quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

.: Fernando Pinheiro analisa 3 escritores em "O Mago, o Santo, a Esfinge"


Por Luís Augusto Fischer.

Um mago, um santo e uma esfinge entram num bar. Os três são escritores. Mas, alto lá, vistos bem de perto é muito fácil diferenciá-los, porque ostentam distinções importantes. Considere que o mago se chama Paulo Coelho; o santo é Manuel Bandeira; a esfinge atende pelo nome de Clarice Lispector. São muitos os contrastes que qualquer leitor encontrará entre eles, mesmo num bar escuro. Sem esse tom de piada, e com os sentidos analíticos em riste, Fernando Pinheiro traz no livro "O Mago, o Santo, a Esfinge", lançado pela editora Todavia, esses três escritores para o centro do palco, diante do leitor brasileiro, que os conhece, nem que seja pela fama genérica. A capa é de Ana Heloisa Santiago.

O primeiro é figura inevitável no horizonte brasileiro e ocidental na geração atual, e os outros dois gozam de prestígio literário enorme, seja pela fama escolar (Bandeira), seja pela leitura de seus textos, na íntegra ou em drops, nas redes (Clarice). Tendo por referência, entre outros, Pierre Bourdieu e Erving Goffman, e uma forte tradição local de sociologia da cultura, Pinheiro examina não apenas a obra publicada dos três, mas também seus depoimentos, suas memórias e sua trajetória concreta sobre o chão. Seu foco é indagar como se construiu, em cada uma das trajetórias, a figura de escritor(a), e como cada um(a) lidou com a imagem pública que lhe tocou viver.

Trata-se de três casos bastante diversos, que não se conectam nem por geração, nem por um mesmo gênero textual dominante, nem mesmo na relação que cada um estabeleceu com sua imagem pública, resultante tanto de sua deliberada ação quanto das expectativas e demandas em torno de si. Mas aqui eles se vizinham, porque, para além dessas diferenças, os três representam casos notáveis de relação entre o plano das convicções, expresso em textos e entrevistas, e o fundo social em que repousa o valor atribuído à literatura, ao autor, aos livros.

Como um desconfiado profissional, Fernando Pinheiro ilumina os objetos que estuda medindo-os sempre contra certa convenção naturalizada, que atribui alto valor à “leitura literária”, desinteressada, ausente de qualquer dimensão pragmática — leitura que por sinal em nossos dias tem perdido força e espaço para o que se poderá chamar de “leitura identitária”. Também essa mudança difusa e lenta faz valer muito este estudo, para conhecer a chegada do Mago, do Santo e da Esfinge ao balcão do bar das letras. Compre o livro "O Mago, o Santo, a Esfinge", de Fernando Pinheiro, neste link.

O que disseram sobre o livro
“Os ensaios de Fernando Pinheiro miram recessos do trabalho de figuras-chave da história literária nativa. A análise em combustão derruba clichês, escarnece do proselitismo pedante, escrutina subentendidos, a modelar respiros incômodos de interpretação. Paulo Coelho, o autor dito ‘menor’, faz jus a coordenadas contextuais propícias a matizar um retrato contingente e amigável. Os consagrados Manuel Bandeira e Clarice Lispector recuperam feições e escaninhos expressivos na  contramão de vereditos no limiar da apologia. Eis o sumo da empreitada: uma incursão de fôlego apta a esquadrinhar as vulgatas ao cânon.” – Sergio Miceli


Sobre o autor
Fernando Antonio Pinheiro Filho é professor livre-docente de sociologia na Usp (Universidade de São Paulo). É autor de "Lasar Segall: arte em Sociedade" (Cosac Naify, 2008). Garanta o seu exemplar de "O Mago, o Santo, a Esfinge", escrito por Fernando Pinheiro, neste link.


Trecho do livro

Temos assim nessa ponta do arco o escritor colado ao que escreve, e com reservas a tudo que ultrapassa essa relação, o que inclui a indiferença à sua figura pública, que não chega sequer a constituir-se plenamente — Kafka representaria um tipo ideal no sentido de Weber se retivermos apenas esses traços centrais, deixando em suspenso as ambiguidades exploradas na interpretação de sua postura empírica como escritor. Passando agora à outra ponta do arco, habitada por uma postura de escritor antípoda desta (também no plano típico-ideal), os depoimentos citados parecem autoexplicativos, dada sua crueza em revelar artifícios na construção da imagem (simbólica e física) do escritor pondo inteiramente de lado seu trabalho propriamente literário; no entanto, há alguns aspectos que precisam ser um pouco mais desenvolvidos.

“Embelezar” escritores e escritoras como assumida estratégia de marketing editorial representa o epítome de um processo de midiatização que tem uma longa história, que não cabe retraçar aqui, até chegar à interferência no corpo do artista para adequá-lo a certa figura pública previamente calculada. No exemplo quase caricatural de Meg Cabot, ostensivamente louvado pela diretora de marketing de sua editora, destaca-se a fusão entre a escritora e a heroína de seu romance devida à destreza de sua encenação, que potencializa a proximidade simbólica com seu público leitor. 

A unidade assim urdida, no entanto, difere radicalmente do caso de Kafka, cingindo-se à adesão da escritora à imagem de si que ela representa (aqui no sentido cênico) como emblema do que escreve, facilitando a identificação projetiva dos leitores e abrindo caminho para a vendagem do livro, que seguramente deve harmonizar-se, como objeto material, aos marcos postos por esse emblema (em seu projeto gráfico, paratextos de capas e orelha etc.). Esse procedimento ameaça inclusive tomar a frente daquilo a que se refere — como se ao texto bastasse não quebrar a unidade da figuração. 

O depoimento de Olivier Gay indica uma variante dessa postura que inclui alguma crítica irônica na identificação entre a figura de autor desenhada institucionalmente (também nesse caso pela casa de edição) e o produto de seu métier. Ao expor os procedimentos a que se submete para aceder a uma figura de seriedade “de autor”, cria um distanciamento que é parte mesmo dessa figura, adicionando rebeldia retórica e índole transgressiva (olheiras como o “cerne de uma vida dissoluta”) como tempero especialmente apropriados a um escritor de romances policiais — insubmissão tornada modalidade de submissão institucional.

Entre os dois casos típicos assim construídos é possível localizar na história social da literatura um sem-número de casos empíricos de escritores, conforme a distância entre o autor que está no texto e sua existência diante dos outros, como encarnação de uma figura de literato para além do texto dirigida ao público — seus leitores, ou o conjunto dos que têm acesso à sua imagem pública — ou mesmo como um duplo autoconstituído, que pode inclusive se imiscuir na criação. 

De modo mais amplo, o que se sugere então é uma diferença entre texto e obra, considerando que o autor maneja, com maior ou menor controle, consciência e êxito, essa figuração pública e a modula de acordo com o que pretende com o texto — de modo que a obra seria a somatória do escrito com o que ficou encriptado na representação de autor oferecida ao público, que se interpõe entre o escrito e o lido. 

Em Kafka a figuração pública está virtualmente ausente, sobrando o texto como representação imediata do autor — ou quase isso, se lembrarmos a postura (ou impostura, descontada a carga moral do termo) representada pela autodepreciação e hesitação em publicar. No simétrico oposto o texto está presente, mas sob ameaça de ver-se englobado pela encenação de si produzida por seu autor; ou, como nos casos extremos que serviram de exemplo, a partir de uma estratégia editorial de caráter comercial a que adere. 

Não surpreende que o reconhecimento literário e o pertencimento aos cânones nacionais ou mesmo mundiais levam os escritores a uma postura mais próxima do “modo Kafka”, ao passo que o sucesso apenas ou predominantemente comercial, aliado ao fracasso crítico, tenderia a aproximá-los do polo marcado pelo “embelezamento”; no entanto, haverá sempre algo de “embelezamento”, como metáfora para a adequação figurativa, nos escritores mais “puros” (mais afeitos às proezas estritamente literárias) e vice-versa, isto é, a procura por renome literário lastreado no texto entre aqueles cuja performance fora das linhas desse texto lhes proporcionou um tipo mais instável, e contestável, de renome.

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