sexta-feira, 15 de agosto de 2025

.: Jarid Arraes rompe o silêncio na obra mais pessoal e corajosa da carreira


A autora Jarid Arraes enfrenta dores do passado neste volume, a obra mais pessoal da autora até então, dedicando a voz poética a um tema doloroso. Foto: divulgação
 


Em "Caminho para o Grito", uma das autoras mais notáveis da literatura brasileira contemporânea rompe o silêncio e dedica sua voz poética a um tema doloroso. No livro lançado pela editora Alfaguara, Jarid Arraes enfrenta dores do passado neste volume, a obra mais pessoal da autora até então, dedicando a voz poética a um tema doloroso: o abuso sexual, a pedofilia e marcas profundas de uma vida.

Dividido em três partes que acompanham o amadurecimento - da infância vulnerável à maturidade reflexiva -, o livro traça um percurso íntimo de elaboração do trauma, no qual cada verso é um passo rumo à libertação. Não é uma leitura fácil, nem pretende ser. É um convite para encarar as feridas abertas pela violência de gênero, pelo abuso infantil e pelo machismo estrutural. Compre o livro "Caminho para o Grito", de Jarid Arraes, neste link.


Relato de Jarid Arraes sobre o processo de escrita de "Caminho para o Grito"
Este não é um texto qualquer sobre processo criativo. A escrita do meu novo livro envolve um passeio de trem-fantasma pela casa de horrores que é o meu interior. Não esqueça que gritar faz parte da experiência. Era uma quinta-feira, bem no meio da tarde. Na tela do computador, as cenas de "Imaculada", com Sydney Sweeney, seguiam sem interrupções. 

Não foi o primeiro filme de horror que vi em 2024, mas foi o primeiro que registrei na minha conta anônima do Letterboxd. A única coisa que me interessava era assistir a filmes de horror, meu gênero favorito. Todos os dias. Não conseguia trabalhar. Acordava de qualquer jeito, caminhava alguns passos do quarto ao banheiro e do banheiro ao escritório, clicava no play, avaliava com estrelinhas, próximo, clicava no play, repetia. Entre os dias 5 e 31 de maio, assisti a 41 filmes de horror. Nos intervalos, dormi.  

Lembro pouquíssimo de 2024. Depois que a crise depressiva começou, tudo ficou borrado. Acredito que fiquei em estado de dissociação na maior parte do tempo. Consigo resgatar uma memória do dia em que assisti "Imaculada": pela manhã, na terapia, eu disse “ontem me questionei, por algumas horas, se eu era uma pessoa real”. Quase no final da sessão, desabafei: “o que me deixa mais incrédula é que ele tenha coragem de me seguir com o perfil pessoal”.  

Ele? Um pedófilo, hoje com mais de 50 anos, que me enviou pornografia infantil ao mesmo tempo que me contava ter tomado o Chá Hoasca durante uma cerimônia de sua religião, União do Vegetal, e que a bebida teria mostrado um sonho no qual a polícia entrava em sua casa, pegava seu computador e o prendia. “Eu tenho que parar” foi a última coisa que digitou no chat antes de mandar fotos que não pedi e abri sem saber do conteúdo. Eu tinha 12 anos. 

Depois de relatar a situação para minha psicóloga, abri o bloco de notas do celular e escrevi o poema windows xp, que agora faz parte do meu novo livro, intitulado "Caminho para o Grito". Em 2003, conheci esse homem, que vou chamar de Antônio, pela internet, num canal de conversas da minha cidade. Ele parecia um cara gente boa, tinha ótima reputação, podia ser considerado bonito, nem sequer se enquadrava na ideia do predador esquisito e solitário. Em pouquíssimo tempo, já tínhamos vários amigos em comum, frequentávamos os mesmos lugares e, sim, estava tudo errado. 

Eu tinha 12 anos, passava meus finais de semana em ambientes cheios de adultos, bebia e escutava o tempo inteiro que parecia ser mais velha e madura para minha idade. Quando eu e Antônio nos encontramos pessoalmente pela primeira vez, ele conversou comigo sobre música por cerca de 2 horas antes de me chamar para passear no seu carro e dirigir até uma estrada de terra no meio do nada. Por muitos anos, não admiti que Antônio também tinha sido um dos homens que abusou de mim. Aceitar esse fato me obrigaria a encarar outras coisas profundamente dolorosas, então evitei até quando pude.  

No entanto, cerca de duas semanas antes de ser seguida por Antônio no Instagram, no dia em que cheguei em Manaus para participar como convidada do cruzeiro literário "Navegar é Preciso", recebi uma mensagem de um homem que vou chamar de José. Na mensagem, ele me chamou de “potranca” e me convidou para encontrá-lo pessoalmente. Demorei um pouquinho para ligar os pontos, já que, pelas fotos, ele estava bem mais velho e eu jamais imaginaria que ele estaria morando em Manaus. Quando José me estuprou, eu tinha 13 anos e ele tinha 42.  

Toda a questão é que, num intervalo de poucas semanas, Antônio e José apareceram de novo na minha vida. E eu, aos 33 anos, não suportei. "Caminho para o Grito" foi escrito durante os meses que vieram depois desses impactos. Eu não sei dizer em que dia a crise depressiva “começou”, não sei detalhar muitas coisas devido ao intenso estado de dissociação, e até escrever este texto - sim, este aqui que você está lendo agora - eu não sabia o que havia desencadeado todo o sofrimento que vivi em 2024. Eu lembrava da maratona sem fim de filmes de horror e das noites escrevendo poemas e poemas sem nenhum objetivo consciente, até perceber que quase todos eles falavam sobre como foi ter sido vítima de pedofilia dos 3 aos 14 anos.  

Ao perceber o que meu corpo estava fazendo, como ele estava inflamado, expurgando o que precisava expulsar, lutando para se manter vivo, reuni os poemas que estavam interligados, apresentei para minha editora na Alfaguara, falei que aquilo tudo era minha história real e perguntei se queriam publicar.  Escrever mais, a partir de então com intencionalidade para construir uma obra que é uma narrativa, desde a menina de três anos até a mulher de 33 que por muito pouco não escolheu morrer, não foi a parte mais difícil. 

Hoje sei que o processo de criação de "Caminho para o Grito" era a manifestação literária de algo que acontecia no meu corpo inteiro: enquanto eu expurgava o trauma, também tentava tratar uma mastite, uma infecção no seio direito, que me fazia chorar de dor, demorou meses para ser curada e deixou uma baita cicatriz. Então quando afirmo que escrever não foi a parte mais difícil, quero dizer que reconheço como meu corpo lutou por mim.

Mesmo com as infecções, ao longo dos meses em que não consegui fazer nada além de sobreviver dia após dia dentro de um quarto escuro, quando eu ainda não entendia por que estava escrevendo, minha mente me protegeu da melhor maneira alcançável e, à medida que a infecção física era despejada do meu corpo, minha criatividade me ajudava a encarar e nomear o trauma. 

Quando terminei de escrever, precisei de tempo para decidir se de fato publicaria o livro. Sabendo que isso tudo aconteceu em 2024, pode parecer que as coisas caminharam com rapidez. Mas o tempo do calendário não é o mesmo tempo da criança interior que tem as feridas cuidadas. Para meu namorado, que esteve ao meu lado e deu tudo de si, talvez a percepção sobre esse tempo tenha tons ainda mais específicos. 

E há tanta coisa que ainda quero compartilhar sobre a escrita de Caminho para o grito , a história real narrada em poemas e todos os passos indispensáveis para que uma obra como essa chegue até os leitores. Um pouco já foi dito na minha newsletter e eu te convido a continuar acompanhando a divulgação do livro e todas as ações que acontecerão por causa dele. Como este texto jamais poderia ter fim, vou concluir este recorte com um poema inédito que está em Caminho para o grito. Espero que goste da leitura e desejo que você sempre consiga ouvir o próprio corpo. Compre os livros de Jarid Arraes, neste link.


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