quarta-feira, 11 de junho de 2025

.: Entrevista com Paulo Scott: o poeta entre o desconforto e a estética


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com.. Foto: Morgana Kretzmann

“Não é poesia pra agradar: é pra fisgar.” Com essa energia crua e combativa, o escritor Paulo Scott lança pela editora Alfaguara o livro de poemas "Sanduíche de Anzóis". Ao revisitar 25 anos de produção poética, o autor do romance "Marrom e Amarelo" não só costura versos antigos - ele os rasga, remonta, corta fora o que já não sangra. O resultado? Um corpo novo, feito de amores esfolados, revoltas sem anestesia e loucura como linguagem-mãe.

Neste livro-reinvenção, Scott transforma o tempo em lâmina e a memória em anzol. Esqueça o lirismo gourmet de redes sociais: a poesia dele é músculo em espasmo, verbo que lateja, um soco lírico na caretice dos algoritmos. Entre versos indomáveis e um manifesto contra o novo fascismo, Scott reafirma que escrever no Brasil é - ainda - uma forma de risco, de raiva, de ternura. Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, o autor fala sobre o prazer de cuspir versos que não servem mais, a recusa às anestesias do mercado e por que prefere o desconforto à doçura. Prepare-se: esta conversa não é para os que esperam vinho chileno - aqui, a poesia vem quente e crua para fisgar. Apoie o Resenhando.com e compre a coletânea "Sanduíche de Anzóis", de Paulo Scott, neste link.


Resenhando.com - Você revisitou, reescreveu e reinventou poemas seus com mais de 25 anos. O que Paulo Scott cortou de si ao cortar os próprios versos? O que ficou indigesto nesse "Sanduíche de Anzóis" que você precisou cuspir fora?
Paulo Scott - 
Todo processo de releitura implica reinvenção. Essa reinvenção demanda riscos. Penso que admitir a possibilidade desse risco, considerando que talvez eu tenha me tornado um leitor melhor, mais acurado, mais sereno, é estabelecer uma tentativa de nova busca pelo simples, pela simplicidade, que é tão determinante na literatura e na arte em geral. Há uma acomodação de ritmo, um adensamento, um assentamento, que só a distância do tempo (o passar do tempo) poderia trazer. A supressão dos títulos, inclusive dos poemas inéditos, fez parte desse processo de corte – acredito na afetividade e na eficácia do cortar em relação ao texto, o tal lapidar, é diferente em relação à minha pessoa (e à minha persona de poeta também), com relação a ela há soma, sobretudo em relação à consciência do tempo que passou.


Resenhando.com - Em tempos de algoritmos suaves e poesia pasteurizada no Instagram, sua linguagem parece um soco de verbos crus. É possível fisgar leitores de hoje sem sedá-los primeiro com doçura?
Paulo Scott - A doçura traz a vertigem de curta duração, depois ela calcifica (é como um enigma que se resolve com facilidade). O que desacomoda está sempre em movimento; mesmo que diminua em grau de desconforto, está sempre acenando para a possibilidade de desafio. Penso que no “Luz dos Monstros” (Editora Aboio, 2023) cheguei a um lugar, a uma radicalidade, da qual não posso recuar. Mesmo que se reconheça no primeiro livro deste “Sanduíche de Anzóis”, o do amor, alguma acessibilidade maior, agrado, eu imagino que a estranheza, o martelar e o ruído estão sempre lá. Se eu abrir mão dessa dicção para me tornar mais palatável, mais, digamos, “vinho chileno” (aquele que nunca decepciona), estarei abrindo mão da própria poesia (da forma como leio e aprendo com a poesia buscando sempre sua incerteza). A liberdade que a poesia traz é imensa porque ela não demanda compreensão, ela demanda invenção, demanda leitura criativa (muito mais do que escrita criativa), penso que aí está a magia, aí está a potência, aí está o segredo. Faço como faço porque é o modo que possibilita o meu fazer, é como sei fazer; contornar a doçura fugir das referências, inclusive de mim, do verso que antecedeu o verso que está sendo escrito dentro próprio poema, é minha maneira de respirar, minha singularidade, minha voz única. Com o tempo a gente percebe que essa voz única é só o que podemos ambicionar, ela é um lugar, ele significa, mas, além de ser mais um grão de areia na imensa linha da tradição literária, não há nada de especial nele.


Resenhando.com - Você fala de amor, loucura e revolta como se fossem irmãs siamesas. Qual dessas três, se tivesse que amputar, deixaria você artisticamente amputado?
Paulo Scott - A loucura. Ela é o útero da minha linguagem, ela é a fonte, o duvidar que faz com que tudo se mova.


Resenhando.com - Em “Marrom e Amarelo”, você expõe feridas raciais do Brasil sem anestesia. Na sua poesia, que anestesia você deliberadamente se recusa a usar - mesmo sabendo que poderia facilitar a publicação ou aceitação?
Paulo Scott - Desprezar a inteligência e a criatividade de quem está lendo é formular anestesias que podem produzir resultados diferentes afetando, inclusive, a aceitabilidade comercial do livro (embora, como sabemos, não haja fórmula garantida). Tento não pegar (não ambicionar) esse atalho - meus romances não abrem mão do oculto, da entrelinha, da inquietude porque é minha forma de conseguir narrar. O que posso dizer é: minha prosa é assim porque minha poesia (minha respiração na poesia) é assim. Minha coragem de prosador vem da minha persona poeta, da sua loucura (do seu caos) que, embora menos prolifica, só aumenta em intensidade, vem da minha respiração de poeta, da segurança que, por sorte, consigo encontrar nela. Respondendo à pergunta de maneira mais objetiva: minha poesia é uma fuga, uma construção de exílio, de estrangeiridade e, nesse processo, há um atrito essencial e uma aspereza essencial que ditam o próprio fazer; manter esse movimento talvez seja meu modo de não ceder à tentação das anestesias.


Resenhando.com - Reescrever poemas antigos é como rever fotos ou reabrir cartas antigas? Você teve medo de reencontrar um Paulo Scott que já não é mais você?
Paulo Scott - Não tive medo. Sinto-me o mesmo adolescente tímido e gago buscando mais consistência nesta vida que se faz pela linguagem (e pela leitura dessa linguagem). Fotos e cartas são diferentes, poesia para mim é sempre aflição da busca, ela não cessa, encadeia e me faz, sem hiatos, perceber aqueles que já fui, dependo deles para ser o que sou hoje.


Resenhando.com - Se sua poesia é uma luta corpo a corpo com a linguagem, quem geralmente vence: o Paulo que escreve ou o verso que escapa?
Paulo Scott - Ótima pergunta. O verso que escapa sempre vence. Nele está a luz que instiga o meu perseguir.


Resenhando.com - Você já recebeu conselhos para “suavizar a escrita” ou “alinhar o tom ao mercado”? E, se sim, o que você respondeu - mentalmente ou em voz alta?
Paulo Scott - Sim, muitas vezes. Respondo em voz alta: é só assim que eu sei fazer.


Resenhando.com - Há um manifesto contra o novo fascismo dentro do livro. Como poeta, qual o risco maior: ser panfletário demais ou cúmplice por omissão?
Paulo Scott - Tentar ou arriscar, mesmo que haja falha, é o que importa. O engajamento está na leitura (ela determinará a importância de um texto literário). Não acredito em quem produz escoltado pela jura do engajamento, já justificando e explicando a própria relevância. Dizer que é um manifesto não me extrai da insignificância, não é mais do que uma simples nomeação. Registro que é manifesto porque um determinado tempo e um determinado Paulo Scott nos solicitou. Achei que valia a pena constar como um esforço nascido em um tempo de desespero (tendo por cenário a pandemia e sua incontornável ambiência apocalíptica) parte do grande desespero geral que é, em si, a existência.


Resenhando.com - Você se considera um poeta militante, um militante poeta ou um cara que escreve poesia tentando sobreviver ao país - e a si mesmo?
Paulo Scott - Sou poeta para abraçar da melhor maneira possível a solidão. Não penso em sobrevivência, penso em me aperceber da vida, penso, como já disse, em leitura, em ler mais e melhor o que nos determina e por vezes, nos permite alguma felicidade.


Resenhando.com - Se “Sanduíche de Anzóis” fisga, qual tipo de leitor você mais deseja capturar: o distraído, o indignado ou o que nunca se deixou morder por verso algum?
Paulo Scott - Não penso em quem me encontrará, penso em inscrever, do meu jeito, o que encontrei e repassar. E, nesse sentido, somar-me a uma ética que ainda não conseguimos definir, precisar.


Resenhando.com - O Paulo Scott dos versos é o mesmo que o da prosa e o do dia a dia? O que os aproxima e o que os diferencia?
Paulo Scott - Bom isso de focar nos versos. Mais do que os poemas, penso que existo nos versos, cada um deles é uma companhia irreplicada, um assentamento, um espelho que me dirá, sobretudo, para mim mesmo. Neles sou o tempo, o meu tempo, que não submete ao tempo cristão, ao tempo mercantil, ao tempo das expectativas, dos julgamentos (e, nos julgamentos, das condenações que na nossa maneira de viver o supremo deus capitalismo e suas eternas enfermidades, a atualidade de sua luz dos monstros, nos impõe).

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