terça-feira, 30 de setembro de 2025

.: Entrevista: Dirce Thomaz e o teatro como território de resistência

 
Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.comFoto: Paulo Pereira.

A história de Carolina Maria de Jesus não cabe apenas nos diários de uma mulher negra, favelada e indomável – ela reverbera até hoje como um grito ainda incômodo para quem insiste em fingir que fome, miséria e racismo são apenas notas de rodapé da história brasileira. É essa reverberação que a atriz, diretora e ativista Dirce Thomaz leva ao palco em "Eu e Ela: visita a Carolina Maria de Jesus", espetáculo que, mais do que revisitar a obra da escritora, reafirma a dignidade dela diante de uma sociedade que tantas vezes tentou reduzi-la ao estigma da pobreza.

Mais de seis décadas depois da publicação de "Quarto de Despejo", Carolina continua sendo uma pedra no sapato de tudo aquilo que o país não resolveu – e talvez não queira resolver. Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, Dirce Thomaz fala com franqueza sobre exploração e reverência, sobre o desprezo ainda imposto à literatura negra, sobre como a fome pode ser estética sem nunca deixar de ser denúncia, e sobre o palco como território de resistência. Uma conversa que lembra que arte e política, no Brasil, sempre caminharam lado a lado – às vezes como ferida, às vezes como cura


Resenhando.com - Você já se perguntou se Carolina Maria de Jesus teria sido lida com a mesma reverência se tivesse assinado seus diários como “Carolina M. de Jesus, moradora dos Jardins”?
Dirce Thomaz - Se Carolina Maria de Jesus morasse nos Jardins, não seria "Quarto de Despejo". Seria um livro de autoajuda, no mínimo.


Resenhando.com - A fome pode ser estética, a miséria pode ser poética, mas o teatro ainda sabe reconhecer o limite entre arte e exploração da dor?
Dirce Thomaz O teatro é ficção. O teatro traz uma realidade. Embora seja ao vivo, ele traz uma realidade baseada em uma estética. Ele não vai ficar choramingando a fome. É rápido, é ao vivo, fala e passa com todo o respeito. E é diferente de outra linguagem. Por exemplo, você vê uma reportagem falar sobre a fome, fica ali mostrando a panela, mostrando o fogo aceso, mostrando a miserabilidade da pessoa viva, que está ali naquela angústia, naquela dor, naquele flagelo em vida, de não ter o que fazer para os seus filhos. E Carolina, em sua obra, ela narra, em "Quarto de Despejo", o que era passar uma noite, dias sem comer e sem ter o alimento para os seus filhos. Ela narra, mas você não vê o choro de Carolina, a miserabilidade; você lê. Dentro dos relatos de Carolina tem uma estética, então eu acho que a diferença está aí. Por quê? Porque é uma forma de linguagem e é uma forma também de respeito que você tem para trazer essa personagem à cena, para não ficar chorando as suas misérias, porque é a personagem que lutou. E venceu com a sua obra, e venceu com o que é mais difícil, que é com a escrita, com toda a crítica, com toda a perversidade da crítica da Academia Brasileira de Letras em relação a Carolina, ela venceu e está aí até hoje. E não vai cair, porque é potente, tem resistência e tem a potência em sua obra. Então acho que são esses detalhes que modificam um teatro de respeito, principalmente porque não é uma forma realista. Eu trago Carolina na primeira pessoa do plural e do singular, eu e ela, com a dignidade. Eu tenho respeito por essa personagem, principalmente porque é uma mulher negra, eu sou uma mulher negra, então para tratar das nossas coisas, das nossas vivências, das nossas lutas, das nossas potências, é preciso respeito e dignidade. Se os outros, a branquitude, não respeitam, eu como mulher negra, mulher de movimento, como ativista, eu preciso ter esse respeito, senão essa obra não vem com essa dignidade e com essa potência que ela necessita. Não é só o meu querer, é o querer da personagem, para ficar um teatro digno, um teatro potente e com a potência que a personagem merece, no caso, Carolina. Acho que esse é o limite entre a arte e a exploração da dor. Em arte, você traz a personagem com a sua dignidade. Você não vai ter no teatro, só se for um teatro muito raso, o choro da miséria, a personagem ali chorando, com a panelinha amassada, chorando porque não tem comida. É outra coisa. É a dignidade em jogo. A exploração da dor, eu acho que ela vem de uma forma rasa, que são essas reportagens que ficam ali humilhando a pessoa que já está com fome. Ela está ali, humilhada, sendo obrigada a falar na televisão. Não tem fome, não tem leite, está chorando, isso é a exploração da miséria. O teatro é outra coisa, é outra leitura, e Carolina vive na nossa representatividade. Vou defender meu mestrado agora e tem um capítulo que eu trago a Carolina Maria de Jesus com essa força e com essa potência. Se não tivesse força, se não tivesse potência, se não significasse nada, quem estaria estudando Carolina hoje em dia? E há várias teses de doutorado, dissertações de mestrado, sobre Carolina Maria de Jesus, TCC, estudando. Falando de Carolina não só na literatura, mas na biblioteconomia, na geografia, na história, na sociologia, na música. Então, a obra é potente. E por isso o teatro dela vem como arte. O teatro que eu faço, ele vem como arte. Está aí a diferença entre a arte e a miséria que fica choramingando as questões poéticas e estéticas. Eu acho que está a diferença. O teatro traz a poética e traz a estética, e traz a força. Traz só a miséria. Ele fala que a miséria aconteceu, mas a miséria é por questões políticas. Não é por vontade da pessoa querer ficar ali, naquele não lugar, não é? Eu acredito que as pessoas que vivem isso de miserabilidade, é um não lugar. Nenhum ser humano quer ficar vivendo como ratos. Ratos e baratas e bichos que vivem enfurnados nos lugares mais sujos. O ser humano quer dignidade. O ser humano quer ser estrela que brilha.


Resenhando.com - Na sua encenação, você visita Carolina Maria de Jesus, mas, em algum momento, ela a expulsou do "Quarto de Despejo" por achar sua presença invasiva demais?
Dirce Thomaz Não. Eu acredito profundamente que Carolina Maria de Jesus não me expulsaria do "Quarto de Despejo", nem na ficção da cena, nem na vida real. Essa ideia de que a presença seria invasiva não condiz com a mulher que Carolina foi. Ela lutou demais para estar nos holofotes, para ser ouvida. Ela queria ser lida, ser lembrada. Em “Eu e Ela: visita a Carolina Maria de Jesus”, essa visita que faço à obra e à figura da Carolina é profundamente respeitosa. Trago Carolina com consciência, com cuidado, com afeto. Não é uma visita à intimidade dela como invasão, é uma visita ao legado que ela nos deixou. Eu me lembro de Carolina com muita dignidade, e acredito que ela está contente com isso. Além disso, a recepção do público reafirma esse elo: muita gente aponta uma semelhança entre mim e Carolina, não só física, mas na presença, na força. E isso me move. É por isso que escrevi essa peça, porque acredito que essa visita é também uma ponte. Através da minha obra, muitas pessoas estão conhecendo Carolina pela primeira vez, e outras estão revendo sua história por um novo ângulo. O espetáculo é também uma resposta às formas como trataram Carolina, e como, muitas vezes, mulheres como ela ainda são tratadas. Ao colocá-la no centro da cena, faço questão de reafirmar que essa mulher encantada, como eu gosto de dizer, deve ser lembrada com honra. Minha visita é uma soma: do meu trabalho como artista e do respeito profundo por ela como mulher, escritora, mãe e voz do Brasil.

Resenhando.com - “Mulher negra, livre e favelada” ainda é uma combinação incômoda para os curadores da cultura oficial? Quantas portas se fecham quando a identidade se torna discurso?
Dirce Thomaz Nós vivemos no sistema neocolonial ainda, bem disfarçado, como se dizia na democracia racial, que somos todos iguais, mas na hora da divisão, daí é que a coisa aparece. Na hora da luta, da disputa em que nós vivemos de um povo que nós sempre lutamos, independentemente de ser uma mulher negra que more na favela, ou que more numa comunidade, ou que ela more num bairro um pouco melhor, que ela tem o seu apartamento, a sua casa, as lutas não são bem semelhantes, as histórias de vida são um pouco diferentes, mas a luta para chegar, o que fala mais forte é a cor da pele. Nós, negros, em qualquer lugar, somos reconhecidos. Nós não nos escondemos. Nós somos vistos ou vistas. E o sistema racista, o racismo estrutural, o racismo institucional, está presente em toda a sociedade. Então, onde a gente chega, a gente tem que chegar sempre forte, sempre firme, com um discurso muito bem elaborado, que é o discurso que nós passamos em toda a nossa vida. Então, quando você chega num lugar para mostrar a sua escrita, para mostrar o seu trabalho, você chega com ele bem delineado. E, mesmo assim, você vai sofrer as consequências. Escrever é um lugar de disputa, é um lugar de poder. Então, como mesmo sendo teatro, ou cinema, ou literatura, poesia, crônicas, você é uma pessoa negra, você é uma mulher negra. E nós, mulheres negras, vamos sempre estar sendo uma tentativa de nos barrar. Mas, às vezes, a gente passa. E quando a gente passa, a gente com certeza causa. Causa porque a obra vem com discussões. Como está sendo agora com Carolina. Dez perguntas para que eu responda sobre Carolina. Sobre a obra de Carolina. Sobre as questões negras. É uma forma, também, de persuasão, não é? Há uma pessoa que escreveu um texto para ver o que eu sei, se estou preparada para fazer o trabalho. Estou preparada. São muitos anos estudando e pesquisando Carolina, esse trabalho está desde 2017, eu e ela. Mas o que eu sei de eu e ela, o que eu sei de Carolina, o que eu sei do mercado, o que eu sei da forma de pensamento do país? Então são essas questões.

Resenhando.com - Qual foi o momento mais indomável de Carolina que você tentou levar ao palco e ela simplesmente se recusou a se deixar representar?
Dirce Thomaz Eu acredito que eu leio Carolina, leio ainda, de uma forma diferente. Eu leio Carolina como uma sobrevivente que tem potência, que ressignificou a escrita, ressignificou a luta das mulheres negras. E deixou um legado. Eu acredito nessa obra como forma de qualquer pessoa, qualquer artista que pegar, que leia a obra de Carolina e quiser levar Carolina para o cinema, ou para o teatro, como eu trouxe, que vai trazer uma Carolina forte. Eu não quis trazer uma Carolina fraca, uma Carolina chorando por sua dor. Por passar fome, por passar necessidade, por criar três filhos. Porque sempre a obra dela deixa isso com orgulho, de querer sair daquele lugar, de reclamar de estar naquele lugar e de ter força de sair desse lugar, que era onde ela morava na favela do Canindé. Ela queria mudar e ela conseguiu mudar. Então é essa Carolina que eu trago. Essa Carolina que pode, essa Carolina potente, não é uma Carolina que fica nas sombras, chorando pelos cantos e reclamando da fome. Ela sobreviveu a essa vida que ela levou com tanta dificuldade, é uma mulher forte, é uma mulher resistente. Não é uma mulher que ficou reclamando a vida inteira, e ela entrava em qualquer lugar. Tanto que Eduardo Coutinho é a passagem de Carolina visitando a casa dele, a casa dos pais dele, na Avenida Casa Branca. Então, é uma mulher destemida, essa é a palavra. Carolina é uma mulher destemida. É essa Carolina que eu trago na minha peça, para mostrar uma obra de mulher negra que não ficou acuada com toda a perversão do sistema, com toda a perversão da sociedade paulistana com ela e com outras pessoas negras. Então, ela narra isso na sua obra, do preconceito, dos palácios, das religiões. É uma mulher que adquiriu conhecimento. Ela não é uma bobinha, porque a que levou sorte. Ela escreveu um livro e foi best-seller, teve sorte.

Resenhando.com - Em 1988, você encarnou "Xica da Silva", dirigida por Antunes Filho. Em 2025, você evoca Carolina Maria de Jesus. Entre essas duas mulheres históricas, o que ainda permanece acorrentado?
Dirce Thomaz Em 1988, eu representei Chica da Silva, um trabalho que eu iniciei quando eu iniciei nos filhos, em 1986, foi um trabalho que tratava também das questões da personagem negra, da história de uma mulher negra, que é a Chica da Silva, e foi um trabalho de muita escuta, de muito empenho para falar sobre as questões do racismo que Chica da Silva passou. Estudando Carolina, desde a época em que eu fiz "O Papel e o Mar", que eu gravei em 2009, no Rio de Janeiro, e depois teve alguns bons trabalhos também em 2014, que foi o Centenário de Carolina, justamente dois grandes nomes da cultura negra, da arte negra, que é Carolina e Abdias Nascimento. Nasceram no mesmo dia, 14 de março. E Carolina, eu represento no teatro desde 2017. E eu acredito que são, quer dizer, eu digo sempre que eu falo da, que é a nossa ancestralidade mineira, da ancestralidade dos meus pais. Chica e Carolina também são mineiras, não é? Mas o que essa obra tem em comum? Eu acho que é a luta, a luta de mulheres negras para sobreviver. E as mudanças? Eu acredito que as mudanças são realmente as dificuldades, são as formas do racismo estrutural, que dificulta para as pessoas negras chegarem a algum lugar. Mas acorrentados, eu não me vejo mais na corrente. Aliás, eu não fui acorrentada nem no pensamento, nem, graças a Deus, embora o racismo ainda exista, graças aos orixás, eu não estou. Nem eu, nem minha família. Vivemos nas correntes, acho que as correntes são um pouco no imaginário de filmes, dos barulhos, uma coisa que atormenta, acho que é uma coisa simbólica. Ou quando algum estúpido resolve acorrentar os negros, de vez em quando a gente aparece, negro escravizado, negro ainda vivendo em situação de escravidão, em trabalho análogo à escravidão, a gente ainda vê essas coisas, mas para escritores, para quem está trabalhando a questão do negro no teatro e no cinema, a gente se sente mais livre para colocar o nosso trabalho em cena.

Resenhando.com - Se Carolina pudesse assistir a "Eu e Ela", o que você acha que ela diria?
Dirce Thomaz Eu acho que ela diria: que bom que você me leu e soube interpretar o que eu disse na minha obra. Porque eu trato Carolina com muito respeito. Eu trato Carolina com reverência, com paixão, mas não é uma paixão louca, é uma paixão de estar apaixonado pela obra e pela mulher que ela foi, pela dignidade e pela forma que ela viveu, pela liberdade de ter três filhos, cada um de um homem nos anos 50. Se a sociedade é cruel, ignorante e perversa com as mulheres hoje, principalmente com as mulheres negras, imagine como a sociedade era nos anos 40 e 50. É essa admiração que eu tenho por essa mulher. Acredito que a Carolina foi uma das grandes feministas. E como a Vera ficou tão contente quando assistiu a "Eu e Ela, visita a Carolina Maria de Jesus", se a filha, que é a representante de Carolina, que hoje, 2021, ficou feliz, ela foi a pessoa que Carolina designou para cuidar de sua obra. Vera Eunice diz isso. E a mãe dizia: "filha, você vai cuidar, não deixa meu nome morrer". E Carolina está viva, não só no Brasil, mas no mundo.

Resenhando.com - Ao longo da sua trajetória, quantas vezes você teve que suavizar o grito para caber no edital, no palco, na pauta da crítica? E quando foi que você resolveu parar de pedir licença?
Dirce Thomaz O grito não é só avisado, nesse sentido dessa questão, o grito é um pedido para ser ouvido, eu preciso gritar para que alguém me ouça, ou é um grito de socorro, ou é um grito para... e as pautas, elas estão aí para serem preenchidas. Eu acho que o teatro negro tem a sua estética, tem a sua força. Ele vem baseado em estudos, em pesquisas desde Abdias do Nascimento, de Lélia Gonzalez. Então, acho que essas questões estão em pauta. E os negros estão aí. Os negros estão aí desde os movimentos negros. Eu sou uma mulher que eu pego o movimento negro, o movimento União e Consciência Negra. Desde o final dos anos 70. Então, a gente tem a nossa pauta. E a gente vai batendo nas portas para colocar os nossos trabalhos. Eu vejo a luta negro, o Teatro Negro, o que eu faço, que a Invasores vem há 25 anos, não é? Fazendo o seu trabalho com respeito, mas com potência, tentando ressignificar a nossa escrita, a nossa atuação, com trabalho de corpo, com trabalho de voz, que é assim que os atores chegam. E Carolina tinha isso. Carolina cantava, Carolina adorava carnaval, Carolina pesquisava, Carolina escrevia. E é dessa forma que a gente bateu na porta do Prêmio Zé Renato e conseguimos ganhar. Para entrar num prêmio, é preciso potência, é preciso resistência. Nós batemos várias vezes e conseguimos entrar em 2025, o ano simbólico, porque a companhia Invasores, a Companhia Experimental de Teatro Negro, completa 25 anos. Então é luta. É luta, é luta, é muito debate, é muita pesquisa, é muito estudo. Foram anos só dos fóruns e seminários. Muitos, muitos participei. Só do fórum de performance negra. Fui cinco vezes a Salvador. Convidada. Fui como convidada dos curadores Milton Cobra e Márcio Meireles para participar do fórum. A Invasores foi. Eu fui pela companhia. Então essa companhia tem um respeito, e eu também tenho um certo respeito por fazer teatro há tanto tempo. Eu peço licença, eu peço licença quando eu vou passar em algum lugar, se tem alguém na porta, se eu preciso passar para fazer uma pergunta, eu peço licença porque eu mando a educação, como os meus pais me educaram, que você tem que pedir licença, mas pedir licença para me apresentar, pedir licença eu peço na encruzilhada, quando eu passo como religiosa de matriz africana, eu respeito muitas encruzilhadas, peço licença se eu estou em dúvida para onde eu vou com licença, vou para lá ou vou para cá em respeito, é uma questão de religiosidade, com esse respeito eu peço licença para as pessoas, para passar por algum lugar. Agora para entrar no palco, para mandar um edital. Então, é uma outra, eu acho que são outras questões e não questão de pedir licença, é questão de chegar bem, chegar protegida. Chegar com um bom projeto, ter um bom profissional, uma equipe de projetos, uma equipe de design, uma equipe de potência para revisar, para fazer um bom projeto, uma boa ilustração, e entrar na concorrência com todos, que brancos e negros e indígenas estão preparados. É ter um bom marketing para entrar nesses projetos. Os concorrentes, principalmente quem tem muito dinheiro, têm os melhores marqueteiros para mandar um bom projeto para um fomento. Daí não tem como entrar. E você, que tem pouco dinheiro, tem que se preparar com bons profissionais, com a sua equipe. É se aquilombar. Invasores é um projeto, uma companhia que se aquilomba. Com os melhores profissionais, dentro da arte dos profissionais negros, com arte negra, que entende a nossa questão, que entende a nossa luta e que vai saber ler os nossos projetos. É assim que nós fazemos para competir, de igual para igual. É uma luta. Tem que estar com a faca afiada. Vai com faca e com navalha e pedindo proteção. Então, eu acho que são essas questões. Ter bons profissionais, escrever um bom projeto para poder competir de igual para igual. E nós, desde que eu saí do Antunes, eu vim de uma boa escola, né? Eu vim de Antunes Filho, depois de Antunes eu tive Alexandre e Mati. São gente que estão aí há muito tempo. Eu trabalho, eu trabalhei com os Crespo, que é a companhia de teatro negro, potente também, trabalhei com os inventivos, então todo mundo trabalha com os inventivos, com Maria Auxiliadora. E é gente do melhor quilate, vamos dizer assim, dentro dos movimentos negros. Tem potências que já estão aí, que já receberam vários prêmios. Então você vai adquirindo conhecimento. E desde a época do Antunes, eu vim da escola, da dramaturgia, do Luís Alberto de Abreu, que tinha o curso na época do Antunes Filho, da época de Chica da Silva. E eu passei por essa escola, eu fiz CPTzinho. Nós íamos todos os sábados para fazer as moças de naturalismo no Sesc Anchieta, hoje Consolação. Então, eu trouxe esse conhecimento comigo. Então, eu não estou fazendo teatro de brincadeirinha, é um teatro de verdade. Então, quando eu digo que não é que eu não bato na porta, eu bato na porta. E, às vezes, se ela estiver só encostada, eu dou um empurrãozinho para perguntar. Com licença, posso entrar? Você bate e entra. Se você bater e ficar do lado de fora esperando, às vezes ninguém vem abrir essa porta para você. Tá bom? E essa dramaturgia vem desde o Antunes Filho, desde o século passado, dos anos 90, que é quando eu crio o Centro de Dramaturgia e Pesquisa sobre a Cultura Negra. Nessa época, eu já tinha saído do Antunes querendo escrever, querendo estar em vários lugares, querendo achar um lugar que eu fosse selecionada pelo meu tipo, não me restringindo a ser só a Xica da Silva, mas para fazer a personagem que eu quisesse. Por isso eu comecei a escrever. E agora, com Carolina, acho que estou concretizando um momento muito bom, não só para mim, mas para a cultura negra, de estar circulando com esse projeto maravilhoso. São 25 anos, mas os anos que ficaram atrás do centro, que foi criado em 1994. Então são mais de 25 anos, são 31 anos. Na peleja. E por isso cheguei até aqui, espero chegar. Eu espero ir mais longe, né, conquistar os projetos, outros fomentos, né. E o Zé Renato... Muitas pessoas falam que a Câmara conseguiu o Zé Renato. Eu vi o Zé Renato nascer, eu vi o Prêmio Zé Renato nascer. O Prêmio Zé Renato nasceu dentro da Cooperativa Paulista de Teatro. Foi criado, a sua idealização foi feita pelo Dorberto Carvalho, que fazia parte da Diretoria da Cooperativa nessa época, há vinte e poucos anos atrás. Idealizou, vi as discussões, ouvi. Fui até a Câmara dos Vereadores para fazer a entrega do projeto final. Então, as pessoas às vezes não sabem da realidade. Quando você ganha um projeto ou um prêmio, as pessoas não sabem que você lutou com ele, que você viu ele sendo escrito, que você também deu ideias para esse prêmio. Então, eu acho que é isso. Justiça está sendo feita.

Resenhando.com - Se a literatura negra é um direito, como diz o título da roda de conversa, quem são os carcereiros que ainda negam esse acesso?
Dirce Thomaz A literatura é um direito, mas sempre houve uma batalha, desde Machado de Assis, a fundação dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, Maria Firmina, que é uma das primeiras escritoras negras, que abriu caminho para tantas outras, para Carolina, para Conceição, uma maravilhosa Conceição Evaristo, Cruz e Sousa, que lutou muito, Lima Barreto, então tudo isso são direitos, mas houve muita luta, muita resistência e muita potência, para que eles chegassem até e para que a gente estivesse podendo falar, fazer essa gravação. Sobre o meu trabalho. Então, foram muitos escritores e escritoras que lutaram para que a gente estivesse aqui. Está aí os cadernos negros, mais de 40 anos fazendo literatura. Então, a gente vai passando, a gente tem o nosso jeito, a nossa forma de fazer, vamos comendo pelas beiradas e a gente vai chegando no centro. Então, é uma representatividade que está aí, que nós seguimos para chegar até eles. Os carcereiros que negam o acesso são os filhos, os filhos, os netos dos carcereiros da época de Machado, de Cruzeiro e de Lima. Então eles deixaram os seus herdeiros aí para estar segurando a barra, né? Segurando a barra falando, esse entra, esse não entra, esse entra, esse não entra. São os herdeiros que ficaram aí para lutar por esse mercado, para... é uma questão de poder. E que eles não querem largar os racistas, os seus filhos, os seus herdeiros, né? São os filhos dos colonizadores, né? Os filhos, os netos, essa geração que continuaram mandando no Brasil e mandam até hoje. Lutou para sair daquela falsa escravização, também deixaram uma herança, que somos nós. Os nossos ancestrais deixaram herança. E a luta é muito parecida. Tem que forçar resistência e nós ressignificamos. Estamos ressignificando até hoje os nossos ancestrais. Os nossos ancestrais, artistas, que deixaram esse Brasil muito rico. A literatura negra também vem de um movimento de luta, desde os movimentos negros, tem os movimentos artísticos, os movimentos literários, que lutam para conquistar esse lugar. E vão driblando também esses carcereiros que tentam nos encurralar em alguns espaços fechados, mas hoje a literatura negra tem muita luta, é uma luta de classe. Como diz a Angela Davis em seu livro Mulheres, Raça e Classe, estão principalmente movimentos de mulheres negras muito unidos para que a literatura negra chegue à luta. Só um lugar de destaque, então é uma classe também que trabalha e batalha muito para que sua obra, sua arte chegue em um ponto que nos favoreça, chega num lugar de visibilidade, para nos tornar visíveis, como Carolina se tornou visível com toda a dificuldade. Tem os movimentos de mulheres e tem também outros movimentos que não são só as mulheres lutando, tem as pessoas que vão por sua conta e risco, tentam chegar sozinhas, tem algumas pessoas que podem chegar, mas tem outras que chegam em grupo, que se aquilombam para ter mais potência, juntos ou juntas. Somos mais fortes.

Resenhando.com - Seu teatro é repleto de vozes silenciadas, mas hoje, quando todos falam ao mesmo tempo nas redes, como garantir que Carolina não vire só um meme literário ou um nome em camiseta branca?
Dirce Thomaz Eu acho que o meu teatro dá voz a pessoas ou a personagens que a sociedade brasileira tentou silenciar, mas elas, de certa forma, escaparam a esse silenciamento, que é esse grito, mesmo que esse grito seja um grito sufocado, alguém ouve. O silêncio foi rompido, porque houve uma comunicação, que você pode se comunicar com gestos, com olhar, e várias formas de se comunicar. E eu vi. Eu vi essa tentativa de comunicação, essa comunicação. E peguei essa personagem pela mão, pelo braço, pela roupa, pela saia, e falei, vem, vem que agora eu vou mostrar a sua força, a sua potência, eu vou ressignificar. Agora é o seu momento, eu acho que Carolina foi uma dessas personagens que tem vários projetos para falar da sociedade brasileira, para fazer essa crítica a pessoas negras que foram massacradas e que tentaram, de alguma forma, com um gesto ela se comunicou, porque ela não se calou, ela deu um sinal. E eu acredito que tem essa coisa de... e Carolina passou à frente, por exemplo, tem o projeto Chica da Silva. Até hoje, para fazer, escrever. Já está boa parte escrita sobre as outras fases de Chica, que é diferente da Chica de Antunes. Então, eu acredito que as personagens falam, as personagens dão um sinal. Eu quero ir, eu quero ser, agora é a minha vez. E Carolina deu esse sinal forte, então Carolina veio com toda essa potência. Não acredito nesse silenciamento. Eu acredito que há uma forma de sinalizar. Quando um corpo sai, um corpo negro que é massacrado, que é morto, que parece que está escondido, que ninguém vai saber, aquele clima desvendado, é porque ele rompeu o que se acha. De que é silenciamento, ele deu sinal, ou aparece uma ossada, ou aparece alguma coisa, um instrumento, um objeto, um detalhe simbólico que surge para o ato ser revelado. Eu acredito muito nessa revelação. E é assim que a gente faz teatro. Pelo menos eu. Faço teatro dessa forma. Então, esse silenciamento acho que é muito do pensamento dessa sociedade brasileira achar que é ela matando, sufocando, deixando a pessoa jogada na periferia, em bairros que não têm melhorias, como o Carmo. Vivia, naquele sufoco de não ter comida, de ter que sobreviver catando material reciclável, como dizemos hoje. Mas há muitas pessoas que andam assim, carregando seus carrinhos, arrastando como cavalos alados, carroças pela cidade, homens, mulheres, sobrevivendo de lixões, 90 mil pessoas na rua em São Paulo. Essas pessoas estão silenciadas? Não. A gente está vendo, quando você olha e vê se a pessoa está quieta, mas ela está com uma expressão, um gesto dela, vale o silenciamento. O seu olhar é o olhar da gente que vê o que é silêncio, o que é forte. Resistência e o que é potência. E na arte isso se transforma. Carolina é uma potência. Nunca vai ser esquecida, ela nunca vai ser só uma camiseta mas, escrita em camiseta branca. Amor dos orixás. Se nos anos 60, quando é lançado o "Quarto de Despejo", nós estamos em 2021, são mais de 50 anos. Carolina existe, Carolina resiste, Carolina persiste, Carolina é nome de escola, Carolina é nome de biblioteca, Carolina está nos vestibulares, foi para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi para a Unicamp, chegou à USP, foi a última universidade a aceitar as cotas, a aceitar não, né, a garantir por livre pressão. As cotas? Vocês acreditam que esse nome vai desaparecer? É impossível, impossível, vão morrer, vamos morrer, vão nascer outras pessoas e Carolina vai estar presente. Não vai morrer, não, porque permaneceu, porque permaneceu, é muito forte, o mundo conhece Carolina, o mundo estuda Carolina, ela foi traduzida para mais de dez idiomas na época que foi lançado o "Quarto de Despejo". Então ela é uma potência, enredo de carnaval na Colorado do Brás, vai ser enredo da Unidos da Tijuca agora em 2026. Isso é uma permanência. Veio para ficar. Tem filmes, está no teatro, são muitos grupos, mais de dez grupos, fazendo Carolina Maria de Jesus, já está na história. A internet é uma terra sem lei. Todo mundo põe o que quer lá. Memes. É difícil dizer até sobre isso, sabe? Difícil porque eu acho os memes uma bobagem. Isso sim, isso passa. Coloco o meme hoje e amanhã, ninguém está lembrando mais dessa coisa boba, eu acho. Mas tem outro lado da internet também, o lado da pesquisa, o lado de você buscar teses de doutorados e de mestrados, de instituições sérias, de ONGs sérias, que deixam, de institutos, que deixam um legado maravilhoso para a gente pesquisar. Isso é muito bom na música, na dança, no teatro, isso é bom. Mas o resto de quem quer se dar bem, ficar falando bobagem, isso a gente descarta. Tem tempo para ver as coisas bobas e vulgares que estão na internet. Mas, com certeza, ela veio com potência para nos auxiliar. E essas vozes, as vozes negras, sempre houve a tentativa de nos silenciar. Mas nós estamos aqui, mais de 400 anos, depois da passagem forçada dos negros, da travessia da Calunga Grande, da travessia do Atlântico, do Atlântico Negro, vários escritos sobre a nossa travessia. Por mais que boa parte da nossa ancestralidade ficou no fundo do mar Atlântico, nós estamos aqui. Então, o silêncio, de uma certa forma, ele grita. O silêncio não é um vazio. O silêncio fala. As vozes do silêncio, do Atlântico, gritam até hoje. E essas vozes chegam aos meus ouvidos, aos ouvidos de outros escritores e escritoras negras. E nós temos o direito à fala. E a gente fala, a gente fala, a gente grita, a gente escreve, a gente recita. Fazemos os nossos discursos, então ninguém nos silencia, tentaram, mas a gente está aqui e vamos estar aqui, que é a força dos meus ancestrais, a força da minha mãe, da mãe da minha mãe, da avó, da bisavó, da tataravó, da minha mãe, como diz Conceição. As nossas forças, as forças femininas, as forças de Carolinas, as forças de Chica da Silva, as forças de Lélia González, são essas forças, forças de mulheres negras. E forças de pessoas negras.

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