quarta-feira, 22 de junho de 2016

.: Maria Rita: O Samba em Mim – Ao Vivo na Lapa

Por Miguel Jost
Pesquisador musical, Doutor em Literatura e professor da PUC-Rio.
Em junho de 2016

 Donga, grande baluarte do nosso samba e autor junto com Mauro de Almeida de “Pelo Telefone”, aquele que é considerado o primeiro samba gravado no Brasil em 1917, afirmou certa vez em entrevista:

“O ritmo caracteriza um povo. As mãos foram um dos primeiros instrumentos musicais. Mas como a humanidade é folgada e não quer se machucar começou a sacrificar os animais para tirar o couro. Surgiu o pandeiro. E veio o samba. E surgiu o brasileiro, povo que lê música com mais velocidade do que qualquer outro no mundo, porque já nasce se mexendo muito, com ritmo, agitadinho, e depois vira capoeira até no enxergar”.

 Maria Rita abre seu O Samba em Mim – Ao vivo na Lapa no mesmo tom de Donga, cantando:
"O Povo sacode o pagode
Batendo na palma da mão
É corpo, é alma, é religião".

O samba, que faz 100 anos "oficialmente" em 2017, é para os brasileiros uma forma de se entender, pensar e contar sua história. Expressão máxima da nossa identidade cultural, é base de toda a rica e diversa música popular que produzimos desde então, e que representa uma das mais importantes referências do Brasil no mundo. É como diz a canção de Arlindo Cruz, Rogê e Arlindo Neto que ela canta: nosso corpo e nossa alma.

Como gênero musical específico, é centro de inúmeras discussões de especialistas sobre seus limites e fronteiras. Já como essência e inspiração, transborda no cotidiano de todos nós brasileiros e faz parte do nosso jeito de olhar o mundo. Está na bossa-nova, está no nosso rock, está no funk, no rap e se espalha em todo repertório da nossa música. Quando só existia o rádio como meio de comunicação, foi o samba que contou sobre o Brasil para o Brasil, que conectou sul-norte-nordeste-sudeste-centro-oeste. Foi crônica, foi ritmo, foi poesia, foi prosa. Nos ensinou sobre o amor, a dor, e tanto mais. Levou para o centro do palco a voz, o corpo e a história da cultura negra e popular em nosso país.

Maria Rita traz para nós neste trabalho um samba contemporâneo, e muito particular, que presta reverência à tradição e que assume a liberdade de filtrá-la a partir da marca original de sua assinatura como cantora. A presença do gênero em sua discografia não é de agora. Surge mais fortemente em Samba Meu (2007) e desde então está presente nos discos e shows que produziu. A cantora segue assim a trilha de tantos intérpretes brasileiros que, ao seu jeito, incorporaram o samba e lhe deram novos contornos, nuances e temperos. Trilha essa que vai de Francisco Alves a Los Hermanos, de Dalva de Oliveira a própria Maria Rita, e que passa por tantos nomes consagrados da música popular brasileira. João Gilberto, referência máxima da bossa-nova no mundo, sempre que perguntado em entrevistas sobre qual gênero musical toca, dá a mesma resposta: samba.

Na escolha do repertório, tanto nas 21 faixas do registro em DVD quanto nas 14 selecionadas para o CD, Maria Rita alterna canções de nomes já consolidados no meio do samba e da MPB com outros compositores de sua geração, colocando a “dita fé na moçada”, como diz “E vamos à luta”, de Gonzaguinha, também gravada aqui. Maria se apropria ainda de canções que não foram feitas originalmente pensadas para forma-samba, mas que por esse filtro da cantora encontram no trabalho total sintonia com sambas compostos por Monarco, Arlindo Cruz e Jorge Aragão.

Os arranjos musicais privilegiam a cadência mais típica do gênero mas trazem também referências ao jazz, à bossa-nova e incorporam elementos da música popular de maneira geral. Na nova versão de “Coração a batucar”, canção de Davi Moraes e Alvinho Lancellotti que dá nome ao álbum lançado em 2014 pela cantora, chama atenção a forma como a guitarra do próprio Davi Moraes e o teclado de Rannieri Oliveira criam um diálogo instrumental empolgante entre seus solos e a “cozinha” (expressão usual dos músicos para denominar a combinação de baixo-bateria-percussões) formada por Marcelo Linhares, Wallace Santos, Marcelinho Moreira e André Siqueira.

Impressiona no registro do show a presença constante do coro e das palmas da plateia. Gravado na Lapa, considerado um dos redutos do samba no Rio de Janeiro, a apresentação é pontuada pelo protagonismo do público que acompanha Maria Rita em todas as canções e participa ativamente do show. O resultado é uma vitalidade e uma eletricidade que saltam aos olhos e ouvidos de quem agora tem acesso ao trabalho através do CD e DVD e poderá viver o clima extasiante da noite de gravação. Essa sinergia entre Maria Rita e a plateia não é uma novidade e pode ser percebida em outros registros em vídeo dos trabalhos da cantora. Porém, nesse em especial, podemos dizer que a intensidade da participação do público é um caso a parte.

Assim, ao mesmo tempo que reforça a importância dessa relação da cantora com seus fãs, o trabalho se aproxima de uma longa tradição do samba de ser um ambiente de uma experiência que celebra a troca, os encontros, a interação entre músicos e público, e cumpre um importante papel de conectar as pessoas. “É corpo, é alma, é religião”.

Das casas das tias baianas como a da famosa Tia Ciata na Praça XI, onde o samba teria nascido nos anos 1910-1920, passando pelo Estácio de Sá de Ismael Silva, e chegando na famosa sombra da tamarineira da quadra do Bloco Cacique de Ramos, onde surgiu o pagode dos anos 1980 com Fundo de Quintal, Almir Guineto, Beth Carvalho, Arlindo Cruz e tantos outros, é toda uma história do samba que pode ser contada como uma experiência que também é coletiva.

Maria Rita, com seu "O Samba em Mim – Ao Vivo na Lapa", nos lembra mais uma vez o quanto o samba existe em nós. O quanto o samba se faz nessa relação entre o íntimo e o coletivo, entre o intérprete e seu público, entre corpo e alma. Entre a mão, a palma, o pandeiro e o brasileiro, como já dizia Donga.

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