Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação/ Bob Wolfenson
Há textos que se oferecem como presentes para grandes atrizes. E há atrizes que devolvem esse presente em forma de arte - lapidada, pungente, visceral e sensível. Esse é o caso de Marisa Orth no monólogo "Bárbara", espetáculo inspirado no livro "A Saideira", de Barbara Gancia, com dramaturgia de Michelle Ferreira e direção de Bruno Guida. Em cena, Marisa deita, rola e pinta o sete - não só no sentido de dominar o palco com técnica e emoção, mas porque vai até o fundo da alma de uma mulher despida de mascaramentos e cercada de memórias paralisantes, engraçadas e profundamente humanas.
Ao lado da estrela, Rafael Debona surge em cena como um sopro de afeto. A presença doce, vibrante e generosa do ator oferece suporte emocional para que a narrativa respire. No palco de "Bárbara", ele é plateia, é voz interior, é o abraço reconfortante. O desempenho delicado dele em cena, silencioso e preciso, potencializa os momentos mais íntimos da protagonista. Há cumplicidade, escuta e um cuidado que reverbera em cena. O público fica diante de um verdadeiro mergulho na alma humana.
Inspirado na autobiografia da jornalista que enfrentou mais de 30 anos de alcoolismo, o espetáculo não é uma adaptação literal, mas uma recriação livre e afetiva. Michelle Ferreira constrói um texto que tem perfume de verdade, gosto de ironia e aquela identificação que só as palavras honestas provocam. Com a colaboração de Marisa Orth, nas reflexões que pontuam a dramaturgia, a peça se transforma em um verdadeiro tratado cênico sobre a vulnerabilidade, a necessidade de aprovação e o cansaço de se mostrar forte.
Autora do livro que deu origem ao espetáculo, Barbara Gancia é, por si só, uma personalidade das mais complexas - brilhante, espirituosa e intensa. A escrita dela é direta, afiada, mas nunca desprovida de empatia. No palco, essa essência é preservada, mas ganha uma nova dimensão com a entrega de Marisa Orth. A atriz não interpreta somente uma mulher em crise - ela desenha, com o corpo e com a voz, as curvas da recaída, os buracos da abstinência, os abismos da autodepreciação e o alívio do recomeço. Marisa, que venceu o Prêmio Bibi Ferreira de Melhor Atriz por este trabalho, entrega momento raro e necessário de catarse coletiva no teatro brasileiro contemporâneo.
Há cenas em que o riso brota fácil - afinal, a tragicomédia é o tom que embala a jornada -, mas logo encontra a angústia, o peso da frustração, e o grito abafado do arrependimento. O espetáculo brinca com a ideia de "contar história", mas vai além: "Bárbara" é sobre apertar as feridas, rir delas e encará-las.
A direção de Bruno Guida acerta em cheio ao evitar pirotecnias cênicas. A escolha por uma encenação limpa, que privilegia o jogo com o público e a exposição do texto, permite que a força da palavra brilhe. A luz de Guilherme Bonfanti, os figurinos de Fause Haten, a trilha original de André Abujamra e a direção de arte de Gringo Cardia compõem uma moldura discreta, mas precisa - é o necessário para que a atriz brilhe sem distrações. A movimentação, pensada por Fabrício Licursi, também contribui para o ritmo dinâmico da montagem.
Marisa Orth, que por anos foi sinônimo de comédia na televisão brasileira, prova (mais uma vez) que o alcance dela como intérprete vai muito além do riso. Em "Bárbara", ela entrega a performance mais madura da carreira, a mais sensível, a mais irriquieta. O texto é um presente - e Marisa, com sua entrega física, emocional e quase sobrenatural, faz desse presente um banquete para o público.
Serviço
"Bárbara"
Temporada: até 29 de junho de 2025
Local: Teatro Bravos – São Paulo
Texto: Michelle Ferreira, com reflexões de Marisa Orth
Direção: Bruno Guida
Com: Marisa Orth e participação de Rafael Debona
Produção: Palco 7 Produções e Solo Entretenimento
Baseado no livro: A Saideira, de Barbara Gancia (nova edição pela Matrix Editora)
Duração: 80 manosos
Classificação: 14 anos
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