quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

.: "E o Oscar não vai para...", um artigo de Benedito Antunes

Por Benedito Antunes*
Em dezembro de 2015

Soube-se no último dia 17 que o filme "Que Horas Ela Volta?", dirigido por Anna Muylaert e protagonizado por Regina Casé, ficou fora da lista dos nove títulos que concorrerão ao Oscar em 2016. É uma pena! O prêmio, embora não seja indispensável para consagrá-lo como um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos, ajudaria a consolidar sua carreira internacional. É bem verdade que ele já foi premiado e deverá receber outros prêmios, mas um Oscar de melhor filme estrangeiro, apesar de todas as restrições que se possam fazer aos critérios de escolha da Academia, representaria um justo reconhecimento a um trabalho de boa qualidade e que aborda de forma original um problema crônico brasileiro: a naturalização das diferenças sociais.

Já era possível antever esse resultado no plano internacional. Apesar de Regina Casé ter recebido pelo menos dois prêmios no Exterior, seu excepcional desempenho no filme não deve ser facilmente percebido pelo público não brasileiro. Ela constrói a personagem Val em grande parte com gestos, atitudes e, principalmente, com a linguagem do migrante nordestino, traços esses que exigem familiaridade com a cultura brasileira para serem apreciados. Por outro lado, o tema do filme é universal, porém sua particularização no ambiente doméstico já não é comum em países mais desenvolvidos. E, mesmo no Brasil, vem-se tornando raro, o que provavelmente inspirou sua abordagem.

As relações entre empregados domésticos e patrões no Brasil remontam à escravidão, quando havia certa promiscuidade entre a família dos senhores e os escravos domésticos. A violência e a indignidade dessa relação eram amenizadas pela afetividade que se imiscuía entre as pessoas. Do ponto de vista do escravo, essa afetividade encobria sua condição desumana; pelo lado dos senhores, era uma forma conveniente de se atender às suas necessidades. Joaquim Nabuco, para quem “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, recorda, em Minha formação (1900), “a troca contínua de simpatia” entre ele e os escravos com que convivia na infância. E explica que isso talvez fosse possível “somente em propriedades muito antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade, e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos tivessem feito de um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo”.

Ora, não seria mal que, depois de Cidade de Deus (2004), o primeiro filme brasileiro a receber quatro indicações para o Oscar, e que certamente teve grande impacto internacional menos pelo que de essencial trazia em sua trama, do que pelo eventual sensacionalismo da violência e da crueldade que lhe servem de fio condutor, o Brasil fosse projetado por um filme que toca fundo em sua tradição social, colocando a nu uma relação de classes que caracteriza, sim, o País como uma sociedade de base escravocrata, mas que aponta para todas as situações em que as diferenças de classes sociais parecem naturais.

*Benedito Antunes é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Assis. 

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