segunda-feira, 25 de agosto de 2025

.: Pedro Süssekind coloca Shakespeare, Homero e Guimarães Rosa na conversa


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação

Finalista da 2ª edição do Prêmio Jabuti Acadêmico, na categoria Letras, Linguística e Estudos Literários, o livro "O Mar, o Rio e a Tempestade: sobre Homero, Rosa e Shakespeare", publicado pela editora Tinta-da-China Brasil, confirma Pedro Süssekind como um dos mais inquietos intérpretes da relação entre filosofia e literatura no Brasil. Professor titular da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do CNPq e autor de obras como "Shakespeare, o Gênio Original" e "Hamlet e a Filosofia", Süssekind propõe em sua mais recente publicação um diálogo improvável - e ao mesmo tempo necessário - entre a "Odisseia", de Homero, "Rei Lear", de William Shakespeare, e "Grande sertão: veredas", de Guimarães Rosa.

Com uma escrita que desafia fronteiras acadêmicas, o autor percorre desde a Grécia Antiga até o sertão mineiro, costurando filosofia, estética e crítica literária para revelar como essas obras ecoam entre si. Em entrevista exclusiva ao Resenhando.com, Süssekind comenta os riscos de colocar clássicos em confronto, o papel da filosofia como mediadora da literatura e até os dilemas do pesquisador que também escreve ficção. Compre o  livro "O Mar, o Rio e a Tempestade: sobre Homero, Rosa e Shakespeare", de Pedro Süssekind, neste link.


Resenhando.com - 
Seu livro aproxima Homero, Shakespeare e Guimarães Rosa - três universos culturais e históricos distintos. O que seria mais arriscado: reduzir Rosa a um “Homero do sertão” ou enxergar Shakespeare como um “dramaturgo de jagunços”?
Pedro Süssekind - Dizer que Guimarães Rosa é um “homem do sertão” não o reduz, se pensarmos a partir da perspectiva dele. Numa célebre entrevista que deu a um crítico alemão, ele concorda inteiramente com essa classificação e ainda acrescenta que não se trata só de uma afirmação biográfica, e sim de uma determinação essencial. Porque “o sertão é do tamanho do mundo”, como diz Riobaldo. Não é um lugar determinado, mas uma dimensão existencial. Isso tem a ver com um “super-regionalismo”, para usar um termo de Antonio Candido. Segundo a concepção que aparece na tal entrevista e que remete a "Grande sertão: veredas", Goethe também é do sertão, assim como Tolstoi, Flaubert e Balzac. Me parece que tanto Homero quanto Shakespeare entrariam nessa lista também. Agora, de fato falar de Shakespeare e de jagunços no mesmo livro pode ser estranho. Um trabalho de Literatura Comparada corre sempre o risco de forçar aproximações, ou estabelecer conexões arbitrárias, entre autores que pertencem a contextos culturais distintos. Penso que evitei esse risco no livro, por escrever ensaios dedicados a cada obra (dois sobre a "Odisseia", dois sobre "Rei Lear" e dois sobre "Grande sertão: veredas"), sempre com o cuidado de considerar o contexto histórico dos autores. As aproximações dizem respeito a temas (como por exemplo a errância, que é abordada nas três obras de modos diversos), ou à forma de narrar as histórias (por exemplo, a incorporação de elementos épicos e dramáticos na construção do romance de Guimarães Rosa).


Resenhando.com - Na sua análise, a filosofia funciona como ponte entre literatura e pensamento. Mas até que ponto a filosofia não corre o risco de engessar a força poética da literatura, transformando metáfora em tese?
Pedro Süssekind - Eu diria que o pensamento funciona como ponte entre a filosofia e a literatura. A relação entre as duas foi tradicionalmente carregada de tensão, desde a Antiguidade, quando a filosofia afirmou seu domínio como discurso verdadeiro, em contraposição ao discurso falso (ficcional) da poesia. Isso remete, claro, às críticas a Homero na República de Platão. Mas essa separação foi repensada e posta em questão muitas vezes, em especial desde o Romantismo, no final do século XIX. Em todo caso, concordo que a tentativa de extrair filosofia de uma obra literária pode levar a um engessamento, como se essa obra fosse a ilustração metafórica de determinadas ideias ou correntes de pensamento. Esse tipo de exercício não me interessa muito, ou me interessa só como um aspecto a ser usado a serviço de uma tentativa de entender o que você chamou de força poética da literatura. Podemos chamar isso também de criação literária de uma instância de reflexão. Certamente, como mostrei nos ensaios desse livro, Shakespeare e Guimarães Rosa dialogam com a filosofia, ou seja, incorporam elementos filosóficos em suas obras. Aliás, Riobaldo é um personagem altamente filosófico, à altura de Hamlet... Mas numa peça ou numa narrativa as questões que foram objeto de reflexão teórica por parte de filósofos são apresentadas e pensadas de outra maneira. Não basta identificar questões ou remeter a teorias. Isso é só um aspecto. O trabalho do crítico é discutir essa maneira de pensar da literatura, que muitas vezes põe em xeque teorias e questões do campo da filosofia.


Resenhando.com - "A Telemaquia", "Rei Lear" e "Grande sertão: veredas" podem soar, para muitos, como textos distantes do leitor comum. O que esse “diálogo erudito” oferece ao público que não vive na academia?
Pedro Süssekind - Por que ler os clássicos? Essa pergunta foi usada por Ítalo Calvino no título de um livro do qual gosto muito. Pensei nesse livro muitas vezes enquanto escrevia os ensaios de O mar, o rio e a tempestade. Até usei uma frase dele na orelha: “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer o que tinha para dizer”. Não considero que a literatura De Homero, de Shakespeare ou de Guimarães Rosa seja objeto de estudo acadêmico, assunto de eruditos, peça de museu. A erudição da leitura, no sentido de recorrer a um aparato crítico, tem a ver com a intenção de revelar as marcas das leituras precendentes, porque elas fazem parte de uma história da recepção que vai sendo incorporada a cada um desses livros. Mas esse tipo de erudição fica a cargo do crítico, ou do professor, e só faz sentido se enriquecer a descoberta que é feita numa primeira leitura: a descoberta de algo inédito, inesquecível, inesperado, que vai muito além do que se imagina conhecer por ouvir falar de um clássico. Então, penso que o leitor, qualquer leitor que se interessa por literatura, tem muito a ganhar ao dedicar seu tempo a livros como a Odisseia, Rei Lear ou Grande sertão: veredas. Quando escrevi sobre eles, ou quando dou aula sobre eles, também quero proporcionar um caminho de aproximação para leitores e alunos, tentando mostrar a riqueza, o encantamento e a atualidade desses livros.


Resenhando.com - Quando coloca Adorno e Horkheimer para “lerem” a Odisseia, você não teme que a filosofia crítica alemã se sobreponha a Homero - como um ruído moderno que silencia a oralidade arcaica?
Pedro Süssekind - Nesse caso específico, tomei como ponto de partida a leitura da Odisseia que esses autores fazem na Dialética do esclarecimento. Uma obra literária da Antiguidade lida numa obra de filosofia do século XX. Isso me pareceu um bom ponto de partida não só para pensar a relação entre filosofia e literatura, como também para discutir a atualidade de Homero de um ponto de vista contemporâneo. Mas eu não quis simplesmente adotar a leitura que esses filósofos fazem, para não perder de vista a leitura direta da Odisseia e a minha própria compreensão desse poema, que eu amo profundamente e releio sempre que posso. Explico as hipóteses de Adorno e Horkheimer, ligadas à Teoria Crítica, para discutir e problematizar alguns aspectos da intepretação deles, justamente porque, como você disse, ela silencia elementos importantes da epopeia, ligados à passagem da oralidade para a escrita. É isso que discuto no ensaio “As Sereias e o Narrador”.


Resenhando.com - Shakespeare, Guimarães Rosa e Homero são três autores “canônicos”. O que seria mais subversivo: retirar esses gigantes do pedestal ou recolocá-los em diálogo com vozes literárias marginalizadas?
Pedro Süssekind - Certamente esses autores entraram para o cânone, se pensarmos na História da Literatura, com maiúsculas. Mas essa ideia de um cânone literário me parece problemática por dois motivos. Primeiro, recuperando o que já discutimos, porque distancia as obras dos leitores, nesse sentido de posicioná-las num pedestal, como se só pudessem ser lidas por grandes eruditos, ou como se já tivessem seu lugar determinado e estivessem ali fechadas, prontas, definidas. Um livro fechado não tem vida, um livro já entendido não precisa ser relido. Em segundo lugar, porque o cânone não pode ser nunca definitivo. Uma tradição só continua a existir na medida em que continua a influenciar e alimentar o que é criado atualmente. Aliás, é isso que nos mostraram as vanguardas artísticas, ao criar suas próprias tradições e seus próprios cânones, muitas vezes tirando do esquecimento obras que não eram mais lidas e que se tornaram clássicas a seu modo. Nesse sentido, eu estava mais interessado no meu cânone pessoal de obras clássicas que li e reli ao longo da vida. Mas vou tomar como exemplo "Grande sertão: veredas", que se tornou um grande clássico da literatura brasileira. Como Silviano Santiago comenta em seu ótimo estudo Genealogia da ferocidade, a importância histórica desse livro tem a ver com o impacto destruidor que ele teve sobre o cânone literário: o quanto ele bagunçou as categorias da história da literatura, como regionalismo, modernismo etc. A cada vez que lemos esse romance - e o mesmo se pode dizer sobre obras de Homero ou de Shakespeare -, ele sai daquele pedestal e se torna uma coisa viva, em aberto, a ser interpretada segundo a perspectiva do leitor agora. O diálogo com vozes literárias marginalizadas, por exemplo, faz parte dessa experiência viva da leitura e da crítica.


Resenhando.com - Em sua trajetória, você também escreveu romances. O ficcionista Pedro Süssekind sente inveja da liberdade do filósofo Pedro Süssekind ou é o contrário? Há algum momento em que a filosofia atrapalha a literatura? Ou, ao contrário?
Pedro Süssekind - As formas de escrita da filosofia e a da literatura são muito diferentes. O jargão acadêmico e as exigências formais de artigos e teses atrapalham quem quer desenvolver uma forma própria de pensar, por isso tento escapar das fórmulas e do jargão quando escrevo ensaios. Mesmo assim, quando estou escrevendo teoria, tenho a impressão de que nunca poderia escrever ficção. Mas o contrário não se aplica, e acho meio difícil explicar o motivo. Tem a ver com a imaginação e a carga afetiva do texto de ficção... Por outro lado, meus interesses teóricos alimentam o trabalho ficcional, como aconteceu com meu último romance, "Anistia", que recria o enredo da primeira parte da "Odisseia", a chamada Telemaquia, no contexto brasileiro dos anos de chumbo da ditadura militar. Ou seja, o romance tem uma conexão com os ensaios da primeira parte de "O Mar, o Rio e a Tempestade". No fundo, eu gostaria de aproximar as duas formas de escrita, ficcional e teórica, ou escrevendo ensaios mais literários, ou escrevendo uma ficção ensaística. Mas até o momento me sinto sempre dividido, oscilando de uma forma para outra.


Resenhando.com - Grande parte da crítica insiste em fazer de Rosa um “enigma intraduzível”. O que a sua leitura revela: Rosa é realmente intraduzível ou os críticos é que têm medo de encarar a simplicidade por trás de algo complexo?
Pedro Süssekind - Não considero Guimarães Rosa intraduzível, de modo algum. E a fortuna crítica da obra dele é muito vasta e muito rica, composta por diversas abordagens: leitura sociológica, crítica genética baseada na pesquisa de arquivo, leitura mística e filosófica, discussão linguística. A coisa parece inesgotável. Não rejeito nem adoto em definitivo nenhuma dessas abordagens em particular, mas respeito cada uma delas e tento aprender com os trabalhos de críticos de diversas linhas, até porque me parece que a literatura de Rosa de fato abre a possibilidade de todas essas leituras. Aliás, ela não só está aberta para várias possibilidades, como também se mantém ambígua, inclassificável, desafiadora apesar de todas. Por isso, desconfio de críticas que procuram resolver tudo de uma vez e propõem interpretações definitivas, dogmáticas. Dogmatismo não tem nada a ver com Guimarães Rosa. Considero que os bons críticos lidam com a complexidade e a riqueza da obra dele sem medo.


Resenhando.com - O Prêmio Jabuti Acadêmico é recente e já começa a moldar um cânone acadêmico. Você acredita que prêmios desse tipo consolidam ou engessam o pensamento crítico no Brasil?
Pedro Süssekind - Acho iniciativas como essa importantes porque dão visibilidade ao trabalho acadêmico e contribuem para romper essa barreira entre o que é produzido nas universidades e os leitores que não pertencem a esse mundo. Mas no meu caso, como eu trabalho com literatura e não com uma área mais técnica ou mais árida das ciências, não faço muita distinção entre obras de divulgação (para leigos) e obras acadêmicas. Quando escrevo ensaios sobre literatura e filosofia, a serem publicados em livro, procuro usar uma linguagem clara, sem exigir conhecimento técnico prévio ou formação numa determinada área. Claro que o leitor precisa ter interesse no assunto, em literatura, em filosofia, em história, essas coisas. Sou professor universitário e pesquisador, então faço um trabalho dentro do mundo acadêmico, mas nunca quis ser um especialista. A forma do ensaio me dá liberdade para discutir questões literárias e filosóficas, propor comparações e recorrer a diferentes áreas do conhecimento.


Resenhando.com - Se Homero, Shakespeare e Guimarães Rosa entrassem em uma taberna imaginária, como profundo conhecedor dos três, o que eles discutiriam primeiro - política, poesia ou a tragédia de ser humano?
Pedro Süssekind - Homero, Shakespeare e Guimarães Rosa entram num bar. Talvez seja um bom começo de anedota para literatos... Aliás, Guimarães Rosa gostava muito de anedotas, como sabemos pelo prefácio de Tutaméia. Nesta, ele teria que fazer a tradução simultânea da conversa de um poeta cego da Grécia Arcaica (que não sabemos se existiu de verdade) com um dramaturgo elisabetano. Até porque ele é, dos três, quem leu e poderia reconhecer os outros dois. Mas essa conversa que você imaginou só poderia ser sobre poesia, eu acho. Porque a política, a tragédia e a comédia fazem parte da poesia. O encontro poderia ser no reino dos mortos, como aquele que Dante pôs em "A Divina Comédia". E talvez os três pudessem falar a mesma língua, uma língua original, anterior a todas as outras segundo o mito da Torre de Babel. Estou elaborando a cena porque não sou capaz de inventar uma tirada para encerrar a anedota... Mas um lado bom de autores serem considerados clássicos é que eles foram traduzidos para diversas línguas, por décadas (Rosa), séculos (Shakespeare) ou milênios (Homero), de modo que continuam a reverberar, a despertar interesse e a ter leitores em épocas, lugares e culturas diferentes. Isso me remete às ideias de Walter Benjamin sobre a tradução poética como tarefa que remete àquela língua original, adâmica, capaz de capturar a essência das coisas. Enfim, nem precisamos inventar uma conversa imaginária, já que o encontro entre os três autores existe, na verdade, por meio de suas obras. Como procurei mostrar nos meus ensaios, podemos ler essas obras e fazê-las dialogar.


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