Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com.
Malu Garcia viajou para enfrentar a realidade. Em "Indomável", livro de estreia escrito por ela, a autora transforma quatro meses de confinamento em Cuba durante a pandemia em um exercício radical de liberdade e lucidez. O resultado é um relato que mistura crônica, memória e reflexão sobre o olhar estrangeiro, que ora vigia, ora liberta.
Jornalista, radialista e apresentadora, Malu carrega na palavra o peso e o alívio das metamorfoses. Nas páginas do livro, Cuba não é o cartão-postal congelado no imaginário turístico, mas um território pulsante de contradições, onde a escassez revela a criatividade e o afeto se impõe na realidade do país. Escrever sobre a ilha é também escrever sobre o Brasil e sobre a mulher que se reinventou ao ultrapassar as próprias fronteiras.
Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, Malu fala da solidão feminina como potência, dos riscos ideológicos de narrar um país sob permanente observação, do poder político da ternura e do espelho incômodo que a ilha lhe devolveu. Entre a vigilância e a rebeldia, a autora descobre que a literatura é o único passaporte que realmente atravessa. Compre o livro "Indomável", de Malu Garcia, neste link.
Resenhando.com - Você transformou a experiência de “turista controlada” em literatura. No fundo, a sua escrita nasce da vigilância ou da rebeldia?
Malu Garcia - Penso que minha escrita nasceu do atrito entre as duas coisas. Eu não esperava me encontrar naquela situação de “controlada”, e isso me causou pânico. Sentia um medo absurdo e nem sabia muito bem o por quê. Num primeiro momento me ocorreu que talvez eu não pudesse voltar outra vez a Cuba. E também no contexto da pandemia, por óbvio, perder as minhas pessoas no Brasil era um medo real e diário. Foi tenso. Os motivos do “controlada” estão no livro, e posso dizer que desobedecer certas regras, primeiro, me manteve viva; depois me impulsionou na escrita, sim. O que vivi lá nunca coube em roteiros prontos. Então, na hora de escrever as minhas vivências foi como fazer um balanço de uma rebeldia que não sabia que tinha vivido. A vigilância me ensinou a prestar atenção, a observar minúcias. Já a rebeldia me deu coragem para escrever a partir das brechas, para atravessar o que era imposto num tempo raro, aquele da pandemia. A experiência de “controlada” acabou se revelando uma proteção. Hoje penso que minha escrita é filha desse embate: nasce da vigilância, porque dela vem a consciência aguda do olhar sobre mim quase aos 50, mas floresce na rebeldia, porque só desobedecendo ao viajar num momento sanitariamente delicado pude encontrar a Cuba real e, mais ainda, a mim mesma.
Resenhando.com - Em suas crônicas, Cuba não aparece como cartão-postal. O que descobriu de si mesma ao enxergar a ilha como espelho e não apenas cenário?
Malu Garcia - Já na minha primeira viagem, em 2005, deixei de olhar Cuba como um cartão-postal e passei a encará-la como espelho. As conexões que fiz lá me levaram de volta à minha infância e foi aí que descobri aspectos de mim mesma que no cotidiano corrido talvez eu não tivesse chance. A ilha me confrontou com contradições: a beleza e a dureza, a alegria e a falta, a liberdade que pulsa apesar das amarras. Percebi que eu também sou feita dessas tensões - do desejo de ir além das limitações e da força para encontrar sentido mesmo em contextos difíceis. Ao escrever, vi que Cuba não era apenas cenário para minhas viagens, mas um reflexo das minhas próprias inquietações e da necessidade de me reinventar. No fundo, ao ficar presa na ilha, enxerguei também minhas fronteiras internas - e a coragem de atravessá-las. Aí entram as pessoas e os encontros que vão mudando minha vida e inauguram minha escrita.
Resenhando.com - Você diz que “viajar sozinha é a maior expressão de liberdade que uma mulher pode experimentar”. Mas, na prática, essa solidão já lhe foi cruel em algum momento?
Malu Garcia - Sim, já foi cruel - e é justamente por isso que também é tão libertadora. Toda liberdade pressupõe uma quota de sacrifício primeiro. Depois, o prazer! Viajar sozinha deixa de ser apenas sobre paisagens e descobertas externas, é também sobre encarar a si mesma sem distrações. É estar como inteira, sem a distração que outra presença proporciona e limita. Tem o fator de você não ter que convencer ninguém que está com fome de almoço às onze horas da manhã ou que quer ficar no museu da hora que abre até fechar, por exemplo. Viajando sozinha me obrigou a ser minha própria companhia, a sustentar meus medos e minhas escolhas. No começo eu pensava “o que as pessoas estavam pensando ao me virem sozinha”; sentiam pena? Depois tudo se transformou em potência: percebi que estar só significava estar fazendo aquilo que escolhi, totalmente inteira.
Resenhando.com - Onze viagens para Cuba em tempos de desencanto global parecem um mergulho obsessivo. O que a ilha tem que o Brasil insiste em lhe negar?
Malu Garcia - Eu viajo a Cuba desde de 2005. São vinte anos acompanhando as mudanças que ocorrem internamente muito mais como reflexo das agressões externas que o país sofre, do que qualquer outra coisa. Para entender isso é conveniente estudar a História. Mas Cuba me oferece uma intensidade que muitas vezes sinto faltar no Brasil. Lá, a vida pulsa sem pressa. Penso que como se trata de um lugar relativamente pequeno, tem-se muita cultura sem ter que atravessar grandes distâncias. Havana é como uma espécie de showroom de cultura. E tem o lado da escassez que revela a criatividade, e cada encontro é vivido como se fosse único. É um lugar que não me permite ser espectadora - me chama para dentro da experiência. O Brasil, com toda sua grandeza e riqueza cultural, muitas vezes me nega esse mergulho profundo porque se perde no excesso, no barulho, na pressa. Em Cuba, o tempo desacelera e me obriga a olhar nos olhos, a ouvir histórias inteiras, a participar de uma vida menos mediada por filtros. Talvez por isso eu tenha voltado tantas vezes: porque a ilha me oferece uma radicalidade de experiência que me revela não apenas um outro país, mas uma outra versão de mim mesma - aquela que o Brasil, na correria e na abundância, e no medo da violência, insiste em calar.
Resenhando.com - Há algo de político em cada escolha estética do seu livro. Escrever sobre Cuba, hoje, não é também assumir um risco ideológico?
Malu Garcia - Escrever sobre Cuba é, sim, assumir um risco - porque qualquer narrativa sobre a ilha costuma ser lida através de lentes ideológicas já polarizadas. Mas eu não poderia escrever de outro modo. Minha relação com Cuba não é panfletária, é existencial. Foi lá que fiz um balanço da minha vida chegando aos 50. Vivemos tempos de excesso de informação e sobre tudo temos que ter uma posição, uma opinião, um sentimento. Mas conhecimento mesmo não há. Sobre Cuba isso ainda vem carregado de desinformação. Se eu tivesse escrito minhas vivências passadas em qualquer outra ilha do mundo, Maldivas por exemplo, não suscitaria esse juízo do bem e do mal. Cuba tem uma História e muitas narrativas que interessam à manutenção de agressões externas. O povo está cansado mas não tem outra alternativa a não ser resistir. Daí o meu título Indomável. As minhas histórias lá não são nada de panfletárias a favor de uma ideologia. São as minhas vivências de lá, espelhadas numa vida nas daqui. As pessoas conhecem Cuba pelas notícias, a favor e contra, mas o meu livro é mais uma abordagem amorosa acerca da realidade cotidiana, das coisas simples e grandes que também dão a singularidade de um país. A bandeira impressa na parte interna da capa do livro não é um manifesto, é um símbolo de respeito à intensidade do país que tanto me transformou. Por outro lado tenho comigo uma vida inteira de expectativa por justiça social no meu próprio país. Talvez por isso Cuba me convoque tanto: porque, ao mesmo tempo em que revela suas contradições e falhas, expõe também o desejo coletivo de dignidade, de partilha, de sobrevivência com criatividade. O risco ideológico existe, mas para mim escrever é escolher não se esconder. E se minha literatura carrega política, é porque acredito que toda experiência humana - sobretudo a viagem - está atravessada por questões de liberdade, de desigualdade e de esperança. Em Cuba, nos quesitos segurança, solidariedade, educação e saúde, encontrei o espelho que me ajudou a refletir sobre o Brasil que ainda sonho viver.
Resenhando.com - Você conheceu a ex-mulher de Glauber Rocha e a mãe de Leonardo Padura. Mas qual foi o encontro mais íntimo, aquele que não coube no livro porque ainda é ferida aberta ou segredo guardado?
Malu Garcia - Tive muitos encontros profundos que não estão notoriamente no livro. Essa pergunta, nesse contexto mundial que vivemos hoje, me leva a refletir sobre um em especial: certa manhã fui apresentada a um senhor de um metro e meio, e 85 anos. Ele tinha acabado de escrever um livro e me presenteou com um exemplar, autografado para mim no parapeito da sua janela, de onde víamos o Malecon. Conversamos um pouco e nos despedimos já que eu seguiria direto para o aeroporto, de volta ao Brasil. No voo li o livro. Era a história vivida por ele enquanto chefe diplomático da embaixada de Cuba no Panamá, em 1989. Pude entender que aquela história era menos sobre geopolítica e mais sobre as coisas que acontecem na vida das pessoas e são imparáveis. Particularmente, guardo um grande medo desses grandes acontecimentos que viram vidas de cabeça para baixo. O livro do Lázaro Mora conta a invasão do Panamá. Ele passou por tudo aquilo como personagem. O livro agora está editado no Brasil e chama “Não Temos o Direito de Esquecer”. E ainda hoje olhando o noticiário penso que a qualquer momento podemos ter a repetição disso, aqui, ou em países vizinhos. Mas essa sua pergunta me leva a refletir que gosto da minha vida sem grandes sobressaltos, grandes acontecimentos. Gosto da minha vida como maré, vezes alta, vezes baixa, mas nunca um furacão que descontrola tudo. Digo sempre às minhas amigas quando estamos em “café terapia” que tenho medo das cambalhotas que a vida dá: uma doença grave, uma perda, um revés. Aqueles acontecimentos que tiram a vida do prumo. Quando fiquei presa em Cuba por quatro meses eu só pensava nisso. Mas com a escrita me dei conta que todos os acontecimentos ruins da minha vida só me jogaram para o alto. Aquele encontro com Lázaro continua comigo, inteiro, e me ensinou que literatura é escuta antes de ser voz.
Resenhando.com - Suas crônicas são atravessadas por afetos, memórias e descobertas. Em algum momento, teve medo de que a literatura romantizasse demais um país onde a sobrevivência diária é, muitas vezes, luta bruta?
Malu Garcia - Sim, esse medo sempre me acompanhou, principalmente, pelo fato de que sobre Cuba todo mundo pensa que sabe tudo… e tenho consciência que meu livro por óbvio não esgota assunto algum, ainda mais um tema que sofre polarização, propaganda e o instinto já conduz à política. Tinha medo dos julgamentos, dos preconceitos que a simples menção ao nome da ilha já causam. Mas é necessário frisar que o meu livro são as minhas vivências. E, por óbvio, escrevo carregada das minhas próprias bagagens, de criação, sonhos e conquistas. A literatura tem uma força de encantamento, e Cuba, tem a sua crueza, que é vista por nós, brasileiros, com lupa, sem que enxerguemos ao nosso redor, nossas próprias crueldades, como pessoas morando nas ruas que nem nos impactam ou apiedam mais. Cuba hoje está diferente da Cuba que conheci nos últimos vinte anos. Mas meu livro é um testemunho desse tempo, visto por uma sempre estrangeira, está claro. A Ilha toda, com sua música, luz e intensidade humana, convida facilmente à idealização, contra ou a favor. Mas eu vivi o melhor que eu poderia ter vivido nesse tempo. Sem esquecer que por trás do riso generoso existia a dureza da fila, da falta, do improviso diário para garantir o básico. O risco de romantizar está em transformar a falta em espetáculo. Eu não queria cair nessa armadilha. Por isso escrevi tentando equilibrar afeto e lucidez: reconhecendo a beleza do que vivi, mas sem negar a luta. Minha intenção nunca foi pintar Cuba como um paraíso, mas como uma ilha de contradições que também revela minhas próprias contradições como uma brasileira do meu tempo e do meu lugar. Sim, porque ao meu redor também há pobreza ainda maior do que a que existe em Cuba, acrescida de uma violência e medo, únicos também no mundo. A literatura, nesse sentido, não é romantização, mas tentativa de testemunho. E se existe idealização no que escrevo, ela não está em suavizar a realidade, mas em dar voz à dignidade com que o povo cubano atravessa suas batalhas cotidianas, reflexo de agressões externas históricas.
Resenhando.com - Ao narrar uma brasileira em Cuba, você inevitavelmente fala da identidade brasileira. O que descobriu sobre o Brasil estando longe dele?
Malu Garcia - Estar em Cuba me obrigou a enxergar o Brasil sem os filtros que a minha bolha de privilégios me oferece. De longe, percebi o quanto carregamos uma desigualdade naturalizada, quase anestesiada, como se fosse destino. Em Cuba, a escassez é explícita, mas existe também um senso de coletividade que amortece isso. No Brasil, temos abundância em alguns pontos, mas ela convive com um abismo social gritante — e muitas vezes escolhemos não ver. Descobri que a identidade brasileira é feita de contradições tão radicais quanto as cubanas, mas nós aprendemos a disfarçá-las. Distante, percebi o silêncio que me atravessa quando volto para o meu país e reconheço que o acesso à educação, à saúde, à segurança e até ao ato de viajar sozinha são privilégios. Escrever sobre Cuba foi, no fundo, escrever sobre o Brasil que me habita e sobre a culpa e a responsabilidade que carrego como mulher brasileira consciente dos meus privilégios. A ilha me mostrou um espelho menos confortável, mas mais verdadeiro. E talvez por isso eu volte sempre: para não esquecer que a identidade também se constrói no confronto com aquilo que preferiríamos não enxergar.
Resenhando.com - Você foi radialista, repórter, apresentadora de TV e agora escritora. Essa metamorfose da palavra em sua vida tem mais de cura ou de provocação?
Malu Garcia - Olha, para além dessas funções que exerci, eu acho que antes eu fui a primeira neta da dona Maria e sobrinha de uma freira, dona de uma mala cheirosa. Essa mala da minha tia teve um grande impacto nos meus sonhos de infância. Já minha avó era analfabeta, mas foi junto dela que a palavra ganhou o território da minha inquietação. No livro eu decifro um pouco dessas duas relações de afeto que mais tarde são decisivas para eu ganhar o mundo. Daí, a palavra passa a ser uma espécie de fio condutor na minha vida. No rádio, era rápida, quase um sopro; na TV, precisava estar enquadrada, bem medida; e na escrita… na escrita ela ganhou silêncio, pausa, ganhou corpo. Quando escrevi "Indomável", percebi que não era só sobre Cuba. Era sobre mim também. E aí entrou a cura - porque escrever me fez revisitar memórias, lacunas e contradições que na correria do dia a dia a gente não encara. Mas entrou também a provocação - porque, ao me ver fora do meu país, fora da minha bolha de privilégios, eu fui obrigada a me perguntar: quem eu sou nesse novo cenário, fazendo outras descobertas, ganhando referências, com outras verdades? Ao narrar minhas descobertas em Cuba, precisei revisitar memórias, deslocamentos e afetos que eu mesma não entendia completamente. Assim, a palavra, funcionou como um espelho que obrigou a me encarar quase numa linha do tempo, sem possibilidade de volta, já que estou aos 50. Mas também foi provocação - para mim e para o leitor - porque expôs contradições de uma brasileira que vive em sua bolha de privilégios e, de repente, se vê diante de uma realidade que subverte certezas. Para mim até está engraçado. Depois da escrita eu passei a ter uma relação diferente, mais saudável com a minha própria casa. Domesticamente, virei uma pessoa mais organizada. Outra cura é que dias nublados ou chuvosos não me oprimem mais; e perdi a pressa para muitas coisas também. Penso que a escrita cicatrizou coisas que eu nem sabia que doíam. Então, quando terminei de escrever Indomável, percebi que não havia feito narrações apenas sobre minhas idas e vindas de Cuba, mas sim atravessado a mim mesma. De fato, essa metamorfose da palavra, em mim, não é escolha entre remédio e inquietação. Penso que seja muito mais um movimento que costura as duas coisas. E talvez seja isso que me põe em movimento até hoje: habitar esse espaço onde a palavra tanto acalenta quanto cutuca.
Resenhando.com - Se tivesse que resumir Cuba em uma única cena que dissolvesse política, poesia e contradição, qual seria?
Malu Garcia - Olha, se eu tivesse que resumir Cuba em uma cena só, eu escolheria um final de tarde no Malecón, em Havana. Você vê aqueles carros antigos passando, soltando fumaça e ao mesmo tempo ali perto as crianças saem da escola com um uniforme lindo e com uma alegria marcante, como se não houvesse falta nenhuma. Sentado, um casal apaixonado, mas ele com vontade de deixar o país e ela ligada a mil coisas da ilha; mais ao lado, um senhor com um violão gasto, tirando música da precariedade. Tudo isso sendo tomado pelo alaranjado do pôr do sol. Essa cena carrega tudo o que Cuba me revelou: a beleza que se entrelaça a dureza, a vida que pulsa apesar das faltas. É política porque a sobrevivência diária é, em si, um ato político; é poesia porque o povo cubano tem a capacidade quase mágica de extrair alegria do improvável; e é contradição porque nada ali é simples, tudo é atravessado por camadas de histórias, separações e resistências. Escolho essa cena porque foi num pôr de sol que entendi que Cuba não cabe numa frase pronta ou numa ideologia. Ela se encarna nas pessoas, nos gestos pequenos, no som do mar batendo contra o muro e devolvendo, de alguma forma, a força de quem nunca deixou de resistir. O Malecón é bem a expressão disso: a água bate forte, por vezes o encobre, e ele persevera, gigante. Foi numa tarde assim que me dei conta que tudo o que havia descoberto e vivido por ali era grandioso demais e eu precisava organizar dentro de mim, sobretudo. E foi assim que nasceu Indomável.