quinta-feira, 29 de maio de 2025

.: O drama da liberdade moderna na democracia da Era do Espetáculo


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com

No célebre discurso de 1819, Benjamin Constant diferenciou a liberdade dos antigos - baseada na participação direta na vida política - da liberdade dos modernos, centrada na proteção dos direitos individuais. Hoje, no entanto, vive-se uma metamorfose desse conceito: a liberdade moderna convive com a passividade eleitoral, o culto à opinião alheia nas redes sociais e atitudes que distorcem o próprio sentido de democracia. Esta reflexão pretende discutir como a noção de liberdade evoluiu, como ela se manifesta nas democracias atuais e como é, por vezes, distorcida por práticas e discursos autoritários travestidos de reivindicações legítimas.

Benjamin Constant argumentava que, nas democracias antigas, como em Atenas, a liberdade significava a participação ativa do cidadão na política, enquanto os modernos, em sociedades complexas e populosas, valorizam a autonomia privada e os direitos civis. Essa distinção se reflete nos regimes democráticos atuais, nos quais poucos cidadãos participam efetivamente além do voto. A democracia moderna pressupõe uma estrutura institucional estável - com divisão de poderes, eleições periódicas e garantias constitucionais -, mas que não impede o crescimento da apatia política e da alienação digital. Ao mesmo tempo, surgem novos desafios: a liberdade de expressão colide com o controle algorítmico e a cultura do like, e a intimidade é negociada em troca de aceitação e visibilidade.

Esse novo tipo de “prisão livre” revela um paradoxo: o indivíduo moderno, embora dotado de direitos civis, parece cada vez mais condicionado pela necessidade de aprovação externa e pela lógica das plataformas digitais. O romance "1984", de George Orwell, retrata uma sociedade dominada pela vigilância total do Estado. Hoje, vivemos uma forma invertida desse cenário: a vigilância é voluntária, e os cidadãos se expõem deliberadamente nas redes. A chamada “sociedade do espetáculo”, como denunciou Guy Debord, transformou a realidade em imagem, e a experiência em performance pública. Os reality shows como o "Big Brother Brasil" são o ápice desse modelo: desconhecidos e até famosos abrem mão da privacidade em troca de fama e entretenimento, e milhões consomem essas intimidades como forma de lazer. Nesse contexto, a liberdade se torna uma moeda de troca no mercado da atenção, e o escândalo, uma estratégia de marketing e visibilidade.

Essa alienação enfraquece a virtude democrática da responsabilidade, permitindo que cidadãos confundam liberdade com impunidade. Exemplo disso são as ações de vandalismo durante os atentados de 8 de janeiro de 2023, em Brasília: os participantes alegaram estar exercendo sua liberdade de expressão, enquanto destruíam instituições que garantem justamente a liberdade de se manifestar a partir do diálogo. A sensação de impunidade e a ausência de culpa - acompanhadas por pedidos absurdos de anistia - revelam como a democracia pode ser corroída por discursos que retalham seus fundamentos. A “sociedade do escândalo” se alimenta da indignação instantânea e da comoção superficial, esvaziando o debate público e normalizando atos extremistas como se fossem manifestações legítimas de liberdade.

Dessa forma, a liberdade dos modernos, se por um lado ampliou direitos individuais e privacidade, por outro exige uma vigilância ética constante. A democracia não se resume ao direito de votar, nem a uma aparência de liberdade digital. Exige consciência crítica, participação ativa e compromisso com o bem coletivo. Em tempos de superficialidade virtual e extremismos travestidos de liberdade, é urgente retomar o sentido profundo da democracia: garantir que sejamos, de fato, livres para viver com dignidade, sem abrir mão da responsabilidade que essa liberdade exige. Porque não há liberdade sem consciência ou consistência - e muito menos não existe democracia sem pessoas dispostas a defendê-la.

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