como Aline Bei, Socorro Acioli e Micheliny Verunschk - que comentam a relevância das homenageadas e expandem suas leituras. A atriz Maeve Jinkings empresta a voz a trechos de livros, criando um elo sensorial entre texto e escuta.


Episódio 1 - "As Irmãs Sisters"
O episódio de estreia mergulha na cumplicidade entre Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst, uma amizade que atravessou mais de meio século. As duas - que se autodenominavam “irmãs sisters” - partilharam confidências, rotinas, risos, medos e criação literária. O programa reconta esse encontro improvável e profundamente frutífero, explorando como suas trajetórias se cruzaram e se influenciaram mutuamente. Entre as vozes convidadas, participam Bruna Khalil Othero, Raquel Cozer e Lúcia Telles, enriquecendo o retrato dessas duas forças da nossa literatura.


Episódio 2 - "Estranhas Familiares"
O segundo capítulo destaca Leonora Carrington e Silvina Ocampo, duas autoras que embaralharam a fronteira entre o cotidiano e o fantástico. Desejo, infância, sonho, loucura, morte e liberdade atravessam suas narrativas - sempre guiadas por uma imaginação indomável. Micheliny Verunschk e Socorro Acioli comentam suas obras e refletem sobre o realismo fantástico, fio que costura a dupla e faz com que suas histórias permaneçam tão inquietantes quanto atuais.

Uma travessia entre gerações de narradoras
A minissérie propõe um encontro simbólico: escritoras que abriram caminhos sendo celebradas por quem hoje continua a reinventá-los. Mais do que perfis biográficos, "As Narradoras" oferece um mosaico de experiências e sensibilidades que atravessam o século XX e desembocam no presente - reafirmando a potência da literatura escrita por mulheres e sua capacidade de atravessar fronteiras.

Os dois primeiros episódios já estão disponíveis, e os demais chegam sempre às quartas-feiras, no tocador de áudio favorito do público. Uma boa oportunidade para revisitar autoras imprescindíveis e descobrir novas leituras com desconto - basta conferir as indicações divulgadas junto ao projeto. "As Narradoras" estreia como convite e celebração: ouvir para ler mais, ler para compreender melhor quem nos antecedeu, e quem segue narrando o mundo ao nosso lado.

domingo, 16 de novembro de 2025

.: Entrevista: Jerónimo Pizarro fala sobre o legado de Ricardo Reis


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com
Foto: divulgação

Segurar um livro de Ricardo Reis em 2025 é como abrir uma janela para um tempo que nunca existiu - e, ainda assim, insiste em assombrar. Há algo de profundamente irônico, quase literário demais para ser coincidência, no fato de o heterônimo que talvez tenha “se exilado” no Brasil retornar justamente agora, completo, restaurado, decifrado, com seus paradoxos intactos. A Tinta-da-China Brasil lança a primeira obra completa de Ricardo Reis, organizada por Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe, e a sensação é a de estar diante não apenas de um volume, mas de uma espécie de artefato arqueológico: um mapa para entrar na mente dividida - e multiplicada - de Fernando Pessoa.

Reis, o mais sereno dos inquietos, o mais clássico dos modernos, sempre foi um desafio até para quem vive de enfrentar manuscritos poeirentos e grafias arcaizadas. “Vivem em nós inúmeros”, escreveu ele - e talvez nenhuma frase explique melhor o exercício de tentar organizar a obra de alguém que, por definição, nunca foi apenas um. Nesta edição, o leitor encontrará poesia, prosa, inéditos, variantes e uma ortografia que soa como mármore: dura, bela, cheia de ecos gregos e latinos. 

Conversar com Jerónimo Pizarro - arqueólogo do espólio pessoano - é perceber que Reis continua a  desafiar. A amplitude da prosa escrita por ele desmonta a imagem de uma serenidade absoluta; sob as odes perfeitas há dúvida, trabalho, hesitação. Em tempos de velocidade ansiosa, há algo de  contemporâneo na contenção ricardiana, nesse equilíbrio que se sustenta sobre tensões, jamais sobre certezas. Em meio ao ruído, Reis oferece lucidez - e uma rebeldia silenciosa.

Em entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, Jerónimo Pizarro abre as “arcas de Pessoa” ao lado de quem passou anos dentro delas. Ele fala de grafias arcaizadas, do paradoxo entre classicismo e modernidade, de descobertas recentes, de ética pagã e também do simbolismo quase poético de lançar, no Brasil, o heterônimo que para cá teria fugido. Afinal - como Reis talvez sorrisse ao lembrar - nada é definitivo. Compre o livro "Obra Completa de Ricardo Reis", edição de Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe, neste link.


Resenhando.com - “Vivem em nós inúmeros”, escreveu Ricardo Reis - e talvez também se pudesse dizer: “editam-nos inúmeros”. O que significa organizar a obra completa de um heterônimo cuja própria existência é feita de paradoxos e desdobramentos?
Jerónimo Pizarro - Organizar a obra completa de Ricardo Reis é aceitar a contradição como princípio. Reis representa uma forma de disciplina poética que Pessoa inventa para equilibrar o tumulto dos outros. Mas Reis não é menos tumultuoso, nem em termos de filologia nem de ontologia...


Resenhando.com - Entre todos os heterônimos de Pessoa, Ricardo Reis talvez seja o mais enigmático: monárquico e pagão, clássico e moderno, racional e melancólico. Como traduzir esse equilíbrio de contrários em um volume que pretende ser definitivo?
Jerónimo Pizarro - A enigmática serenidade de Reis vem precisamente desse equilíbrio de contrários. A edição tentou refletir isso não através de um gesto unificador, mas respeitando a coexistência de tensões. Basta, por exemplo, começar a ler a prosa em paralelo com a poesia e vice-versa...


Resenhando.com - A edição mantém a grafia original usada por Pessoa - uma escolha que parece mais filosófica do que apenas filológica. Por que era essencial preservar essa ortografia “arcaizada” de Reis?
Jerónimo Pizarro - Preservar a ortografia de Reis é fazer uma homenagem ao seu tempo, ao seu classicismo. Até certo ponto, a ortografia “arcaizada” é parte do estilo ricardiano.


Resenhando.com - Há, neste livro, textos inéditos e variantes que reconfiguram o que sabíamos sobre Ricardo Reis. Que descobertas vocês destacariam? O que surpreendeu até mesmo os organizadores?
Jerónimo Pizarro - Entre as novidades, talvez surpreenda a amplitude da prosa de Reis: as reflexões filosóficas e notas que o aproximam de um ensaísta moral, não apenas de um poeta. Em princípio, as variantes revelam um labor que desmente a imagem de serenidade absoluta: há inquietação e dúvida sob o mármore aparente.


Resenhando.com - Pessoa dizia que “toda a arte é uma forma de literatura”. O que a prosa de Reis - menos conhecida do que as odes - revela sobre sua visão de mundo e sua relação com o próprio Pessoa?
Jerónimo Pizarro - A poesia e a prosa de Reis revelam uma vontade de pensamento, uma ética da distância. Nela, o diálogo com Pessoa torna-se mais nítido; como se ambos, o criador e a criatura, meditassem, lado a lado, sobre o valor da contenção (no meio da inúmera multiplicação...).


Resenhando.com - Ao ler Ricardo Reis hoje, em 2025, o que ele ainda fala? Em um tempo tão convulsionado e impaciente, que lição ética ou estética se pode tirar da serenidade pagã e do ceticismo de Reis?
Jerónimo Pizarro - Em 2025, o ceticismo ricardiano oferece lucidez; uma certa abdicação, resistência. Reis ensina que o equilíbrio pode coexistir com rebeldia e que o classicismo pode ser, paradoxalmente, uma vanguarda ética.


Resenhando.com - O livro encerra a trilogia da Coleção Pessoa, depois das obras completas de Caeiro e Campos. Que imagem do poeta - e do homem Fernando Pessoa - emerge dessa trilogia?
Jerónimo Pizarro - A trilogia da Coleção Pessoa mostra três formas de lidar com o infinito: Caeiro com a simplicidade, Campos com o excesso e Reis com a contenção. Juntas, as três obras revelam um Pessoa plural que se desdobra não para se perder, mas para se compreender melhor.


Resenhando.com - Ambos os organizadores têm trajetórias ligadas ao universo acadêmico e editorial, mas há também uma dimensão quase arqueológica em lidar com o espólio pessoano. O que mais fascina e o que mais exaure nesse trabalho de “abrir as arcas de Pessoa”?
Jerónimo Pizarro - O trabalho com o espólio pessoano é feito de fascínio e de um saber lidar com o cansaço físico. Fascina a inteligência labiríntica dos papéis, o modo como cada fragmento pode dialogar com outro; esgota a vastidão. Editar Pessoa é abrir caminhos que se multiplicam; cada descoberta traz novos interrogantes.


Resenhando.com - Há uma certa ironia em lançar a obra completa de Ricardo Reis no Brasil - o país para onde ele teria se exilado. Essa coincidência tem para vocês algum sentido simbólico?
Jerónimo Pizarro - Publicar Ricardo Reis no Brasil tem um sentido simbólico inevitável: é como se o heterónimo regressasse ao seu exílio imaginário. Há algo de circular e poético nesse gesto: Reis, que partiu para o Brasil, volta agora impresso e completo, como se cumprisse finalmente um destino literário.


Resenhando.com - Se Ricardo Reis pudesse escrever uma ode sobre este lançamento, o que ele diria?
Jerónimo Pizarro - Se Reis escrevesse uma ode sobre este lançamento, talvez dissesse: “Entre sombras antigas / e o rumor das nascentes, / um livro se fecha, outro desponta. / Nada é definitivo.” E sorriria, discretamente, perante a ideia de lançamento.



.: Ana Paula Couto, autora de "Amor de Alecrim", e mulheres 50+ em romance


Romance “Amor de Alecrim” continua a história de Amanda, protagonista de "Amor de Manjericão", e aborda temas como menopausa e independência emocional. Foto: divulgação


Com leveza e humor, a professora e escritora Ana Paula Couto lançou o livro "Amor de Alecrim", sequência de "Amor de Manjericão" (2022). O novo romance mergulha na vida de Amanda, uma mulher que, aos 50 anos, enfrenta desafios como crise conjugal, menopausa e a descoberta de novas paixões. A protagonista, que no primeiro livro superou um divórcio e um affair com um homem mais jovem, agora se depara com a aposentadoria, os dilemas da maternidade e o reencontro com um amor do passado. Além do entretenimento, a obra apresenta uma representação de uma personagem mais velha, discutindo temas como o etarismo e a invisibilidade feminina após os 50 anos.

Natural de Nova Friburgo (RJ), onde ainda reside, Ana Paula Couto é professora de língua inglesa há mais de duas décadas. Estreou na literatura em 2021, com participações em antologias como “Diário dos Confinados” (Editora Resilience). Seu primeiro romance, “Amor de Manjericão” (2022), foi pivô de sua transição para a carreira literária. Desde então, publicou os e-books “Conto Comigo” (contos) e “Vida Crônica” (crônicas) e participou de eventos como Flip e Bienais do Livro. Na entrevista abaixo, ela conta mais sobre o processo de escrita de “Amor de Alecrim”, seu segundo romance. Compre o livro "Amor de Alecrim", de Ana Paula Couto, neste link.


Quais são os principais temas de “Amor de Alecrim” e como eles dialogam com o primeiro livro, “Amor de Manjericão”?
Ana Paula Couto -  "Amor de Alecrim" é a continuação do meu primeiro livro, "Amor de Manjericão", e vem com temas como relacionamento entre mãe e filha, síndrome do ninho vazio, crise conjugal, aposentadoria, mudanças nos relacionamentos afetivos, autoconhecimento e independência emocional, menopausa e mudanças de paradigmas. "Amor de Manjericão" é um chick-lit que dá protagonismo a uma mulher 40+ retratando o seu processo de autoconhecimento e sua trajetória pessoal após uma traição seguida por um divórcio. A obra enfoca as nuances do universo feminino em que a personagem principal vivencia situações presentes em nossa sociedade como o etarismo, por exemplo, quando ela se relaciona com um homem bem mais jovem. Também retrata questões relacionadas à maternidade. Escolhi temas e assuntos que, de alguma forma, fossem comuns às mulheres e as tocassem de alguma forma. Quis trazer um spot ao cotidiano feminino. Sendo assim, Amor de Alecrim segue o mesmo tracejado do primeiro livro, trazendo, de forma leve e bem-humorada, a mesma personagem dez anos depois, já casada e cheia de questões inerentes à essa fase da vida.


Por que você decidiu escrever uma continuação?
Ana Paula Couto - Eu já havia pensado, assim que lancei meu primeiro livro, numa possível continuação, mas não era nada concreto. No entanto, ao lançar Amor de Manjericão, em 2022, recebi muito incentivo, e até ideias me foram dadas por leitores que me cobraram a continuidade da história. Em 2023, motivada pelo alcance que o Manjericão teve em tocar as pessoas e seus pedidos, me lancei na produção da sequência do romance. Escrevi o livro em um ano. Em 2024 busquei recursos profissionais para o meu segundo livro. Já que me senti mais preparada e possuía alguma experiência na área, utilizei-me do networking conseguido até então e submeti o livro à leituras críticas e beta. Esse ano foi todo destinado a lapidar e lançar o romance.


Que mensagem você espera que as leitoras encontrem nas duas obras?
Ana Paula Couto - Os livros trazem assuntos importantes de forma leve e divertida, como um bom chick-lit, mas também emocionam, tocam e inspiram mulheres. A principal mensagem é a superação de desafios e o não desistir de si mesmo, a despeito das circunstâncias e das vicissitudes da vida. Ambas histórias trazem, por meio de uma leitura fluida, o gostinho de se dar a volta por cima e saborear a esperança. Tudo isso regado aos temperos, manjericão e alecrim, que de forma lúdica, interferem no destino da personagem Amanda.


Para você, qual o diferencial desta história? Por que ela precisa ser contada?
Ana Paula Couto - Creio que o ponto forte de meus livros é abordar temas que refletem a vidas das mulheres como um todo. E também a questão de trazer personagens 40+ e 50+, fase da vida que se tem pouca representatividade. Sendo assim, acredito que, mesmo não sendo as personagens idosas, as histórias trazem luz ao envelhecer e às mudanças na vida das mulheres, o que acaba discutindo o etarismo.


O que a escrita destes dois livros representa para você, na sua trajetória pessoal e profissional?
Ana Paula Couto - A escrita do primeiro livro me transformou no decorrer de seu processo de criação por ter sido uma experiência terapêutica, já que trata-se de uma bioficção, mas, majoritariamente, escrever e lançar esse livro modificou a minha vida como um todo. Foi uma virada de chave em minha trajetória pessoal e profissional. Em um ano de lançamento me posicionei como autora de fato, desengavetando projetos. Participei de eventos literários em minha cidade e fora dela, me engajei em coletivos femininos de escrita e assim dei a largada da minha carreira como escritora e não parei mais. Percebi essa virada ao ser, agora, reconhecida como escritora e não mais somente vista como docente.


De que forma suas experiências anteriores com contos, crônicas e o blog Vida Crônica contribuíram para este segundo romance?
Ana Paula Couto -  "Amor de Manjericão" foi meu primeiro romance publicado. No entanto, já havia inúmeros contos e crônicas meus da época em que eu achava muito ousado me posicionar como autora, pois, ao meu ver, tratava-se de um hobby. Lancei meu blog “Vida Crônica” no Wordpress e lá pousava minhas tímidas produções artísticas. O blog ainda existe. Acredito que todo esse repertório me ajudou a dar corpo ao meu primeiro romance, até ter coragem para lançá-lo. Amor de Alecrim foi totalmente pautado em "Amor de Manjericão".


Como descobriu o chick-lit e por que esse gênero se encaixa tão bem na sua escrita?
Ana Paula Couto - "Amor de Manjericão" e "Amor de Alecrim" são chick-lits. Quando escrevi o primeiro livro não conhecia esse gênero, mesmo já tendo consumido histórias que se encaixavam nele. As histórias, tipicamente femininas e contemporâneas que conto, trazem com força esse estilo que não escolhi escrever, mas que se enquadrou à minha personalidade e ao meu feeling literário. A partir de 2022 comecei a escrever, a partir de um conto, uma bioficção retratando experiências vividas com a intenção de também relatar vivências das várias mulheres que passaram pela minha vida. Venho de uma família predominantemente feminina. Essa história comum, meu primeiro livro, precisava ser contada para tocar as mulheres. Há uma nítida identificação com as leitoras que se veem retratadas na obra.


Quais são as suas principais influências artísticas e literárias?
Ana Paula Couto - Sou leitora desde a adolescência e apreciadora, desde essa época, de Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar. Mais tarde, durante a minha formação acadêmica, fui fortemente influenciada pelos clássicos como Machado de Assis, George Orwell, Skakespeare e afins. No entanto, dissocio totalmente meu estilo literário de alguma influência específica. Sou um mix das músicas, dos filmes, dos livros e de tudo que absorvi culturalmente até aqui e exponho isso claramente em minhas histórias. Gosto de dizer que minha escrita fugiu da academia. Tenho orgulho disso. Apesar do chick-lit ainda ser um gênero considerado menor para alguns, o que é um ranço do legado da sociedade patriarcal, me realizo totalmente ao escrever algo contemporâneo direcionado ao público feminino.


Como você definiria seu estilo literário?
Ana Paula Couto - Meus dois romances são chick-lits e se utilizam da estrutura desse gênero que é salientar histórias sobre mulheres contadas por mulheres para outras mulheres. Minhas tramas fluem como uma conversa de uma mulher com outras mulheres em que a personagem principal compartilha o seu cotidiano, os seus pensamentos e as suas questões amorosas, profissionais e familiares.


Quando a escrita deixou de ser hobby e se tornou profissão?
Ana Paula Couto - Comecei a escrever poemas na adolescência, por volta dos 15 anos e sempre mantinha comigo um caderno de escritos, mas era algo bem orgânico, isento de alguma intenção. Assim foi por toda a minha vida até a maturidade, em que me mantive escrevendo contos e, principalmente crônicas, sendo esse meu gênero favorito, sem alguma pretensão e sem me ver como escritora. Somente após os 50 anos, durante a pandemia, me posicionei como autora de fato e comecei a me profissionalizar e colocar minhas obras para o público.


Como é sua rotina criativa para escrever?
Ana Paula Couto - Não tenho ritual algum de escrita, tampouco estabeleço metas ou faço planejamentos fechados de capítulos e enredos. Vou produzindo e me organizando durante o processo em que as ideias vão surgindo. Até pouco tempo atrás considerava esse meu processo meio avacalhado, pode se dizer assim, mas quando tive a oportunidade de conversar e conhecer o talentosíssimo autor Francisco Azevedo e o perguntei sobre o seu processo criativo, desmistifiquei o meu próprio. Francisco, como eu, não planeja seus livros e nem começa a escrever com tudo determinado. Ele, segundo me disse, começa a escrever e deixa a história fluir. Foi um alívio ouvir tal relato desse ícone de quem sou muito fã.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

.: Sarau Alvarenga celebra vida e poesia de Valdir Alvarenga em Santos

Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.comFoto: divulgação

Valdir Alvarenga foi um dos nomes fundamentais da poesia santista e da produção literária independente no país. Criador da Revista Mirante, manteve vivo o espírito coletivo da palavra, transformando o fazer poético em ato de resistência. A obra dele segue como testemunho de um tempo em que a literatura era feita na raça - com papel, paixão e teimosia. Levando em conta a trajetória pessoal e artística dele, nesta quarta-feira, dia 6 de novembro, a Biblioteca Mário Faria, no Posto 6, em Santos, no litoral de São Paulo, irá se tornar o cenário de um encontro literário em homenagem ao poeta, editor e ativista cultural Valdir Alvarenga

O evento, organizado por amigos e admiradores, pretende não apenas relembrar a obra do artista, mas reavivar o espírito de resistência e independência poética que sempre marcou a trajetória dele. A programação começa às 15h00, com um Varal de Poesia e uma minifeira de livros. Às 16h00, tem início o Sarau Alvarenga, que reunirá poetas e escritores convidados para leituras de poemas autorais e também de textos selecionados de Valdir Alvarenga, extraídos das obras "Pequeno Marginal", "Plenilúnio" e "Autógrafo", além das antologias do Grupo Picaré e da Revista Mirante, publicação que o poeta fundou e editou.

"Para o Valdir, a poesia era livre. Ele adorava se dedicar às letras e fazia a Revista Mirante com paixão. Eu pretendo continuar com a Mirante levando o seu legado! Valdir tinha seu jeito brincalhão, como ele dizia: 'minhas abobrinhas'. Ele era uma pessoa muito humana e amava os animais... Posso passar horas citando suas qualidades como pessoa e como poeta, mas deixarei isto para os leitores! Quinze anos juntos, uma eternidade que vai deixar saudade!", afirma a poeta Irene Estrela Bulhões, editora da Revista Mirante e viúva de Valdir Alvarenga.

Organizadora do sarau, a escritora, editora e ativista cultural Cláudia Brino fala sobre a importância de Valdir Alvarenga. "Organizar esse sarau em sua homenagem é reverenciar o poeta, editor, ativista cultural e amigo pessoal e, com isso, trazê-lo novamente ao nosso convívio literário". Segundo ela, a escolha dos poemas segue uma linha afetiva e temática: a visão pessoal e coerente de Valdir sobre o próprio percurso humano e artístico. Trata-se de revisitar a maneira singular da visão do poeta sobre sua própria vivência e trajetória pessoal, em que é possível ter, através de seus versos, a identificação do ser humano simples, amigo e sempre coerente ao seu universo poético.

Mais do que um tributo, o Sarau Alvarenga é um reencontro com a força da poesia como gesto de permanência. Escritor e organizador do sarau, Vieira Vivo reafirma a importância de Valdir Alvarenga na literatura. "Ler Valdir é entrar em contato com um olhar que não se conforma, que mistura o cotidiano, o sonho e o pensamento filosófico de forma simples e direta. Valdir não é apenas alguém que escreveu versos; ele construiu um movimento. Criou a Revista Mirante quando quase ninguém acreditava que poesia independente poderia resistir tanto tempo. E resistiu, resiste. Ler a obra dele significa reconhecer o valor da autonomia literária, da produção por conta própria, do editor-poeta que assume responsabilidades além de escrever", conclui.

Às 17h00, o grupo Cantos Literários apresenta um espetáculo literomusical em homenagem ao autor, seguido, às 18h00, da exibição do vídeo "Pescador de Palavras", um documentário sobre a literatura independente, que traz depoimentos de Valdir Alvarenga e de outros protagonistas desse movimento.

Serviço
Sarau Alvarenga - Homenagem ao Poeta Valdir Alvarenga
Quarta-feira, dia 29 de outubro de 2025
Biblioteca Mário Faria - Posto 6, Santos/SP
Av. Bartholomeu de Gusmão, S/N,° - Aparecida/Santos

Horários
15h00 - Varal de Poesia e minifeira de livros
16h00 às 17h00 - Sarau Alvarenga
17h00 - Espetáculo literomusical Cantos Literários
18h00 - Exibição do documentário Pescador de Palavras
Entrada gratuita

sábado, 1 de novembro de 2025

.: "Sempre Um Papo" recebe o médico e escritor Drauzio Varella e Vanda Witoto


A conversa aborda justiça climática, preservação da Amazônia, saberes tradicionais e o papel da ação coletiva diante da crise ambiental. Referências em suas áreas, Drauzio Varella e Vanda Witoto trazem olhares complementares sobre o encontro entre medicina, saberes indígenas e compromisso com o meio ambiente. Fotos: Renata Parada e acervo pessoal

O projeto "Sempre Um Papo", em parceria com o Sesc SP, encerra a temporada 2025, no Sesc Pinheiros recebendo o médico e escritor Drauzio Varella e a pedagoga e liderança indígena manaura Vanda Witoto, em debate mediado por Semayat Oliveira, no dia 11 de novembro, terça-feira, 19h00, com entrada gratuita e retirada de ingressos uma hora antes na bilheteria do Teatro Paulo Autran.

O encontro terá como tema central “O Sentido das Águas e Justiça Climática: ciência, Política e Ação Coletiva”, ampliando a reflexão sobre os impactos da crise climática e sobre como a interseção entre ciência, política e sociedade pode promover ações concretas em defesa do planeta.

O ponto de partida da conversa será o livro “O Sentido das Águas: histórias do Rio Negro”, publicado pela Companhia das Letras, vigésima obra de Varella, que reúne mais de três décadas de viagens para a bacia do rio Negro em um panorama multissensorial da floresta, das águas e dos povos ribeirinhos. Na obra, o autor entrelaça memória de expedições, narrativa ambiental e sensibilidade literária, convidando o leitor a olhar a Amazônia - e, em especial, o rio Negro - com frescor e urgência. Compre o livro “O Sentido das Águas: histórias do Rio Negro”, de Drauzio Varella, neste link.


Série Temática Sesc / Sempre um Papo
A série temática sugerida para o "Sempre Um Papo 2025" tem como fio condutor os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e propõe encontros que integram literatura, ciência, cultura e cidadania em torno de questões urgentes para o mundo contemporâneo. A curadoria, realizada em parceria com o Sesc Pinheiros, o GEAC (Literatura), o GESC (Sustentabilidade) e o GEPROS (Povos Indígenas), reuniu debates, que vão do consumo consciente ao futuro das cidades, passando pelas vozes da periferia, pela educação como ferramenta de transformação, pela alimentação como cultura e sustentabilidade, pela liderança das mulheres e pela justiça climática. 

Essa programação não apenas atualiza o diálogo entre escritores e público, mas também reforça o papel do Sempre Um Papo como plataforma de reflexão sobre equidade, diversidade e sustentabilidade, colocando a literatura em convergência com os desafios sociais, ambientais e políticos do nosso tempo. Ao longo de 2025, o "Sempre Um Papo" em São Paulo promoveu uma série de encontros marcantes, com temas que percorreram literatura, meio ambiente, justiça social, consumo consciente e saberes tradicionais. 

Estiveram presentes, entre outros: Veronica Stigger, Edson Kayapó e Semayat Oliveira discutindo sustentabilidade e diálogo; Valter Hugo Mãe e Itamar Vieira Junior, oferecendo perspectivas literárias potentes; Sérgio Abranches e Sandra Benites, refletindo sobre cosmo percepções e modos de viver conectados à biodiversidade; encontro com Anielle Franco e Aílton Krenak, voltado à dimensão racial da crise ambiental; Bianca Santana e Ricardo Abramovay, debatendo consumo consciente e o futuro das cidades, com foco nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS); além de Neide Rigo e Fabiana Cozza, em diálogo sobre alimentação, cultura e sustentabilidade. Em outubro, a Ministra Cármen Lúcia e a filósofa Maria Vilani conversaram com a jornalista Semayat Oliveira sobre o tema “Mulheres que Movem o Mundo”.

Sobre os convidados
Drauzio Varella nasceu em São Paulo, em 1943. Médico oncologista, imunologista e pesquisador em doenças infecciosas, destacou-se pela atuação voluntária no presídio do Carandiru, experiência que originou o premiado livro Estação Carandiru (1999). Reconhecido divulgador científico, tornou-se presença constante na TV, no rádio e em jornais, orientando a população sobre saúde e cidadania. Autor de vinte livros, publicou em 2025 “O Sentido das Águas: histórias do Rio Negro”, consolidando-se também como escritor de literatura de impacto social e ambiental.

Vanda Witoto (Vanderlécia Ortega dos Santos) nasceu em Amaturá, no Alto Solimões (AM), em 1987. Diretora executiva do Instituto Wittoto, enfermeira, ativista socioambiental e liderança indígena, vive no Parque das Tribos, em Manaus. Durante a pandemia de Covid-19, destacou-se pela articulação comunitária que levou oxigênio e atendimento emergencial a centenas de famílias indígenas. Sua trajetória combina luta pela preservação da Amazônia, defesa dos direitos indígenas e protagonismo das mulheres nas arenas políticas e sociais. Tornou-se conhecida nacionalmente por ter sido a primeira pessoa vacinada contra Covid-19 no Amazonas, em 2021.

Sempre um Papo: 39 anos 
Criado em 1986, pelo jornalista Afonso Borges, o "Sempre Um Papo" é um projeto cultural que realiza encontros entre importantes nomes da literatura e personalidades nacionais e internacionais com o público, ao vivo, em auditórios e teatros. Em sua história, chegou a 30 cidades de oito estados do país, tendo sido realizado também na Espanha e Portugal. Em 39 anos de trabalho, aconteceram mais de 7 mil eventos, que reuniram um público superior a 2,5 milhões de pessoas. Atua em conjunto com o Sesc SP há 23 anos consecutivos, tendo passado por diversas unidades da instituição.

Serviço
Sempre um Papo - "O Sentido das Águas e Justiça Climática: Ciência, Política e Ação Coletiva"
Convidados: Drauzio Varella e Vanda Witoto
Data: 11 de novembro, terça-feira, às 19h30
Local: Teatro Paulo Autran – Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195 – Pinheiros, São Paulo)
Entrada: gratuita, com retirada de ingressos uma hora antes na bilheteria
Compre o livro “O Sentido das Águas: histórias do Rio Negro”, de Drauzio Varella, neste link.

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terça-feira, 28 de outubro de 2025

.: Romance que resgata a ascensão da Aids no Brasil vence o Prêmio Jabuti


Entre figuras da noite, remédios contrabandeados, lares suburbanos e quartos de hospital, "Sangue Neon" tece mosaico da epidemia que redefiniu uma era

A epidemia da Aids não começou com estardalhaço, mas com sussurros: homens jovens e saudáveis, de repente, condenados à morte. "Sangue Neon", romance histórico do médico Marcelo Henrique Silva, joga o leitor de cabeça nesse cenário em que figuras da noite, travestis destemidas, profissionais de medicina recém-formados e comissários de bordo se unem em uma luta contra a doença e a indiferença. Entre contrabando de medicamentos e massacres ignorados, a narrativa ilumina vidas marginalizadas que desafiaram o sistema e moldaram a saúde pública brasileira.

A obra, publicada pela pela Editora Faria e Silva, do Grupo Alta Books, foi a grande vencedora do 67º Prêmio Jabuti, na categoria "Escritor Estreante: Romance" do eixo Inovação. A consagração aconteceu em cerimônia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na noite da última segunda-feira, dia 27 de outubro. Marcado por celebrações à literatura brasileira e conduzida por Marisa Orth e Silvio Guindane, o prêmio é o mais tradicional do país e reconhece o talento de novos e consagrados escritores, reafirmando a força criativa da literatura contemporânea.

Para construir a narrativa, Marcelo se baseia em fatos, não apenas para recriar a dramática ascensão da Aids no Brasil nos anos de 1980 e 1990, mas também como forma de desvelar as camadas de preconceito, desinformação e lutas que marcaram o período. Por meio de uma prosa potente, ele entrelaça personagens ficcionais e eventos históricos, e tece um mosaico de relatos verossímeis sobre coragem, solidariedade e abnegação. Episódios que aconteceram diante de um cenário nefasto de negligência e desigualdade social.

Entre as vozes, destacam-se Vera Lynn, inspirada em Brenda Lee, uma travesti nordestina que transforma dor em acolhimento ao fundar o primeiro abrigo para pessoas com HIV, e Sara, médica residente que enfrenta o peso de ser chamada “a doutora dos viados” enquanto luta para salvar vidas em meio à falta de recursos. Há também um grupo de comissários de bordo da Varig, que traziam os medicamentos do exterior, enquanto médicos idealistas, como o jovem infectologista Itamar, sonhavam com a construção de um novo sistema de saúde.

O surto de vício em heroína e a ausência de testes nas doações de sangue agravaram a propagação do vírus. Além de enfrentar a doença, esses profissionais tinham que combater a desinformação: grande parte da população acreditava na falsa ideia de que heterossexuais eram imunes.  A maneira atabalhoada com que a sociedade enfrentou o que rotulavam como “peste gay” é retratada com intensidade por Marcelo, que expõe, com igual veemência, a ineficiência do poder público.

“O Inamps, responsável por grande parte dos serviços de saúde, atendia apenas trabalhadores com carteira assinada, focando no retorno rápido ao trabalho, enquanto o Ministério da Saúde transferia a responsabilidade para as secretarias estaduais”, expõe. Meses após a criação do SUS, um contrato decisivo entre o Estado de São Paulo e o "Palácio das Princesas" foi concretizado pelo peso jurídico da nova Constituição Federal, o que consolidou a luta contra a doença - e tornou o Brasil referência mundial no controle da Aids.

Carregada de emoções intensas, personagens complexos e questões sociais e humanas profundas, a narrativa desperta uma reflexão inevitável e, muitas vezes, desconfortável: epidemias afetam a todos, mas atingem mais os vulneráveis. Em "Sangue Neon", o autor não permite ao leitor se manter indiferente ou ileso, ele confronta, arrebata e faz questionar.


Sobre o autor
Marcelo Henrique Silva
nasceu em Passos, no interior de Minas Gerais, mas hoje mora em Belo Horizonte. É médico e atuou na linha de frente durante a pandemia de Covid-19. Tem como foco o cuidado de grupos vulneráveis, minorias e pacientes oncológicos. "Sangue Neon" é seu romance de estreia e vencedor da categoria autor estreante do Prêmio Alta Literatura. Compre o livro "Sangue Neon", de Marcelo Henrique Silva, neste link.

.: Antonio Arruda usa a palavra como lâmina e transforma dor em linguagem


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com
Foto: divulgação

Premiado roteirista, jornalista e mestre em Teoria Literária, Antonio Arruda estreia na literatura com "O Corte que Desafia a Lâmina", publicado pela Editora Cachalote. O livro, que cruza autobiografia e ficção, nasce do confronto entre dor e linguagem. A obra mergulha nas zonas de tensão entre vida e morte, fé e erotismo, desejo e repressão, revelando um autor que transforma o trauma em matéria poética.

Essa relação entre ferida e palavra também atravessa sua trajetória no audiovisual - da série "Cidade Invisível" (Netflix) ao infantil "Era Uma Vez no Quintal" (TV Cultura). Com formação em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, Arruda propõe o que chama de “estética da cicatriz”: um modo de lidar com o real a partir da dor, mas sem vitimização. 

Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, ele fala sobre a voz do pai que ecoa em sua escrita, o perigo e a beleza de escrever a partir da lâmina e o corpo como território de revelação e enfrentamento - quando cada texto é uma tentativa de lidar com o que fere, mas também com o que cura. Compre o livro "O Corte que Desafia a Lâmina", de Antonio Arruda, neste link.


Resenhando.com - O seu livro começa a ser elaborado a partir da ausência da voz do pai. Você acredita que toda obra literária é uma tentativa de devolver a voz a alguém, mesmo que esse alguém seja um fantasma dentro de nós?
Antonio Arruda - Creio que o primeiro movimento seja o de ouvir essa voz. Seja ela interna, pessoal, ou de outros. Uma voz individual ou coletiva, social, política, existencial. Uma voz que tem algo a dizer. Que necessita ora gritar, ora sussurrar o não dito. E o escritor é aquele que se abre à escuta dessa voz. No meu caso, voltar ao trauma vivido quando tinha 12, 13, 14 anos e presenciei o adoecimento e a morte de meu pai, vítima de um câncer que lhe extirpou alguns órgãos e, consequentemente, a fala, me abriu um rasgo na realidade.E eu olhei através dele. Nesse sentido, a partir da não voz do pai, como eu digo no livro, nasceu a voz poética do filho. Então, sim, de certo modo eu dei voz a um fantasma que me assombrou durante muitos anos. Porque quando visitei meu pai no hospital e ele, já mudo, me entregou um pedaço de papel onde estava escrito: “está tudo bem, meu filho”, eu passei muito tempo refletindo sobre esse “está tudo bem”. Hoje, entendo que meu pai não se referia a ele - que obviamente não estava bem -, mas a mim, ao que ele desejava para mim, como se dissesse: “está tudo bem você ser feliz, apesar de; está tudo bem você viver a sua sexualidade, apesar de; está tudo bem você seguir o caminho que quiser em sua vida, apesar de este momento de perda ser muito doloroso”. Eu transformei o trauma em linguagem e ressignifiquei meus fantasmas internos.E, a partir daí, comecei a acessar dores, violências e traumas, como eu disse, existenciais, coletivos. Esse processo, creio, pode ser lido como uma forma de devolver a voz a alguém, de se apropriar do real em sua terrível crueza e, ao tentar perceber e sentir o que esse real pode revelar, valer-se da matéria-prima da escrita, que é a palavra, a linguagem, para verbalizar o que está nas entranhas, nos escombros desse real.


Resenhando.com - Em algum momento, escrever o salvou da própria lâmina, ou apenas ensinou você a manuseá-la melhor?
Antonio Arruda Se eu me salvasse da lâmina, não haveria escrita. Talvez tenha me ensinado, ou, melhor dizendo, me convocado a enfrentar a lâmina da realidade e transformá-la em lâmina-palavra. Ao assumir a palavra como lâmina que corta o corpo-livro e dá vida a ele, me vi mergulhado em um tensionamento constante entre experiência de vida e experiência literária. Não consigo conceber uma literatura que não nasça da experiência, seja ela, como eu mencionei, pessoal ou coletiva, histórica. Um dos meus livros de cabeceira é “O Arco e a Lira”, de Octávio Paz. Há um trecho do qual eu gosto muito: “A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são a nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade”. Escrever, nesse sentido, é testemunhar a realidade - no caso do meu livro, cortante, violenta, dilaceradora - para, assim, conferir-lhe um sentido outro, construído por meio de símbolos, metáforas, imagens poéticas, criando um espaço-tempo que passa a ser o literário, não mais o da vida, ainda que tão vivo e pulsante quanto ela própria.


Resenhando.com - No livro, o corpo é texto e o texto é corpo. Se a sua escrita tivesse um cheiro, uma textura e uma temperatura, como ela seria?
Antonio Arruda Teria o cheiro de um corpo que sangra, mas que também goza; o cheiro do suor que exala no momento do estertor, mas que também irrompe da pele no instante do orgasmo; o cheiro da natureza, muito presente no meu livro, a floresta, o mar, a terra, a brisa, que ora leva o leitor a sentir o terrível e o cruel, ora o epifânico, o etéreo, o impalpável espectral.Teria a textura do ferimento em carne viva e da cicatriz que o constitui como memória nesse corpo atravessado pela experiência da dor e de sua possível transmutação. Teria a temperatura quente, quase escaldante do sol que assola o velho do conto “O Devir”, por exemplo, e também o frio do cadáver do adolescente do conto “A Queda da Estrela”; ou, ainda, a temperatura morna e úmida dos musgos da árvore sobre os quais o personagem do conto “Nu” se senta e vive sua experiência de desejo e temor. Teria esses cheiros, essas texturas e essas temperaturas pois minha escrita nasce da ambivalência, das contradições, do tensionamento constante e inevitável entre pulsão de vida e de morte.


Resenhando.com - Você vem de uma trajetória sólida no audiovisual, na televisão, na Netflix. O que a literatura o permitiu dizer que a câmera jamais permitiria captar?
Antonio Arruda Vou responder seguindo por outro caminho: o que a literatura me permitiu fazer, que é, fundamentalmente, o trabalho, a experimentação com a linguagem. Por mais que na escrita de um roteiro a descrição dos cenários, o tom das cenas, a criação das falas dos personagens passem, obviamente, pela escolha das palavras, com a literatura é diferente. A literatura permite uma elaboração mais complexa. A busca pela palavra que melhor diz, que melhor revela o sentimento do personagem, a atmosfera desejada. A literatura possibilita - não que o audiovisual também não o faça, mas em outra medida, de outra maneira - a sugestão, o mistério que habita as entrelinhas do texto, e que só será revelado - e ressignificado - pelo leitor. Cabe a ele, e apenas a ele, no fim das contas, experienciar o que o livro expressa. E talvez seja essa a grande beleza do fazer literário.


Resenhando.com - A obra é atravessada por erotismo, dor, fé e homoafetividade, temas muitas vezes tratados como “demais” por uma sociedade ainda careta. Quando você escreve, sente que está exorcizando o medo alheio ou desnudando o seu?
Antonio Arruda As duas coisas, e não somente elas, e sem que haja uma distinção pragmática entre o que é meu e o que é alheio a mim. Interessa-me mais o borrão, a mancha que atravessa escritor e leitor. O quanto meu livro pode também desnudá-lo de seus medos? O quanto eu posso exorcizar os meus? O quanto, ainda, para além de um possível exorcismo, se faz necessária a convivência com os demônios, olhá-los de frente, tê-los ao lado? No livro, erotismo, dor, fé e homoafetividade estão emaranhados, são temas que se entrecruzam. Então, acredito, ou pelo menos desejo, que o livro gere no leitor mais encruzilhadas do que estradas retas.


Resenhando.com - A estética da cicatriz que você propõe tem algo de ritual. O que há de oferenda e o que há de profanação no ato de escrever?
Antonio Arruda Você tocou em um ponto bem importante, foi bem agudo em sua colocação. Há, de fato, algo de ritual. Ofertar-se à escrita é o ofício do escritor. Entregar-se ao texto. Como diz a poeta Isadora Krieger, “escrever é desaparecer no texto”. Nesse sentido, há muito de oferenda no processo de escrita. É uma doação intensa, um sacrifício, há algo de litúrgico, mítico, místico. Algo se desvela e se descortina quando escrevo, algo muitas vezes maior do que eu, que existe para além de mim. Ao mesmo tempo, meu processo de escrita e meu texto neste livro carregam uma corporeidade densa. “O Corte que Desafia a Lâmina” trabalha o tempo todo com a dualidade entre sagrado e profano. Profanar a carne para ofertá-la em sacrifício ao espírito. Acessar o espírito para que ele unja a carne e seus cortes, suas feridas. É esse o paradoxo que me interessa. E a minha proposta com a estética da cicatriz é justamente essa: criar um livro-corpo que, ao ser atravessado pela lâmina-palavra, inevitavelmente faça da escrita uma forma de ritualizar as experiências - de vida e literária.


Resenhando.com - No livro, há um homem que carrega uma carcaça de tartaruga até o mar e afunda com ela. Qual seria a sua carcaça hoje, e o que ainda o impede de soltá-la?
Antonio Arruda Vou pensar sobre essa pergunta e levá-la para a minha próxima sessão de análise para elaborar uma possível resposta (risos). Talvez a gente passe a vida toda acessando carcaças que acreditamos já ter soltado. Mergulhar nas dores e nos traumas me parece ser um exercício constante. Não sei especificar qual a carcaça de hoje com a qual ainda não me afoguei no mar. Mas, fazendo uma ligação com a pergunta anterior, talvez seja esse o ritual que mais me constitui como sujeito inquieto e complexo: tatear o inconsceano (para utilizar um dos neologismos do livro) e, assim, quem sabe, acessar as profundezas de ser.


Resenhando.com - Você é roteirista, professor, pesquisador, sacerdote e agora escritor publicado. Qual dessas vozes mais o contradiz, e qual delas você tenta silenciar quando escreve?
Antonio Arruda Talvez a mais contraditória delas seja a do escritor. Justamente por abarcar as demais? Não sei. Respondo em forma de pergunta, pois a assertividade, aqui, mataria, justamente, a contradição. Nunca tinha parado para pensar sobre isso. Mas sinto que a voz do professor, por ser carregada de um inevitável didatismo, seja aquela que, ainda que inconscientemente, eu tente silenciar. Minha escrita é altamente simbólica, imagética, alegórica. Acredito que não haja nela espaço para didatismos.


Resenhando.com - A dor é matéria-prima da arte, mas também um mercado. Você teme que o leitor leia suas feridas como espetáculo, e não como identificação?
Antonio Arruda Não. A dor como espetáculo está na mídia, nas notícias que transformam corpos violentados, agredidos, estraçalhados em números, em estatística. Está nas redes sociais. Está, infelizmente e cada vez mais, nos algoritmos. Sua pergunta me fez pensar que talvez o leitor não leia minhas feridas (que já nem são mais minhas, na verdade, uma vez que, depois de terem sido matéria-prima para a escrita, viraram ficção; são, portanto, as feridas dos narradores, dos personagens, do livro-corpo) como espetáculo, mas, se não como identificação, talvez como estranhamento, repulsa? Acredito que a literatura, ao se valer de elementos que atravessam, transgridem, subvertem o real, leva os leitores a processos complexos de investigação sobre si. Pelo menos é o que desejo que eles sintam ao acessar os cortes e as cicatrizes que eu transformei em experimentação estética.


Resenhando.com - Se o corte é inevitável, o que você ainda não teve coragem de transformar em lâmina?
Antonio Arruda Não sei… Às vezes eu sinto um pouco de medo da falta de medo que eu sinto (risos). Talvez quando descobrir qual a carcaça de hoje que ainda não carreguei para o mar eu consiga responder a essa pergunta. Como algumas pessoas que leram meu livro enquanto eu o escrevia e antes de enviá-lo à editora me disseram: “seu livro é fruto de muita coragem”. E eu senti mesmo isso ao escrevê-lo. Foi muito intenso e profundo mergulhar nas dores, nos traumas, nos cortes. E foi libertador. E estou disposto a continuar encarando as lâminas, a fazer delas o elemento mefistofélico que me aguilhoa a existência.



.: "Longe do Ninho" vence Prêmio Jabuti na categoria Biografia e Reportagem


O livro "Longe do Ninho", escrito pela jornalista Daniela Arbex, foi anunciado como vencedor da categoria Biografia e Reportagem da 67ª edição do Prêmio Jabuti em cerimônia realizada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro nesta segunda-feira, dia 27 de outubro. Este é o segundo Jabuti da jornalista mineira, que já recebeu a honraria por "Cova 312", em 2016, e ficou em segundo lugar com "Holocausto Brasileiro".

Em "Longe do Ninho", Daniela apura a tragédia anunciada que vitimou dez jovens atletas do Flamengo no Ninho do Urubu, o centro de treinamento do clube. Publicado em fevereiro de 2024 pela Intrínseca, cinco anos após o incêndio que fez a nação amanhecer de luto, a obra investigativa é um relato forte, sensível e humano sobre a memória em torno da morte dos meninos e o fim dos sonhos de se tornarem ídolos no país do futebol.

Com base em informações exclusivas sobre o caso, Longe do ninho é uma peça fundamental para a compreensão do que de fato aconteceu na madrugada do incêndio. A obra apresenta laudos técnicos, trocas de mensagens e e-mails, além de dados e relatos até então não divulgados. Depois de dois anos de apuração, entrevistas com os familiares dos dez jovens, sobreviventes e profissionais da perícia criminal e do IML, Arbex montou um quadro completo e elucidativo sobre a trajetória de vida dos rapazes e suas famílias e de como o contêiner-dormitório do Ninho do Urubu se transformou numa armadilha fatal que vitimou os dez jovens atletas em uma tragédia sem precedentes. Compre o livro "Longe do Ninho", de Daniela Arbex, neste link.


Sobre a autora
Daniela Arbex é vencedora dos Prêmios Jabuti e Vladimir Herzog e do Troféu Mulher Imprensa, tendo se tornado referência no jornalismo literário investigativo. A mineira é autora do premiado livro Holocausto brasileiro, adaptado para documentário pela HBO. Em 2023, sua obra Todo dia a mesma noite, sobre o incêndio na Boate Kiss, deu origem à minissérie homônima da Netflix, uma das mais assistidas do ano na plataforma. Foto: divulgação/Editora Intrínseca. Compre os livros de Daniela Arbex, neste link.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

.: Romance de Haruki Murakami é tema do Clube de Leitura JHSP + 451


Publicado originalmente em 1985 no Japão e inédito no Brasil até 2024, o romance vencedor do prêmio Tanizaki será discutido em encontro online e gratuito com a presença da pesquisadora Cacau Ideguchi

O livro "O Fim do Mundo e o Impiedoso País das Maravilhas", do escritor japonês Haruki Murakami, publicado no Brasil pela editora Alfaguara, é tema do Clube de Leitura Japan House São Paulo + Quatro Cinco Um de outubro, que acontece na última quinta-feira do mês, 30, às 19h, via Zoom. A conversa recebe como convidada Cacau Ideguchi, jornalista, escritora e pesquisadora especializada em cultura japonesa. Publicado originalmente em 1985 no Japão e inédito no Brasil até ano passado, livro é uma das obras mais notáveis de Haruki Murakami e vencedor do prêmio Tanizaki, uma das mais prestigiadas premiações literárias do Japão. Compre o livro "O Fim do Mundo e o Impiedoso País das Maravilhas", de Haruki Murakami, neste link.

O romance intercala duas narrativas que se entrelaçam: uma acompanha um programador em sua jornada por corredores infinitos e caminhos subterrâneos até o laboratório de um velho professor; a outra se passa em uma cidade fantasmagórica cercada por muralhas, onde vivem pessoas sem sentimentos, memórias ou emoções. Gradualmente, elementos em comum surgem entre as duas histórias, misturando mistério, ficção científica e fantasia. A edição brasileira foi publicada pela editora Alfaguara e conta com a tradução de Jefferson José Teixeira.

Os participantes do Clube de Leitura Japan House São Paulo + Quatro Cinco Um têm 25% de desconto na compra do livro pelo site do Grupo Companhia das Letras, por meio do cupom JHSP451OUT25. O cupom fica vigente até dia 1° de novembro de 2025 e é válido para 1 uso único por CPF. Saiba mais e inscreva-se em https://clubedeleitura.japanhousesp.com.br/

Convidada do mês
Cacau Ideguchi é pesquisadora, educadora e escritora especializada em cultura japonesa. Mestra em letras com ênfase em cultura japonesa (USP, 2023), tem MBA em história da arte (2024), especialização em jornalismo cultural (2014) e bacharelado em jornalismo (2011). É membro do Grupo de Estudos Okinawanos (GEOki/USP) e autora dos livros Gota de Sangue a Olho Nu (2015) e 31 (2017), ambos pela Chiado Books.

Diretora-executiva do portal Japoni, de curadoria e produção de conteúdo sobre arte e cultura japonesa, tem trajetória multidisciplinar e, desde 2021, dedica-se ao ensino em cursos livres e palestras em instituições, além de trabalhos em mediação, curadoria e consultoria. Suas pesquisas concentram-se em cinema e história japonesa, perpassando literatura e artes plásticas.


Como funciona o Clube de Leitura Japan House São Paulo + Quatro Cinco Um?
Desde sua estreia em 2019, o Clube de Leitura Japan House São Paulo + Quatro Cinco Um recebe grandes profissionais da tradução de literatura japonesa no Brasil, além de autores contemporâneos e leitores dessa literatura, para discutir obras de nomes como Haruki Murakami, Sayaka Murata, Yoko Tawada, Banana Yoshimoto e Yoshiharu Tsuge.

Natasha Barzaghi Geenen, diretora cultural da Japan House São Paulo, e Paulo Werneck, editor da revista Quatro Cinco Um, compartilham a curadoria e a mediação dos encontros, que acontecem sempre na última quinta-feira do mês.

O Clube discute livros de autores japoneses traduzidos diretamente para o português, visando uma cobertura multiplataforma desse universo literário — a parceria entre a revista dos livros e a JHSP traz também uma newsletter editorial mensal com os principais lançamentos no Brasil de livros japoneses ou ligados à cultura japonesa.

No site da Japan House São Paulo há uma página exclusiva que reúne todo o conteúdo compartilhado até aqui. Nela, é possível ter acesso a um compilado de informações sobre todos os títulos já abordados e à agenda dos próximos encontros, além de links para inscrição nas newsletters da Japan House e na newsletter de literatura japonesa da Quatro Cinco Um: https://clubedeleitura.japanhousesp.com.br/ 


Serviço
Clube de Leitura JHSP + Quatro Cinco Um: livro "O Fim do Mundo e o Impiedoso País das Maravilhas", de Haruki Murakami,
Data: quinta-feira, 30/10, às 19h00
Modalidade: on-line e gratuito, via Zoom
Inscrições: sympla.com.br/evento-online/clube-de-leitura-jhsp--451--o-fim-do-mundo-e-o-impiedoso-pais-das-maravilhas-outubro/3134712
Cupom: Participantes do clube têm 25% de desconto na compra do livro pelo site do Grupo Companhia das Letras, por meio do cupom JHSP451OUT25. O cupom fica vigente de 05/10 até 01/11, válido para 1 uso único por CPF.
Parceria com a Japan House São Paulo.

domingo, 26 de outubro de 2025

.: Curiosidades sobre o Prêmio Nobel de Literatura (brasileiros foram indicados)


Por Daisy Gouveia, apresentadora, escritora, influenciadora digital e criadora do Clube de Leitura da Daisy

O Prêmio Nobel de Literatura é um dos mais prestigiados do mundo. A sua importância já é bem conhecida, mas você sabe de algumas curiosidades? Criado em 1901 foi idealizado por Alfred Nobel para reconhecer autores pelo conjunto da obra e não somente um livro especifico. Autores que tenham contribuído de uma forma relevante para a literatura mundial. É uma forma de prestigiar e valorizar cada um deles.

Nem todos os anos autores foram contemplados, mas você sabia que nenhum autor brasileiro recebeu o prêmio até agora? É algo bem curioso, já que temos nos destacado no mundo literário através de muitos autores brasileiros e suas obras. Será que nossos autores não contribuíram para a literatura mundial? O que será que acontece? Vale aqui uma reflexão. Já tivemos sim algumas indicações, mas que não foram convertidas em prêmios, até hoje.

Guimarães Rosa foi indicado em 1967, mas morreu no mesmo ano, sem ser condecorado. Lígia Fagundes Telles, grande nome da nossa literatura, foi indicada em 1967, mas quem levou foi Bob Dylan, que não foi receber o prêmio. Isso mesmo! Ganhou, mas não foi receber! Jorge Amado foi indicado duas vezes - em 1967 e 68 - e, Carlos Drumond de Andrade também em 1967. Tivemos outros nomes indicados como: Coelho Neto - por 3 vezes- , Clarice Lispector e Alceu Amoroso Lima. Em 1964,  Jean Paul Sartre foi contemplado com o prêmio, mas o recusou.

Aqui vale um parênteses, Courtney Henning Novak, leitora americana viralizou na redes ao eleger a obra "Memórias Póstumas de Brás Cubas", num desafio de ler um livro da cada país e se encantou com Machado de Assis comparando-o com Shakespeare e se aprofundou na nossa literatura conhecendo outros autores brasileiros, o que mostra o interesse na nossa literatura e a escrita atemporal de um clássico nacional. Incrível que nenhum de nossos escritores tenham chegado ao prêmio.Quais autores você contemplaria? Dificil a pergunta, não é?  Você também é fã de Machado de Assis como eu e Courtney?


Sobre Daisy Gouveia
Com 66 anos, Daisy Gouveia usa as redes sociais para incentivar as pessoas, principalmente as mulheres, a adotarem o hábito da leitura. Com 35 anos de experiência na área da moda, escreveu o livro 'Costurando Minha História' onde conta sua trajetória e fala sobre sua reinvenção profissional, estimulando as pessoas que também querem mudar. Instagram: @daisygouveiaoficial

sábado, 25 de outubro de 2025

.: Literalistas: Bruno Inácio indica livros de Priscila Branco e Kaio Phelipe

Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação

Autor dos livros "Desprazeres Existenciais em Colapso" (Patuá), "Desemprego e Outras Heresias" (Sabiá Livros) e "De Repente Nenhum Som" (Sabiá Livros), Bruno Inácio indica a leitura de dois livros: "Desenterrar os Ossos", de Priscila Branco, publicado pela Macabéa Edições, e "Todos Nós Sonhávamos em ser Carmen Miranda", de Kaio Phelipe, publicado pela editora Impressões de Minas. 

Jornalista, mestre em comunicação e colaborador do Jornal Rascunho, Le Monde Diplomatique e São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Rolling Stone Brasil e Estado de Minas. “Gosto de ler dois ou mais livros ao mesmo tempo. Em geral, intercalo prosa, poesia e não ficção. Dessa vez, as minhas leituras são duas: ‘Desenterrar os Ossos’ , da Priscila Branco, e ‘Todos Nós Sonhávamos em ser Carmen Miranda’, do Kaio Phelipe - duas obras que fazem leituras sensíveis da realidade e apresentam um trabalho cuidadoso com a linguagem", afirma. Compre os livros de Bruno Inácio neste link.

"'Desenterrar os Ossos’ reúne poesias que se aprofundam em temas como o medo e a saudade, sempre de forma bastante original, com cada palavra em seu devido lugar. Priscila Branco tem uma voz autêntica e um ritmo assertivo, capaz de transmitir desde o aconchego à claustrofobia", afirma. Compre os livros de Priscila Branco, neste link.

"Já ‘Todos Nós Sonhávamos em Ser Carmen Miranda’ apresenta contos protagonizados por homens gays e mergulha em traumas, tensões e violências, mas também no amor, no desejo, na esperança e na autodescoberta. Suas histórias envolvem, cativam, emocionam e criam uma bonita ligação entre leitores e personagens. ‘Desenterrar Os Ossos’ e ‘Todos nós sonhávamos em ser Carmen Miranda’ são dois ótimos exemplos do grande momento da literatura brasileira e um lembrete de que as editoras independentes merecem mais atenção de leitores, críticos e jurados de premiações, tanto na prosa quanto na poesia”, finaliza. Compre o livro "Todos Nós Sonhávamos em ser Carmen Miranda", de Kaio Phelipe, neste link.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

.: Entrevista: Malu Garcia transforma o confinamento em viagem interior


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com

Malu Garcia viajou para enfrentar a realidade. Em "Indomável", livro de estreia escrito por ela, a autora transforma quatro meses de confinamento em Cuba durante a pandemia em um exercício radical de liberdade e lucidez. O resultado é um relato que mistura crônica, memória e reflexão sobre o olhar estrangeiro, que ora vigia, ora liberta. 

Jornalista, radialista e apresentadora, Malu carrega na palavra o peso e o alívio das metamorfoses. Nas páginas do livro, Cuba não é o cartão-postal congelado no imaginário turístico, mas um território pulsante de contradições, onde a escassez revela a criatividade e o afeto se impõe na realidade do país. Escrever sobre a ilha é também escrever sobre o Brasil  e sobre a mulher que se reinventou ao ultrapassar as próprias fronteiras. 

Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, Malu fala da solidão feminina como potência, dos riscos ideológicos de narrar um país sob permanente observação, do poder político da ternura e do espelho incômodo que a ilha lhe devolveu. Entre a vigilância e a rebeldia, a autora descobre que a literatura é o único passaporte que realmente atravessa. Compre o livro "Indomável", de Malu Garcia, neste link.


Resenhando.com -⁠ Você transformou a experiência de “turista controlada” em literatura. No fundo, a sua escrita nasce da vigilância ou da rebeldia?

Malu Garcia - Penso que minha escrita nasceu do atrito entre as duas coisas. Eu não esperava me encontrar naquela situação de “controlada”, e isso me causou pânico. Sentia um medo absurdo e nem sabia muito bem o por quê. Num primeiro momento me ocorreu que talvez eu não pudesse voltar outra vez a Cuba. E também no contexto da pandemia, por óbvio, perder as minhas  pessoas no Brasil era um medo real e diário. Foi tenso. Os motivos do “controlada” estão no livro, e posso dizer que desobedecer certas regras, primeiro, me manteve viva; depois me impulsionou na escrita, sim. O que vivi lá nunca coube em roteiros prontos. Então, na hora de escrever as minhas vivências foi como fazer um balanço de uma rebeldia que não sabia que tinha vivido. A vigilância me ensinou a prestar atenção, a observar minúcias. Já a rebeldia me deu coragem para escrever a partir das brechas, para atravessar o que era imposto num tempo raro, aquele da pandemia. A experiência de “controlada” acabou se revelando uma proteção. Hoje penso que minha escrita é filha desse embate: nasce da vigilância, porque dela vem a consciência aguda do olhar sobre mim quase aos 50, mas floresce na rebeldia, porque só desobedecendo ao viajar num momento sanitariamente delicado pude encontrar a Cuba real e, mais ainda, a mim mesma.

Resenhando.com -⁠ ⁠Em suas crônicas, Cuba não aparece como cartão-postal. O que descobriu de si mesma ao enxergar a ilha como espelho e não apenas cenário?
Malu Garcia - Já na minha primeira viagem, em 2005, deixei de olhar Cuba como um cartão-postal e passei a encará-la como espelho. As conexões que fiz lá me levaram de volta à minha infância e foi aí que descobri aspectos de mim mesma que no cotidiano corrido talvez eu não tivesse chance. A ilha me confrontou com contradições: a beleza e a dureza, a alegria e a falta, a liberdade que pulsa apesar das amarras. Percebi que eu também sou feita dessas tensões - do desejo de ir além das limitações e da força para encontrar sentido mesmo em contextos difíceis. Ao escrever, vi que Cuba não era apenas cenário para minhas viagens, mas um reflexo das minhas próprias inquietações e da necessidade de me reinventar. No fundo, ao ficar presa na ilha, enxerguei também minhas fronteiras internas - e a coragem de atravessá-las. Aí entram as pessoas e os encontros que vão mudando minha vida e inauguram minha escrita.

Resenhando.com -⁠ ⁠Você diz que “viajar sozinha é a maior expressão de liberdade que uma mulher pode experimentar”. Mas, na prática, essa solidão já lhe foi cruel em algum momento?
Malu Garcia - Sim, já foi cruel - e é justamente por isso que também é tão libertadora. Toda liberdade pressupõe uma quota de sacrifício primeiro. Depois, o prazer! Viajar sozinha deixa de ser apenas sobre paisagens e descobertas externas, é também sobre encarar a si mesma sem distrações. É estar como inteira, sem a distração que outra presença proporciona e limita. Tem o fator de você não ter que convencer ninguém que está com fome de almoço às onze horas da manhã ou que quer ficar no museu da hora que abre até fechar, por exemplo. Viajando sozinha me obrigou a ser minha própria companhia, a sustentar meus medos e minhas escolhas. No começo eu pensava “o que as pessoas estavam pensando ao me virem sozinha”; sentiam pena? Depois tudo se transformou em potência: percebi que estar só significava estar fazendo aquilo que escolhi, totalmente inteira.

Resenhando.com -⁠ ⁠Onze viagens para Cuba em tempos de desencanto global parecem um mergulho obsessivo. O que a ilha tem que o Brasil insiste em lhe negar?
Malu Garcia - Eu viajo a Cuba desde de 2005. São vinte anos acompanhando as mudanças que ocorrem internamente muito mais como reflexo das agressões externas que o país sofre, do que qualquer outra coisa. Para entender isso é conveniente estudar a História. Mas Cuba me oferece uma intensidade que muitas vezes sinto faltar no Brasil. Lá, a vida pulsa sem pressa. Penso que como se trata de um lugar relativamente pequeno, tem-se muita cultura sem ter que atravessar grandes distâncias. Havana é como uma espécie de showroom de cultura. E tem o lado da escassez que revela a criatividade, e cada encontro é vivido como se fosse único. É um lugar que não me permite ser espectadora - me chama para dentro da experiência. O Brasil, com toda sua grandeza e riqueza cultural, muitas vezes me nega esse mergulho profundo porque se perde no excesso, no barulho, na pressa. Em Cuba, o tempo desacelera e me obriga a olhar nos olhos, a ouvir histórias inteiras, a participar de uma vida menos mediada por filtros. Talvez por isso eu tenha voltado tantas vezes: porque a ilha me oferece uma radicalidade de experiência que me revela não apenas um outro país, mas uma outra versão de mim mesma - aquela que o Brasil, na correria e na abundância, e no medo da violência, insiste em calar.

Resenhando.com -⁠ ⁠Há algo de político em cada escolha estética do seu livro. Escrever sobre Cuba, hoje, não é também assumir um risco ideológico?
Malu Garcia - Escrever sobre Cuba é, sim, assumir um risco - porque qualquer narrativa sobre a ilha costuma ser lida através de lentes ideológicas já polarizadas. Mas eu não poderia escrever de outro modo. Minha relação com Cuba não é panfletária, é existencial. Foi lá que fiz um balanço da minha vida chegando aos 50. Vivemos tempos de excesso de informação e sobre tudo temos que ter uma posição, uma opinião, um sentimento. Mas conhecimento mesmo não há. Sobre Cuba isso ainda vem carregado de desinformação. Se eu tivesse escrito minhas vivências passadas em qualquer outra ilha do mundo, Maldivas por exemplo, não suscitaria esse juízo do bem e do mal. Cuba tem uma História e muitas narrativas que interessam à manutenção de agressões externas. O povo está cansado mas não tem outra alternativa a não ser resistir. Daí o meu título Indomável. As minhas histórias lá não são nada de panfletárias a favor de uma ideologia. São as minhas vivências de lá, espelhadas numa vida nas daqui. As pessoas conhecem Cuba pelas notícias, a favor e contra, mas o meu livro é mais uma abordagem amorosa acerca da realidade cotidiana, das coisas simples e grandes que também dão a singularidade de um país. A bandeira impressa na parte interna da capa do livro não é um manifesto, é um símbolo de respeito à intensidade do país que tanto me transformou. Por outro lado tenho comigo uma vida inteira de expectativa por justiça social no meu próprio país. Talvez por isso Cuba me convoque tanto: porque, ao mesmo tempo em que revela suas contradições e falhas, expõe também o desejo coletivo de dignidade, de partilha, de sobrevivência com criatividade. O risco ideológico existe, mas para mim escrever é escolher não se esconder. E se minha literatura carrega política, é porque acredito que toda experiência humana - sobretudo a viagem - está atravessada por questões de liberdade, de desigualdade e de esperança. Em Cuba, nos quesitos segurança, solidariedade, educação e saúde, encontrei o espelho que me ajudou a refletir sobre o Brasil que ainda sonho viver.

Resenhando.com -⁠ ⁠Você conheceu a ex-mulher de Glauber Rocha e a mãe de Leonardo Padura. Mas qual foi o encontro mais íntimo, aquele que não coube no livro porque ainda é ferida aberta ou segredo guardado?
Malu Garcia - Tive muitos encontros profundos que não estão notoriamente no livro. Essa pergunta, nesse contexto mundial que vivemos hoje, me leva a refletir sobre um em especial: certa manhã fui apresentada a um senhor de um metro e meio, e 85 anos. Ele tinha acabado de escrever um livro e me presenteou com um exemplar, autografado para mim no parapeito da sua janela, de onde víamos o Malecon. Conversamos um pouco e nos despedimos já que eu seguiria direto para o aeroporto, de volta ao Brasil. No voo li o livro. Era a história vivida por ele enquanto chefe diplomático da embaixada de Cuba no Panamá, em 1989. Pude entender que aquela história era menos sobre geopolítica e mais sobre as coisas que acontecem na vida das pessoas e são imparáveis. Particularmente, guardo um grande medo desses grandes acontecimentos que viram vidas de cabeça para  baixo. O livro do Lázaro Mora conta a invasão do Panamá. Ele passou por tudo aquilo como personagem. O livro agora está editado no Brasil e chama “Não Temos o Direito de Esquecer”. E ainda hoje olhando o noticiário penso que a qualquer momento podemos ter a repetição disso, aqui, ou em países vizinhos. Mas essa sua pergunta me leva a refletir que gosto da minha vida sem grandes sobressaltos, grandes acontecimentos. Gosto da minha vida como maré, vezes alta, vezes baixa, mas nunca um furacão que descontrola tudo. Digo sempre às minhas amigas quando estamos em “café terapia” que tenho medo das cambalhotas que a vida dá: uma doença grave, uma perda, um revés. Aqueles acontecimentos que tiram a vida do prumo. Quando fiquei presa em Cuba por quatro meses eu só pensava nisso. Mas com a escrita me dei conta que todos os acontecimentos ruins da minha vida só me jogaram para o alto. Aquele encontro com Lázaro continua comigo, inteiro, e me ensinou que literatura é escuta antes de ser voz.

Resenhando.com -⁠ ⁠Suas crônicas são atravessadas por afetos, memórias e descobertas. Em algum momento, teve medo de que a literatura romantizasse demais um país onde a sobrevivência diária é, muitas vezes, luta bruta?
Malu Garcia - Sim, esse medo sempre me acompanhou, principalmente, pelo fato de que sobre Cuba todo mundo pensa que sabe tudo… e tenho consciência que meu livro por óbvio não esgota assunto algum, ainda mais um tema que sofre polarização, propaganda e o instinto já conduz à política. Tinha medo dos julgamentos, dos preconceitos que a simples menção ao nome da ilha já causam. Mas é necessário frisar que o meu livro são as minhas vivências. E, por óbvio, escrevo carregada das minhas próprias bagagens, de criação, sonhos e conquistas. A literatura tem uma força de encantamento, e Cuba, tem a sua crueza, que é vista por nós, brasileiros, com lupa, sem que enxerguemos ao nosso redor, nossas próprias crueldades, como pessoas morando nas ruas que nem nos impactam ou apiedam mais. Cuba hoje está diferente da Cuba que conheci nos últimos vinte anos. Mas meu livro é um testemunho desse tempo, visto por uma sempre estrangeira, está claro. A Ilha toda, com sua música, luz e intensidade humana, convida facilmente à idealização, contra ou a favor. Mas eu vivi o melhor que eu poderia ter vivido nesse tempo. Sem esquecer que por trás do riso generoso existia a dureza da fila, da falta, do improviso diário para garantir o básico. O risco de romantizar está em transformar a falta em espetáculo. Eu não queria cair nessa armadilha. Por isso escrevi tentando equilibrar afeto e lucidez: reconhecendo a beleza do que vivi, mas sem negar a luta. Minha intenção nunca foi pintar Cuba como um paraíso, mas como uma ilha de contradições que também revela minhas próprias contradições como uma brasileira do meu tempo e do meu lugar. Sim, porque ao meu redor também há pobreza ainda maior do que a que existe em Cuba, acrescida de uma violência e medo,  únicos também no mundo. A literatura, nesse sentido, não é romantização, mas tentativa de testemunho. E se existe idealização no que escrevo, ela não está em suavizar a realidade, mas em dar voz à dignidade com que o povo cubano atravessa suas batalhas cotidianas, reflexo de agressões externas históricas.

Resenhando.com -⁠ Ao narrar uma brasileira em Cuba, você inevitavelmente fala da identidade brasileira. O que descobriu sobre o Brasil estando longe dele?
Malu Garcia - Estar em Cuba me obrigou a enxergar o Brasil sem os filtros que a minha bolha de privilégios me oferece. De longe, percebi o quanto carregamos uma desigualdade naturalizada, quase anestesiada, como se fosse destino. Em Cuba, a escassez é explícita, mas existe também um senso de coletividade que amortece isso. No Brasil, temos abundância em alguns pontos, mas ela convive com um abismo social gritante — e muitas vezes escolhemos não ver. Descobri que a identidade brasileira é feita de contradições tão radicais quanto as cubanas, mas nós aprendemos a disfarçá-las. Distante, percebi o silêncio que me atravessa quando volto para o meu país e reconheço que o acesso à educação, à saúde, à segurança e até ao ato de viajar sozinha são privilégios. Escrever sobre Cuba foi, no fundo, escrever sobre o Brasil que me habita e sobre a culpa e a responsabilidade que carrego como mulher brasileira consciente dos meus privilégios. A ilha me mostrou um espelho menos confortável, mas mais verdadeiro. E talvez por isso eu volte sempre: para não esquecer que a identidade também se constrói no confronto com aquilo que preferiríamos não enxergar.

Resenhando.com -⁠ Você foi radialista, repórter, apresentadora de TV e agora escritora. Essa metamorfose da palavra em sua vida tem mais de cura ou de provocação?
Malu Garcia - Olha, para além dessas funções que exerci, eu acho que antes eu fui a primeira neta da dona Maria e sobrinha de uma freira, dona de uma mala cheirosa. Essa mala da minha tia teve um grande impacto nos meus sonhos de infância. Já minha avó era analfabeta, mas foi junto dela que a palavra ganhou o território da minha inquietação. No livro eu decifro um pouco dessas duas relações de afeto que mais tarde são decisivas para eu ganhar o mundo. Daí, a palavra passa a ser uma espécie de fio condutor na minha vida. No rádio, era rápida, quase um sopro; na TV, precisava estar enquadrada, bem medida; e na escrita… na escrita ela ganhou silêncio, pausa, ganhou corpo. Quando escrevi "Indomável", percebi que não era só sobre Cuba. Era sobre mim também. E aí entrou a cura - porque escrever me fez revisitar memórias, lacunas e contradições que na correria do dia a dia a gente não encara. Mas entrou também a provocação - porque, ao me ver fora do meu país, fora da minha bolha de privilégios, eu fui obrigada a me perguntar: quem eu sou nesse novo cenário, fazendo outras descobertas, ganhando referências, com outras verdades? Ao narrar minhas descobertas em Cuba, precisei revisitar memórias, deslocamentos e afetos que eu mesma não entendia completamente. Assim, a  palavra, funcionou como um espelho que obrigou a me encarar quase numa linha do tempo, sem possibilidade de volta, já que estou aos 50. Mas também foi provocação - para mim e para o leitor - porque expôs contradições de uma brasileira que vive em sua bolha de privilégios e, de repente, se vê diante de uma realidade que subverte certezas. Para mim até está engraçado. Depois da escrita eu passei a ter uma relação diferente, mais saudável com a minha própria casa. Domesticamente, virei uma pessoa mais organizada. Outra cura é que dias nublados ou chuvosos não me oprimem mais; e perdi a pressa para muitas coisas também. Penso que a escrita cicatrizou coisas que eu nem sabia que doíam. Então, quando terminei de escrever Indomável, percebi que não havia feito narrações apenas sobre minhas idas e vindas de Cuba, mas sim atravessado a mim mesma. De fato, essa metamorfose da palavra, em mim, não é escolha entre remédio e inquietação. Penso que seja muito mais um movimento que costura as duas coisas. E talvez seja isso que me põe em movimento até hoje: habitar esse espaço onde a palavra tanto acalenta quanto cutuca.

Resenhando.com - ⁠Se tivesse que resumir Cuba em uma única cena que dissolvesse política, poesia e contradição, qual seria?
Malu Garcia - Olha, se eu tivesse que resumir Cuba em uma cena só, eu escolheria um final de tarde no Malecón, em Havana. Você vê aqueles carros antigos passando, soltando fumaça e ao mesmo tempo ali perto as crianças saem da escola com um uniforme lindo e com uma alegria marcante, como se não houvesse falta nenhuma. Sentado, um casal apaixonado, mas ele com vontade de deixar o país e ela ligada a mil coisas da ilha; mais ao lado, um senhor com um violão gasto, tirando música da precariedade. Tudo isso sendo tomado pelo alaranjado do pôr do sol. Essa cena carrega tudo o que Cuba me revelou: a beleza que se entrelaça a dureza, a vida que pulsa apesar das faltas. É política porque a sobrevivência diária é, em si, um ato político; é poesia porque o povo cubano tem a capacidade quase mágica de extrair alegria do improvável; e é contradição porque nada ali é simples, tudo é atravessado por camadas de histórias, separações e resistências. Escolho essa cena porque foi num pôr de sol que entendi que Cuba não cabe numa frase pronta ou numa ideologia. Ela se encarna nas pessoas, nos gestos pequenos, no som do mar batendo contra o muro e devolvendo, de alguma forma, a força de quem nunca deixou de resistir. O Malecón é bem a expressão disso: a água bate forte, por vezes o encobre, e ele persevera, gigante. Foi numa tarde assim que me dei conta que tudo o que havia descoberto e vivido por ali era grandioso demais e eu precisava organizar dentro de mim, sobretudo. E foi assim que  nasceu Indomável.


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