Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Priscila Prade
Nathalia Timberg vai além da tarefa de atuar. Ela assombra. E, em "A Mulher da Van", ela retorna não como quem impõe presença, mas como quem finca uma bandeira no tempo e declara: “Estive aqui. E ainda estou”. Aos 96 anos, a Mary Shepherd dela não é somente uma personagem: é um meteoro encardido de humanidade atravessando o palco com odor de mofo e dignidade, acidez e ternura, malcriação e mistério. Tudo ao mesmo tempo. E melhor: sem pedir a opinião alheia sobre isso. É um exemplo para quem ainda se preocupa com a opinião dos outros.
Baseada no texto autobiográfico de Alan Bennett, adaptado com elegância por Clara Carvalho e conduzida com muita sensibilidade por Ricardo Grasson, a montagem brasileira assume o risco do desencaixe. Não tenta agradar, não se curva ao politicamente correto, tampouco oferece um consolo higienizado para o envelhecimento - ela o escancara, sem filtros ou nenhum tipo de botox narrativo.
Timberg encena uma mulher amarga e, às vezes, mal-agradecida com uma grandeza que beira o indecente. É a atriz em sua forma mais crua, esculpindo silêncios, vociferando feridas, desviando do sentimentalismo fácil com a precisão de quem conhece a anatomia da emoção por dentro. A atuação dela é tão pungente que desidrata o texto e o transforma em gesto, em presença viva, em legado performático. Mas ela não está sozinha nessa empreitada existencial.
Caco Ciocler entrega um Alan comovente e sem vaidade. É doce, mas também melancólico. Já Nilton Bicudo, ao dividir o personagem com Ciocler, protagoniza uma rara parceria: juntos, eles tecem uma coreografia afetiva que revela o jogo de espelhos e vozes internas do escritor/personagem, um homem partido entre o acolhimento e a culpa. Juntos, os dois dançam um balé emocional em que o ego se dilui para dar espaço ao outro.
Lilian Blanc, por sua vez, aparece com seu selo habitual de encantamento cênico - é como um bom perfume: não precisa de mais do que uma borrifada para deixar a própria marca. Roberto Arduin mostra sua versatilidade camaleônica ao saltar entre personagens com a leveza de quem sabe que o teatro é, antes de tudo, transformação. E o restante do elenco, formado por nomes como Noemi Marinho, Cléo De Páris, Duda Mamberti e Lara Córdulla, forma uma engrenagem rara: coesa, pulsante e generosa. Ninguém se atropela - todos se erguem para o exato momento em que cada um brilha.
A encenação de Grasson constrói um universo que não pede explicações: a van vira casa, o lar vira prisão, a rua vira espelho. Tudo transita entre o cômico e o trágico com a fluidez de um sonho. A direção é, ao mesmo tempo, respeitosa com o texto e atrevida com a forma. Talvez daí resida o maior acerto dessa produção. O público sai transformado? Talvez. Mas sai, no mínimo, cutucado - e isso já é mais do que se espera da maioria dos espetáculos. Porque o teatro, como bem sabe Nathalia Timberg, não existe para fazer carinho no espectador, mas para deixá-lo acordado. E, se possível, ligeiramente desconfortável.
“A Mulher da Van” é uma peça sobre o tempo. Mas não o tempo como calendário ou sentença - o tempo como abismo e bênção. Semelhante àquilo que escapa e, ainda assim, encaixa na vida do outro como algo que já não descola. É também uma fábula sobre encontros improváveis, sobre o cuidado que damos a estranhos enquanto negligenciamos os íntimos, sobre a beleza caótica da convivência. E é, sobretudo, uma carta de amor à arte de envelhecer com selvageria, e não com docilidade.
Ficha técnica
Espetáculo "A Mulher da Van"
Texto: Alan Bennett
Tradução: Clara Carvalho
Idealização: Nosso Cultural
Direção geral: Ricardo Grasson
Assistente de direção: Heitor Garcia
Elenco: Nathalia Timberg, Caco Ciocler, Nilton Bicudo, Noemi Marinho, Duda Mamberti, Lilian Blanc, Roberto Arduin, Cléo De Páris e Lara Córdulla.
Cenário: Cesar Costa
Desenho de luz: Cesar Pivetti
Trilha sonora e desenho de som: LP Daniel
Figurino: Marichilene Artisevskis
Visagismo: Simone Momo
Assistente de cena: Ligia Fonseca
Camareira: Beth Chagas
Diretor de palco: Victor Ribeiro
Contrarregra: JP Franco
Coordenação de comunicação: André Massa
Comunicação visual e animação: Kelson Spalato
Redes sociais: Gatu Filmes / Gabriel Metzner e Arthur Bronzatto
Estratégia digital: Motisuki PR / Régis Motisuki e Matheus Resende
Fotografia: Priscila Prade
Assessoria de imprensa: Pombo Correio
Direção de produção: Marco Griesi
Coordenação de produção: Bia Izar
Produção executiva: Diogo Pasquim e Tame Louise
Produção geral: Palco7 Produções
Serviço
Espetáculo "A Mulher da Van"
De 4 de julho a 3 de agosto de 2025
Sextas, às 21h00. Sábados, das 17h00 e 21h00. Domingos, às 18h00.
Teatro Bravos - Rua Coropé, 88 - Pinheiros / São Paulo
Ingressos: Plateia Premium - R$ 200,00 (inteira) I R$ 100,00 (meia). Plateia Inferior - R$ 160,00 (inteira) I R$ 80,00 (meia). Mezanino - R$ 120,00 (inteira) i R$ 60,00 (meia). Vendas: https://bileto.sympla.com.br/event/106647.
Classificação: 12 anos.
Duração: 100 minutos.
Capacidade: 611 lugares.
Acessibilidade: teatro acessível a cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida.
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