Thiago Sobral é escritor. Também publica semanalmente no site Minha Arca Literária e no Instagram @thiago.sobral_.
Em algum destes dias, devo ficar mais velho, meu capitão. Não sei ao certo quando, mas sei que é por agora. Isso me pegou de um jeito que não consigo mais pensar em outra coisa. Quase quarenta anos vividos nesta terra de meu deus. O que se faz com isso? E o que se faz depois disso? Aguardo sua resposta. Se não puder me responder, paciência. Fica este manual comprometido, mas não incompleto.
Não incompleto porque há sábios no mundo. Dou-lhe a prova: “A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar chegou ao fim, morreu”, disse uma boneca de pano a um certo Sabugo, conhecido como Visconde de Sabugosa. Veja só, capitão: a vida é um pisca-pisca. Pois bem. Providenciarei uma árvore de Natal, que já se aproxima, onde depositarei toda a minha vida. Há de ser um Ipê-amarelo frondoso, com quase quarenta galhos, piscando, piscando, piscando…
E como a fala da boneca é linda, penso que o senhor gostará de saber do restante, que transcrevo aqui: “A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre.”
Já parou para pensar nisso, capitão? Fiquei boquiaberto com as palavras dela. Mais ainda com o que vem na sequência:
“— E depois que morre?, perguntou o Visconde.
— Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?” *
Acho que é isso mesmo: hipótese, não só depois que morre, mas desde sempre. A cada manhã, ao acordar, levantamos uma hipótese. Aí, partimos para o mundo, e seja o que deus quiser. Vamos vivendo atabalhoados nos afazeres, sem perceber o que acontece durante a piscada. Uma sucessão de minutos, de horas, de dias e de fatos vai se unindo e tecendo a trama do que chamamos vida. Até que uma hora, tudo para. Não há mais vida.
E o que fica depois?
Aumenta-se a hipótese, talvez. Perdi o interesse por esse depois. Basta-me o desenrolar de cada segundo entre o intervalo da primeira e da última batida do meu coração, ou piscadas.
Até porque, "O Tempo só anda de ida. / A gente nasce, cresce, envelhece e morre.” Não tem escapatória, meu capitão. Temos todos o mesmo fim. Ambos aqui não sabemos quando ele ocorrerá. Mas ainda bem que temos a poesia e que ela nos deu Manoel de Barros, que continua esses versos nos ensinando um macete dos bons:
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
"Amarrar o Tempo no Poste!"
Ainda não é tempo para isso “na vida de minhas retinas tão fatigadas.” Mas, quando esse tempo chegar para mim, arranjarei uma corda bem forte e um poste bem firme, calejado por cãezinhos marotos, darei um nó muito bem dado, e porei em prática a ciência da poesia.
E quando cansar, meu capitão? O poeta já deixou a resposta: "dia que a gente estiver com tédio de viver, é só desamarrar o Tempo do Poste.", e voltar ao pisca-pisca.
Ainda quero piscar muito, meu capitão. Piscar e amar, piscar e criar filhos, piscar e escrever, piscar e perder, piscar muito antes da última piscada.
E quando eu não mais quiser amarrar o Tempo, deixe-me com os cãezinhos amigos do poste. Eles cuidarão de meus olhos cansados.
* Monteiro Lobato, em “Memórias de Emília”.













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