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domingo, 15 de junho de 2025

.: Entrevista com Jacyr Pasternak e a receita de um bom thriller


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com.. Foto: divulgação

Autor de romances que flertam com o policial e com o sarcasmo, o médico infectologista Jacyr Pasternak chega ao terceiro livro de ficção com "Receita Fatal", publicado pela editora Labrador, um thriller mordaz que transforma tragédia em provocação. Com 35 anos de atuação no Hospital Albert Einstein e uma bagagem que inclui pandemias reais como HIV e Covid-19, Pasternak mira agora outra ameaça silenciosa: a ignorância travestida de tratamento. “Foi uma terapia mental, sim, devido ao que provocou as mortes — mais uma vez uma denúncia”, confessa o autor sobre a família exterminada nas páginas do novo livro.

Na entrevista exclusiva ao Resenhando.com, ele não poupa ironia ao falar da medicina alternativa, que, na obra, é praticamente uma personagem vilã. E propõe um remédio direto: “A melhor terapia para as ditas medicinas alternativas, na verdade, são duas: a educação e as noções de ciência”. Com personagens de nomes quase teatrais e diálogos que provocam riso e incômodo, Pasternak constrói um enredo que expõe "o charlatanismo desabrido de profissionais inescrupulosos”, como define Heidi Strecker na quarta capa da obra.

E se o sarcasmo fosse mesmo uma vacina contra a desinformação? “Sarcasmo e ironia são as coisas que mais incomodam os praticantes de charlatanismo em todos os campos”, afirma o autor, que vê na literatura uma forma de resistência: “Estamos em plena septicemia cultural crônica, com piora importante desde que as redes sociais formaram experts em tudo o que nada sabem com um mínimo de profundidade”. Nesta entrevista, Jacyr Pasternak prova que ficção bem escrita pode ser, sim, um antídoto poderoso. Apoie o portal Resenhando.com e compre o livro "Receita Fatal" neste link.

Resenhando.com - Em um país onde reality shows fazem mais sucesso do que livros, o senhor acredita que o público está preparado para digerir um thriller que mistura pseudociência, sarcasmo e cadáveres da elite paulistana?
Jacyr Pasternak - Imagino que o povo que se diverte com os reality shows não é exatamente o povo que consome literatura policial. Acredito que temos um número suficiente de leitores de literatura policial para procurar um livro que mistura o whodunit, quem fez a maldade, com sarcasmo, um pouco de humor e uma espécie de denúncia de pseudociência.


Resenhando.com - O senhor já viu muita coisa bizarra na medicina real. Mas... sinceramente: qual foi a pseudoterapia mais absurda que ouviu alguém defender com convicção?
Jacyr Pasternak - Já vi tantas...mas, sinceramente, a defesa do uso de cloroquina e ivermectina para tratar Covid 19 é forte candidata a mais fatal de todas, e defendida por convicção por expoentes da direita, incluindo direita médica - que não é pequena.


Resenhando.com - O senhor já matou uma família inteira - pelo menos no papel. Foi mais prazeroso como escritor ou mais terapêutico como médico?
Jacyr Pasternak - Olha…prazeroso não é bem o termo para matar uma família, (risos)... Mas foi uma terapia mental, sim, devido ao que provocou as mortes - mais uma vez uma denúncia.


Resenhando.com - Em "Receita Fatal", a medicina alternativa é praticamente uma personagem vilã. Se pudesse, o senhor receitaria qual antídoto à sociedade para esse culto às curas mágicas?
Jacyr Pasternak - A melhor terapia para as ditas medicinas alternativas, na verdade, são duas: a educação e as noções de ciência. Se a pessoa tiver essas noções, certamente não cairá como um pato nas medicinas ditas alternativas ou em "curas mágicas", ou nas mãos de um "João de Deus". O que não consigo entender é como pessoas muito bem formadas e ilustradas e ilustres caem nessas "curas mágicas".


Resenhando.com - Os nomes dos personagens têm um quê teatral: Emerenciana, Marisa, Chico que odeia ser chamado de Chico... Existe aí um certo deboche com os arquétipos da nossa sociedade?
Jacyr Pasternak - Não foi inteiramente consciente, mas o deboche, agora que você assinalou, de fato, existe. Achar nomes para personagens não é nada simples. Raymond Chandler, se não estou enganado, usava lista telefônica, isso no tempo em que as listas eram impressas (risos).


Resenhando.com - A ironia é sua seringa narrativa preferida. Em tempos tão sensíveis, o senhor acha que ainda é possível "vacinar" o leitor com sarcasmo?
Jacyr Pasternak - Sarcasmo e ironia são as coisas que mais incomodam os praticantes de charlatanismo em todos os campos. Humor também funciona para mostrar os pés de barro de autoritários, e a medicina alternativa tem este aspecto autoritário de “acredite em mim porque Deus me deu este poder”, ou “porque sou professor doutor, porque a mafia de branco esconde esta sensacional cura, porque me perseguem...”.


Resenhando.com - Considerando que muitos dos seus leitores podem ser pacientes ou colegas, já pensou em oferecer um curso de "literatura profilática"? Quem seria o público-alvo ideal?
Jacyr Pasternak - Existem literaturas profiláticas e corretivas, existe a revista Questão de Ciência, brasileira, que se dedica a isto, existe a revista americana Septic. Tentam, não digo que com grande sucesso. O público-alvo é mais quem está se educando; quem já acha que sabe tudo, provavelmente, é caso perdido...


Resenhando.com - Se o senhor tivesse que diagnosticar a literatura policial brasileira contemporânea, qual seria o parecer clínico?
Jacyr Pasternak - A literatura policial brasileira não é muito ampla, mas tem excelentes escritores, como Rubem Fonseca, Luiz Garcia Roza, Marcos Rey. Há uma dificuldade na literatura policial no Brasil: literatura policial é mais imaginada e praticada em países onde tem polícia que investiga e justiça que funciona, ambas as condições que não são exatamente o que acontece no Brasil, concorda?


Resenhando.com - Se a pseudociência fosse uma bactéria hospitalar, o senhor acha que a literatura ainda poderia ser o antibiótico certo - ou já estamos todos em septicemia cultural?
Jacyr Pasternak - Estamos em plena septicemia cultural crônica, com piora importante desde que as redes sociais formaram experts em tudo o que nada sabem com um mínimo de profundidade.


Resenhando.com - Como médico, o senhor já enfrentou pandemias reais - HIV, Covid-19, gripes letais - mas agora se aventura na ficção para narrar outra praga: a ignorância travestida de tratamento. O que dá mais trabalho, combater um vírus ou desmascarar um charlatão com diploma falso e Instagram "bombado"?
Jacyr Pasternak - Combater um vírus nas fases iniciais de uma pandemia quando ele não é conhecido ou é um mutante, é muito dificil. Mas a ciência acaba por encontrar a solução. Desmascarar um charlatão ou um influencer com zilhões de seguidores é muito mais dificil. O dr. Drauzio Varella “tem tentado”. Veja o que aconteceu, usaram IA para clonar o Drauzio e fazê-lo de menino propaganda de suplementos alimentares que ele denuncia sempre que pode. A criatividade de sacripantas e charlatões é infinita. Só com mais educação de qualidade a sociedade vai conseguir relegar os charlatões com diploma falso e também os charlatões com diploma de verdade a sua ação deletéria. Sumir não vão sumir nunca...

quarta-feira, 11 de junho de 2025

.: Entrevista com Paulo Scott: o poeta entre o desconforto e a estética


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com.. Foto: Morgana Kretzmann

Não é poesia para agradar: é para fisgar. Com essa energia crua e combativa, o escritor Paulo Scott lança pela editora Alfaguara o livro de poemas "Sanduíche de Anzóis". Ao revisitar 25 anos de produção poética, o autor do romance "Marrom e Amarelo" não só costura versos antigos - ele os rasga, remonta, corta fora o que já não sangra. O resultado? Um corpo novo, feito de amores esfolados, revoltas sem anestesia e loucura como linguagem-mãe.

Neste livro-reinvenção, Scott transforma o tempo em lâmina e a memória em anzol. Esqueça o lirismo gourmet de redes sociais: a poesia dele é músculo em espasmo, verbo que lateja, um soco lírico na caretice dos algoritmos. Entre versos indomáveis e um manifesto contra o novo fascismo, Scott reafirma que escrever no Brasil é - ainda - uma forma de risco, de raiva, de ternura. Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, o autor fala sobre o prazer de cuspir versos que não servem mais, a recusa às anestesias do mercado e por que prefere o desconforto à doçura. Prepare-se: esta conversa não é para os que esperam vinho chileno - aqui, a poesia vem quente e crua para fisgar. Apoie o Resenhando.com e compre a coletânea "Sanduíche de Anzóis", de Paulo Scott, neste link.


Resenhando.com - Você revisitou, reescreveu e reinventou poemas seus com mais de 25 anos. O que Paulo Scott cortou de si ao cortar os próprios versos? O que ficou indigesto nesse "Sanduíche de Anzóis" que você precisou cuspir fora?
Paulo Scott - 
Todo processo de releitura implica reinvenção. Essa reinvenção demanda riscos. Penso que admitir a possibilidade desse risco, considerando que talvez eu tenha me tornado um leitor melhor, mais acurado, mais sereno, é estabelecer uma tentativa de nova busca pelo simples, pela simplicidade, que é tão determinante na literatura e na arte em geral. Há uma acomodação de ritmo, um adensamento, um assentamento, que só a distância do tempo (o passar do tempo) poderia trazer. A supressão dos títulos, inclusive dos poemas inéditos, fez parte desse processo de corte – acredito na afetividade e na eficácia do cortar em relação ao texto, o tal lapidar, é diferente em relação à minha pessoa (e à minha persona de poeta também), com relação a ela há soma, sobretudo em relação à consciência do tempo que passou.


Resenhando.com - Em tempos de algoritmos suaves e poesia pasteurizada no Instagram, sua linguagem parece um soco de verbos crus. É possível fisgar leitores de hoje sem sedá-los primeiro com doçura?
Paulo Scott - A doçura traz a vertigem de curta duração, depois ela calcifica (é como um enigma que se resolve com facilidade). O que desacomoda está sempre em movimento; mesmo que diminua em grau de desconforto, está sempre acenando para a possibilidade de desafio. Penso que no “Luz dos Monstros” (Editora Aboio, 2023) cheguei a um lugar, a uma radicalidade, da qual não posso recuar. Mesmo que se reconheça no primeiro livro deste “Sanduíche de Anzóis”, o do amor, alguma acessibilidade maior, agrado, eu imagino que a estranheza, o martelar e o ruído estão sempre lá. Se eu abrir mão dessa dicção para me tornar mais palatável, mais, digamos, “vinho chileno” (aquele que nunca decepciona), estarei abrindo mão da própria poesia (da forma como leio e aprendo com a poesia buscando sempre sua incerteza). A liberdade que a poesia traz é imensa porque ela não demanda compreensão, ela demanda invenção, demanda leitura criativa (muito mais do que escrita criativa), penso que aí está a magia, aí está a potência, aí está o segredo. Faço como faço porque é o modo que possibilita o meu fazer, é como sei fazer; contornar a doçura fugir das referências, inclusive de mim, do verso que antecedeu o verso que está sendo escrito dentro próprio poema, é minha maneira de respirar, minha singularidade, minha voz única. Com o tempo a gente percebe que essa voz única é só o que podemos ambicionar, ela é um lugar, ele significa, mas, além de ser mais um grão de areia na imensa linha da tradição literária, não há nada de especial nele.


Resenhando.com - Você fala de amor, loucura e revolta como se fossem irmãs siamesas. Qual dessas três, se tivesse que amputar, deixaria você artisticamente amputado?
Paulo Scott - A loucura. Ela é o útero da minha linguagem, ela é a fonte, o duvidar que faz com que tudo se mova.


Resenhando.com - Em “Marrom e Amarelo”, você expõe feridas raciais do Brasil sem anestesia. Na sua poesia, que anestesia você deliberadamente se recusa a usar - mesmo sabendo que poderia facilitar a publicação ou aceitação?
Paulo Scott - Desprezar a inteligência e a criatividade de quem está lendo é formular anestesias que podem produzir resultados diferentes afetando, inclusive, a aceitabilidade comercial do livro (embora, como sabemos, não haja fórmula garantida). Tento não pegar (não ambicionar) esse atalho - meus romances não abrem mão do oculto, da entrelinha, da inquietude porque é minha forma de conseguir narrar. O que posso dizer é: minha prosa é assim porque minha poesia (minha respiração na poesia) é assim. Minha coragem de prosador vem da minha persona poeta, da sua loucura (do seu caos) que, embora menos prolifica, só aumenta em intensidade, vem da minha respiração de poeta, da segurança que, por sorte, consigo encontrar nela. Respondendo à pergunta de maneira mais objetiva: minha poesia é uma fuga, uma construção de exílio, de estrangeiridade e, nesse processo, há um atrito essencial e uma aspereza essencial que ditam o próprio fazer; manter esse movimento talvez seja meu modo de não ceder à tentação das anestesias.


Resenhando.com - Reescrever poemas antigos é como rever fotos ou reabrir cartas antigas? Você teve medo de reencontrar um Paulo Scott que já não é mais você?
Paulo Scott - Não tive medo. Sinto-me o mesmo adolescente tímido e gago buscando mais consistência nesta vida que se faz pela linguagem (e pela leitura dessa linguagem). Fotos e cartas são diferentes, poesia para mim é sempre aflição da busca, ela não cessa, encadeia e me faz, sem hiatos, perceber aqueles que já fui, dependo deles para ser o que sou hoje.


Resenhando.com - Se sua poesia é uma luta corpo a corpo com a linguagem, quem geralmente vence: o Paulo que escreve ou o verso que escapa?
Paulo Scott - Ótima pergunta. O verso que escapa sempre vence. Nele está a luz que instiga o meu perseguir.


Resenhando.com - Você já recebeu conselhos para “suavizar a escrita” ou “alinhar o tom ao mercado”? E, se sim, o que você respondeu - mentalmente ou em voz alta?
Paulo Scott - Sim, muitas vezes. Respondo em voz alta: é só assim que eu sei fazer.


Resenhando.com - Há um manifesto contra o novo fascismo dentro do livro. Como poeta, qual o risco maior: ser panfletário demais ou cúmplice por omissão?
Paulo Scott - Tentar ou arriscar, mesmo que haja falha, é o que importa. O engajamento está na leitura (ela determinará a importância de um texto literário). Não acredito em quem produz escoltado pela jura do engajamento, já justificando e explicando a própria relevância. Dizer que é um manifesto não me extrai da insignificância, não é mais do que uma simples nomeação. Registro que é manifesto porque um determinado tempo e um determinado Paulo Scott nos solicitou. Achei que valia a pena constar como um esforço nascido em um tempo de desespero (tendo por cenário a pandemia e sua incontornável ambiência apocalíptica) parte do grande desespero geral que é, em si, a existência.


Resenhando.com - Você se considera um poeta militante, um militante poeta ou um cara que escreve poesia tentando sobreviver ao país - e a si mesmo?
Paulo Scott - Sou poeta para abraçar da melhor maneira possível a solidão. Não penso em sobrevivência, penso em me aperceber da vida, penso, como já disse, em leitura, em ler mais e melhor o que nos determina e por vezes, nos permite alguma felicidade.


Resenhando.com - Se “Sanduíche de Anzóis” fisga, qual tipo de leitor você mais deseja capturar: o distraído, o indignado ou o que nunca se deixou morder por verso algum?
Paulo Scott - Não penso em quem me encontrará, penso em inscrever, do meu jeito, o que encontrei e repassar. E, nesse sentido, somar-me a uma ética que ainda não conseguimos definir, precisar.


Resenhando.com - O Paulo Scott dos versos é o mesmo que o da prosa e o do dia a dia? O que os aproxima e o que os diferencia?
Paulo Scott - Bom isso de focar nos versos. Mais do que os poemas, penso que existo nos versos, cada um deles é uma companhia irreplicada, um assentamento, um espelho que me dirá, sobretudo, para mim mesmo. Neles sou o tempo, o meu tempo, que não submete ao tempo cristão, ao tempo mercantil, ao tempo das expectativas, dos julgamentos (e, nos julgamentos, das condenações que na nossa maneira de viver o supremo deus capitalismo e suas eternas enfermidades, a atualidade de sua luz dos monstros, nos impõe).

terça-feira, 10 de junho de 2025

.: Literatura no volume zero: o universo íntimo de Bruno Inácio em entrevista


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação.

No livro de contos "De Repente Nenhum Som", o escritor Bruno Inácio transforma o silêncio em linguagem, em narrativa, em personagens. Colaborador de veículos literários importantes, como o Jornal Rascunho e o site São Paulo Review, o autor recorre ao não dito, à pausa, à ausência – e justamente aí encontra matéria-prima para narrativas que ecoam no lado mais profundo de algum leitor atento. Como ele mesmo diz: “Tem tudo aquilo que só cabe no silêncio” . Nesta entrevista exclusiva concedida ao portal Resenhando.com, Bruno revela como descobriu, quase sem perceber, que o silêncio era seu tema mais íntimo e recorrente - nos papéis de leitor e de escritor.

Com uma escrita concisa e emocionalmente densa, Bruno Inácio compartilha o processo de lapidar frases como quem escolhe palavras para preencher vazios. “Quando compreendi que prefiro escrever frases curtas, foi libertador”, afirma. E é nesse equilíbrio entre delicadeza e brutalidade, cotidiano e introspecção, que ele constrói personagens que, embora comuns, “dialogam com o silêncio” e tornam-se espelhos de quem o lê. Esta conversa é um convite para mergulhar não só na obra de Bruno Inácio, mas também na poética silenciosa que pulsa nas entrelinhas de um texto bem escrito.  Compre "De Repente Nenhum Som" neste link.


"De Repente Nenhum Som" apresenta o silêncio não como ausência, mas como protagonista. Em que momento da sua trajetória como escritor você percebeu que o silêncio podia ser um elemento narrativo tão potente?
Bruno Inácio - Isso aconteceu de forma bastante natural, na verdade. Escrevi um dos contos do livro, “Céu de Ninguém”, em 2018. Mais tarde, em 2022, durante uma oficina de criação literária com o escritor Carlos Eduardo Pereira, surgiram outras duas narrativas: “Alô, Alô, Freguesia” e “Seis Minutos de Análise no Novo Divã”. Percebi, então, que os três contos dialogavam entre si, já que abordavam o silêncio e as relações familiares. Foi quando me dei conta que aqueles eram os temas que mais me interessavam no momento - e não só como escritor, mas também como leitor. Sem perceber isso de forma consciente, eu já estava mergulhado em leituras que abordavam o silêncio há algum tempo.

"De Repente Nenhum Som" mergulha na solidão, nas pausas da vida e no que não é dito. Como você equilibra a escrita econômica com a profundidade emocional que seus contos transmitem?
Bruno Inácio - Quando compreendi que prefiro escrever frases curtas, foi libertador. Como se, enfim, eu estivesse mais próximo de encontrar o meu estilo literário e meus temas. No entanto, ao mesmo tempo descobri que uma palavra mal escolhida pode destruir um parágrafo inteiro. A partir daí, passei a procurar as palavras certas para cada cena, sentimento, ação e, principalmente, para cada silêncio. Não digo palavra perfeita, porque sei que ainda sou alguém que está começando sua jornada na literatura, em meio a erros e acertos. Mas confesso que gastei um bom tempo reescrevendo os contos de “De Repente Nenhum Som” para chegar a esse resultado que você apontou: o equilíbrio entre a escrita econômica e a profundidade emocional.


Você escolheu personagens comuns, mas com dilemas complexos e profundos. Como foi o processo de criação dessas figuras? Houve alguma preocupação em torná-las espelhos do leitor?
Bruno Inácio - Gosto muito do drama presente no cotidiano, dos dilemas e anseios das pessoas comuns. Algumas dessas personagens se baseiam em familiares, outras são projeções de traumas e desejos. A minha maior preocupação no momento de pensar sobre essas pessoas foi tentar entender como cada uma se relacionava com o silêncio. Torná-las espelhos do leitor não foi algo exatamente planejado, mas a literatura tende a se encarregar disso, de uma forma ou de outra.

Um dos contos mais marcantes, "Céu de Ninguém", tem origem em uma experiência real. Como a vivência pessoal impacta sua ficção? Existe um limite entre o vivido e o inventado para você?Bruno Inácio - Uma vez minha psicanalista disse algo que nunca esqueci: toda memória é ficcional. Nesse sentido, sei que os acontecimentos reais que inspiraram alguns dos contos de “De Repente Nenhum Som” já passaram por certos filtros, uma vez que correspondem às minhas versões dos fatos e, consequentemente, à maneira que essas memórias foram construídas e reconstruídas ao longo dos anos. Ainda assim, gosto de explorar experiências autobiográficas na ficção, porque é um jeito de olhar para o passado com novos olhos e, de certa forma, criar novas lembranças.


O livro alterna momentos de brutalidade e de delicadeza com naturalidade. Essa dualidade surgiu de forma intuitiva ou foi construída intencionalmente ao longo dos contos?
Bruno Inácio - Acredito que isso tenha relação com meu interesse pelo cotidiano. O dia a dia é repleto de delicadeza e brutalidade, ainda que não pensemos tanto sobre isso. Eu me considero uma pessoa muito sensível, atenta aos detalhes que justificam a existência. Mas, ao mesmo tempo, sou um pessimista e às vezes me vejo sem grandes perspectivas. Como esse é meu trabalho mais pessoal até agora, essa dicotomia apareceu nos contos de forma bem intuitiva.

A estrutura minimalista dos contos chama atenção: poucas palavras, mas muito significado. Como você chegou a essa forma de escrever? Foi uma escolha estética, técnica ou emocional?
Bruno Inácio - Devo muito ao escritor Marcelino Freire. Antes de fazer sua oficina de criação literária, eu tentava me forçar a escrever frases longas e transitar por diversos gêneros literários. No decorrer das aulas, percebi que era muito mais lógico tentar aprimorar o que eu já sabia minimante fazer, ao invés de tentar “fazer tudo”’. Depois que reconheci minha escrita como concisa, escrever se tornou algo muito mais natural.


A solidão, em suas várias formas, é um tema central no livro. Você acredita que o silêncio e o isolamento dizem mais sobre o nosso tempo do que as falas e os ruídos diários?
Bruno Inácio - Há uma pressa em nossos tempos que me angustia. Tudo é urgente no trabalho, nas redes sociais e nas nossas relações. Isso leva ao isolamento e à interpretação superficial de fatos complexos. Às vezes, isso vem acompanhado de silêncio. Mas o silêncio também pode ser afeto, aconchego e conforto. Seja como for, acredito que ruídos e silêncios nos afetam de formas diferentes e ambos dizem muito sobre os nossos tempos.


A recepção crítica foi bastante positiva, com elogios de nomes importantes da literatura brasileira. Como você lida com esse reconhecimento e que responsabilidade sente ao ser apontado como uma das vozes promissoras da nova literatura?
Bruno Inácio - Ainda parece surreal tudo isso que tem acontecido com o livro. É uma obra de uma editora independente, escrita por um autor iniciante e publicada fora do eixo Rio-São Paulo. Então, sinceramente, não esperava que “De Repente Nenhum Som” chegaria a ser elogiado pelos principais veículos literários do país e por alguns dos mais importantes nomes da literatura brasileira contemporânea. Ser lido por pessoas que são referências para mim é algo com que sempre sonhei. Confesso que ainda não aprendi a lidar com naturalidade com isso de ser apontado como um novo talento da literatura brasileira. Sempre que leio algum comentário nesse sentido, volto a ser aquela criança tímida que não sabia o que responder quando recebia parabéns no seu aniversário.


Como colaborador de veículos como o Jornal Rascunho e a São Paulo Review, você acompanha a cena literária de perto. Onde você posicionaria sua obra dentro do panorama atual da literatura brasileira?
Bruno Inácio - A literatura brasileira vive um ótimo momento, tanto em forma como em conteúdo. Todos os dias conheço autores e autoras que têm feito um trabalho de qualidade junto a grandes, médias e pequenas editoras, além dos que optam pela autopublicação. Estar no meio de tanta gente talentosa e fazer parte de uma geração que tem ficcionistas como Jarid Arraes, Monique Malcher, Andreas Chamorro, Carina Bacelar, Bethânia Pires Amaro, Vanessa Passos, Julia Barandier, Giovana Proença, Mateus Baldi, Paulo Henrique Passos, Marcela Fassy, Camila Maccari, Pedro Jucá, Mariana Basílio e Febraro de Oliveira é um privilégio e uma alegria.


Para quem ainda não leu "De Repente Nenhum Som", que tipo de experiência você espera provocar? O que gostaria que ficasse ecoando no leitor depois da última página?
Bruno Inácio - Tenho usado uma frase do livro nas dedicatórias desde que a obra foi lançada: tem tudo aquilo que só cabe no silêncio. Acho que é o que resume bem o tipo de experiência que quero provocar em leitores e leitoras. Essa percepção de que o silêncio é complexo, repleto de nuances e, às vezes, a síntese de toda uma dinâmica familiar.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

.: A voz contra a fome: Manolo Rey e a missão mais impossível de todas


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com. Foto: divulgação.

Com mais de 40 anos de carreira, Manolo Rey é uma das vozes mais reconhecíveis do audiovisual brasileiro. Diretor de dublagem e dublador de personagens icônicos como Sonic, Will Smith em "Um Maluco no Pedaço", Tobey Maguire em "Homem-Aranha" e Robin nas animações da DC, ele coleciona trabalhos que marcaram gerações. Atualmente, ele assina novamente a direção de dublagem da superprodução "Missão: Impossível - O Acerto Final", estrelada por Tom Cruise e em cartaz na rede Cineflix e nos cinemas brasileiros. "Produções dessa magnitude exigem um alto nível de atenção aos detalhes e comprometimento com a qualidade", afirma o diretor, que também destaca a importância da fidelidade emocional na adaptação brasileira.

Além do profissional técnico e versátil, Manolo Rey revela um lado sensível, divertido e engajado. Quando questionado sobre qual vilão derrotaria com sua voz, respondeu sem hesitar: “A fome, com certeza, é o maior vilão do mundo real. E se minha voz fosse tão poderosa, eu a usaria para acabar com a fome”. Nesta entrevista exclusiva, ele compartilha bastidores emocionantes da dublagem, fala sobre os aprendizados que cada personagem lhe trouxe e até confessa em qual universo fictício gostaria de viver. Um mergulho na voz por trás de tantos heróis, comediantes e figuras inesquecíveis.


Resenhando.com - Se a sua voz fosse um superpoder, qual vilão você derrotaria com ela - e como?
Manolo Rey -
A fome, com certeza, é o maior vilão do mundo real.  E se minha voz pudesse fosse tão poderosa, eu a usaria para acabar com a fome.


Resenhando.com - Existe alguma cena ou fala que, ao dublar, você teve que parar tudo porque se emocionou ou riu demais? Pode nos contar essa história?
Manolo Rey - Várias.  “Anjos da Vida: mas Bravos que o Mar” (Ashton Kutcher), chorei muito. “Spin City”(Michael J. Fox), chorei quando ele apareceu com (a doença de) Parkinson.  “Um Maluco no Pedaço”(Will Smith), chorei muito na cena com o pai e o tio Phil.


Resenhando.com - Entre tantos personagens que você já dublou, qual é o que lembra com mais carinho?
Manolo Rey - Todos.  Tive a sorte de, ao longo da carreira, dublar muitos personagens icônicos, e que atravessaram gerações.  Citar apenas um ou dois, seria desonesto e injusto de minha parte.

Resenhando.com - Algum desses personagens influenciou suas escolhas pessoais ou até seu jeito de ver a vida?
Manolo Rey - Acho que em cada um deles tive aprendizados importantes.  Seja em situações engraçadas, em situações sérias, sempre há um aprendizado.


Resenhando.com - Você viveu muitas vidas através de vozes diferentes. Em qual cotidiano desses personagens você gostaria de viver?
Manolo Rey - Com certeza no Mundo dos Looney Tunes.  É tudo muito simples, divertido, e sempre tem solução para tudo.


Resenhando.com - Nos bastidores da dublagem, há silêncio, fones de ouvido e precisão técnica. Mas qual foi o momento mais "rock'n'roll" que você já vivenciou em estúdio?
Manolo Rey - Engana-se quem pensa que há calmaria.  Quando dirijo, atormento os atores, propondo loucuras e fazendo algazarra, e quando dublo entro nas loucuras e algazarras dos diretores.


Resenhando.com - Que ator é muito difícil de dublar e, por outro lado, qual é o mais fácil de realizar a dublagem?
Manolo Rey - Não há essa medida específica.  A meta de toda dublagem é passar verdade com a voz, fazer o público esquecer que é uma produção dublada, acreditar que a voz é do personagem realmente.


Resenhando.com - Você é um dos poucos que já deu voz a heróis, comediantes, românticos e rebeldes. Mas e o Manolo? Que personagem você ainda não teve coragem de ser - nem no microfone, nem fora dele?
Manolo Rey - Jamais seria desonesto e covarde.  Não combina com a minha pessoa.

.: “Essa injustiça tem que ser reparada!”: Anna Toledo e a revolução do palco


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com. Foto: Ale Catan.

Anna Toledo é muito mais do que a dramaturga por trás do espetáculo “Cenas da Menopausa” - ela é uma artista multifacetada, cujo talento transborda dos palcos para as letras e das canções para as emoções humanas. Com uma carreira que atravessa três décadas, ela construiu uma trajetória rara, que une a força do teatro, a delicadeza da música e o olhar sensível sobre temas muitas vezes negligenciados, como a maturidade feminina. Com únicas apresentações em Curitiba, nos dias 6, 7 e 8 de junho no Teatro Guaíra, “Cenas da Menopausa” segue para São Paulo, onde fica em cartaz de 12 de junho a 17 de agosto no Teatro Claro.

Nascida em Curitiba, Anna já brilhou como atriz, cantora lírica, compositora e como autora que tem o dom de transformar experiências pessoais e sociais em narrativas que comovem. O trabalho dela é marcado por um compromisso honesto e humor inteligente, capaz de confrontar tabus sem perder a leveza.

“A menopausa - essa fase tão pouco falada - não é um fim, mas um renascimento”, costuma dizer Anna, cuja parceria com Claudia Raia, com quem já trabalhou no musical sobre Tarsila do Amaral, já rendeu peças que desafiam estigmas e celebram a vida. Em “Cenas da Menopausa”, ela não apenas escreve. Também convida o público a rir, refletir e, acima de tudo, a se reconhecer. Anna Toledo é uma voz essencial do teatro contemporâneo brasileiro, que utiliza sua arte para abrir diálogos necessários e provocar transformações reais, dentro e fora dos palcos.


Resenhando.com - Anna, se a menopausa fosse uma personagem de teatro, que arquétipo ela representaria?
Anna Toledo -
Até hoje, a menopausa foi representada no nosso imaginário pela figura das bruxas e madrastas, mulheres amarguradas pela perda da juventude, que descontam sua frustração em jovens princesas ou pobres filhotinhos de dálmatas (risos) - ou então por aquela figura da mulher surtada se abanando freneticamente. Só que na vida real, quando a menopausa acontece, a gente se sente o próprio cachorrinho perdido e indefeso, sem saber o que está acontecendo! Essa injustiça tem que ser reparada! (Risos)


Resenhando.com - Como você, enquanto autora de "Cenas da Menopausa", percebeu que o humor poderia ser uma arma poderosa contra o estigma social?
Anna Toledo - 
A menopausa pode ser um momento muito solitário. Por sentir vergonha e confusão sobre os sintomas, muitas mulheres afastam as pessoas próximas de si. Mas quando essas dores são compartilhadas, elas se tornam mais leves e podem, inclusive, virar algo para rir junto. É aquilo que o Suassuna já dizia: “o que é ruim de viver é bom de contar”.


Resenhando.com - Você já pensou em transformar as fases do luto, que estruturam a peça, em uma trilha sonora original? Como cada fase poderia soar, se pensássemos nessas fases como estações do ano?
Anna Toledo - Gente, que viagem (risos). Taí uma boa ideia para um spin-off da peça!


Resenhando.com - Seu trabalho transita entre a dramaturgia e a música. Como a sua formação em canto lírico e jazz influencia a forma como você constrói os diálogos e o ritmo das suas peças?
Anna Toledo - 
É uma pergunta interessante. A minha trajetória deu muitas voltas, né? Acredito que a maior influência dessa formação musical na minha dramaturgia se aplica à escrita para musicais, porque eu penso a música sempre como parte da narrativa. Mas o jazz treina a escuta, o que talvez seja bom para a vida, de modo geral.


Resenhando.com - Em uma sociedade que ainda silencia temas como a menopausa, qual você acredita ser o impacto de expor esse tema no palco em termos de transformação social e pessoal?
Anna Toledo - 
Na temporada da peça em Portugal, eu pude ver que as mulheres iam assistir com as amigas e depois voltavam com os maridos. Um destes maridos falou comigo, depois da peça: “agora eu entendi que não era nada pessoal!” A peça tem essa ambição de abrir uma gaveta de assuntos guardados e arejar a comunicação, além de compartilhar informações sobre sintomas que muitas vezes são confundidos com outras doenças, como depressão e ansiedade.


Resenhando.com - Se "Cenas da Menopausa" fosse adaptada para uma linguagem não-verbal, como dança ou pantomima, quais elementos essenciais da experiência feminina você tentaria preservar? Por quê?
Anna Toledo - 
No ano passado tive a oportunidade de roteirizar um espetáculo de teatro-dança (ou dança-teatro) sobre a idade na dança, chamado "A Última das Bailarinas". Eram três bailarinas de diferentes idades dançando a mesma música. Era muito bonito, porque a gente falava de qualidade de movimento como uma metáfora para a qualidade da experiência de vida, em todas as idades. E esta busca pela qualidade da experiência também é o que emerge no "Cenas da Menopausa".


Resenhando.com - Você se vê, como autora, mais como uma cronista do tempo e das transformações sociais, ou como uma provocadora que desafia tabus com sua arte?
Anna Toledo - 
Eu bem que queria ser uma provocadora que desafia tabus, mas minha maior habilidade é enxergar as histórias que surgem na minha frente e imaginar um jeito legal de contá-las.

Resenhando.com - Qual personagem de "Cenas da Menopausa" mais a surpreendeu durante a criação? 
Anna Toledo - 
A Laurinha foi a primeira personagem que escrevi. Ela é uma mulher que está em negação absoluta em relação à menopausa e tudo que envolve o seu próprio envelhecimento e isso pode ser muito engraçado quando você vê de fora. No processo de criação, a personagem foi se revelando e me dando munição para escrever uma cena hilária, que virou uma das minhas favoritas na peça.


Resenhando.com - Na sua trajetória, qual foi o papel mais desafiador que você já interpretou - no palco ou como dramaturga - e como ele dialoga com a maturidade que a menopausa simboliza?
Anna Toledo - 
Tive alguns papéis muito especiais, que guardo com carinho imenso e saudade. A Fraulein Schneider, de "Cabaret", ou a Luzita, de "Vingança", a Mãe de "Lembro Todo Dia de Você", a cantora Alice Rae em "Chet Baker, Apenas Um Sopro"… Mas não sei dizer qual foi o mais desafiador, porque cada um trouxe um desafio diferente. Todas são mulheres maduras, complexas, interessantes, com um lado sombrio tão grande quanto a sua luz. Fui muito feliz vivendo estas personagens.


Se você pudesse escrever um espetáculo sobre um tema inesperado que ainda não explorou, mas sente que tem uma urgência pessoal, qual seria?
Anna Toledo - 
Tenho muita vontade de falar sobre o tempo e as múltiplas percepções a seu respeito. Se o Tempo me permitir, o farei.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

.: O drama da liberdade moderna na democracia da Era do Espetáculo


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com

No célebre discurso de 1819, Benjamin Constant diferenciou a liberdade dos antigos - baseada na participação direta na vida política - da liberdade dos modernos, centrada na proteção dos direitos individuais. Hoje, no entanto, vive-se uma metamorfose desse conceito: a liberdade moderna convive com a passividade eleitoral, o culto à opinião alheia nas redes sociais e atitudes que distorcem o próprio sentido de democracia. Esta reflexão pretende discutir como a noção de liberdade evoluiu, como ela se manifesta nas democracias atuais e como é, por vezes, distorcida por práticas e discursos autoritários travestidos de reivindicações legítimas.

Benjamin Constant argumentava que, nas democracias antigas, como em Atenas, a liberdade significava a participação ativa do cidadão na política, enquanto os modernos, em sociedades complexas e populosas, valorizam a autonomia privada e os direitos civis. Essa distinção se reflete nos regimes democráticos atuais, nos quais poucos cidadãos participam efetivamente além do voto. A democracia moderna pressupõe uma estrutura institucional estável - com divisão de poderes, eleições periódicas e garantias constitucionais -, mas que não impede o crescimento da apatia política e da alienação digital. Ao mesmo tempo, surgem novos desafios: a liberdade de expressão colide com o controle algorítmico e a cultura do like, e a intimidade é negociada em troca de aceitação e visibilidade.

Esse novo tipo de “prisão livre” revela um paradoxo: o indivíduo moderno, embora dotado de direitos civis, parece cada vez mais condicionado pela necessidade de aprovação externa e pela lógica das plataformas digitais. O romance "1984", de George Orwell, retrata uma sociedade dominada pela vigilância total do Estado. Hoje, vivemos uma forma invertida desse cenário: a vigilância é voluntária, e os cidadãos se expõem deliberadamente nas redes. A chamada “sociedade do espetáculo”, como denunciou Guy Debord, transformou a realidade em imagem, e a experiência em performance pública. Os reality shows como o "Big Brother Brasil" são o ápice desse modelo: desconhecidos e até famosos abrem mão da privacidade em troca de fama e entretenimento, e milhões consomem essas intimidades como forma de lazer. Nesse contexto, a liberdade se torna uma moeda de troca no mercado da atenção, e o escândalo, uma estratégia de marketing e visibilidade.

Essa alienação enfraquece a virtude democrática da responsabilidade, permitindo que cidadãos confundam liberdade com impunidade. Exemplo disso são as ações de vandalismo durante os atentados de 8 de janeiro de 2023, em Brasília: os participantes alegaram estar exercendo sua liberdade de expressão, enquanto destruíam instituições que garantem justamente a liberdade de se manifestar a partir do diálogo. A sensação de impunidade e a ausência de culpa - acompanhadas por pedidos absurdos de anistia - revelam como a democracia pode ser corroída por discursos que retalham seus fundamentos. A “sociedade do escândalo” se alimenta da indignação instantânea e da comoção superficial, esvaziando o debate público e normalizando atos extremistas como se fossem manifestações legítimas de liberdade.

Dessa forma, a liberdade dos modernos, se por um lado ampliou direitos individuais e privacidade, por outro exige uma vigilância ética constante. A democracia não se resume ao direito de votar, nem a uma aparência de liberdade digital. Exige consciência crítica, participação ativa e compromisso com o bem coletivo. Em tempos de superficialidade virtual e extremismos travestidos de liberdade, é urgente retomar o sentido profundo da democracia: garantir que sejamos, de fato, livres para viver com dignidade, sem abrir mão da responsabilidade que essa liberdade exige. Porque não há liberdade sem consciência ou consistência - e muito menos não existe democracia sem pessoas dispostas a defendê-la.

terça-feira, 27 de maio de 2025

.: Crítica: documentário "Ritas" é um retrato amoroso e rebelde de uma lenda


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com

Dirigido por Oswaldo Santana e codirigido por Karen Harley, o documentário "Ritas", em cartaz na rede Cineflix e em cinemas de todo o Brasil, é mais do que uma homenagem à Rita Lee: o filme é um retrato com adjetivos antafônicos, já que celebra, de intimista e explosiva a mulher que revolucionou o cenário cultural brasileiro. Longe de seguir fórmulas convencionais, o filme convida o público a uma conversa sensível com a artista e revela camadas raramente expostas da vida pessoal da mulher que quebrou padrões por onde passou.

O maior mérito de "Ritas" está na presença poderosa da própria artista. A narrativa é conduzida pela voz, pensamentos e memórias da cantora, culminando na honraria de apresentar a última entrevista inédita de Rita Lee e passando a ser mais que um documentário, virou um registro histórico ou "o filme da última entrevista de Rita Lee". Mais do que um adeus, essa entrevista é um brinde à vida, pois mostra Rita Lee serena, espirituosa e afirmando estar na melhor fase da vida. Era uma senhora otimista, a exemplo de ser uma mulher para cima ao longo de toda a trajetória.

O documentário é agradabilíssimo de assistir. A montagem afetuosa faz com que a experiência seja tão envolvente que faz com que o espectador não perceba o tempo passar. A trilha sonora com os hits de Rita embala o espectador em uma jornada que mistura o amor pelos animais, o senso de família e o afeto na forma mais genuína – tudo isso vindo de uma artista que nunca se encaixou em padrões e que sempre fez questão de ser politicamente incorreta, mas absolutamente verdadeira na vida e na arte.

Com imagens inéditas do arquivo pessoal da artita e uma cuidadosa curadoria de acervos, "Ritas" apresenta uma Rita doce, irreverente e profunda. É um filme que emociona sem apelar para o melodrama. A força de Rita Lee está ali, não apenas como um nome importante da música brasileira, mas como ser humano inteiro e suas características: frágil, forte, amorosa e livre.

Em meio a tantos documentários que se perdem em cronologias frias, "Ritas" escolhe o caminho mais corajoso: o de fazer sentir. A narrativa aproxima o público da Rita Lee Jones, e as várias facetas dela, e não da persona da midiática, esse é um presente raro. O filme estreou nos cinemas em 22 de maio – data escolhida por Rita como seu "novo aniversário", por ser o dia de Santa Rita de Cássia e agora oficialmente o Dia de Rita Lee na cidade de São Paulo. É uma verdadeira carta de amor da artista ao público. Um registro necessário, emocionante e sonoro. Um retrato fiel e belo de uma mulher que, até o fim, nunca abaixou a cabeça para ninguém.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

.: Crítica: “Lilo & Stitch” tenta reinventar uma roda que já estava inventada


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com

Em cartaz na rede Cineflix e em cinemas de todo o Brasil, o novo live-action da Disney, "Lilo & Stitch", tenta reviver a magia do clássico animado de 2002, mas se perde ao tentar ser mais do que precisava. A produção, dirigido por Dean Fleischer Camp, conta com nomes como Maia Kealoha, Sydney Elizabeth Agudong e Chris Sanders acerta apenas parcialmente ao trazer Stitch à vida com efeitos visuais caprichados - o alienígena azul está muito bem feito e é o ponto alto do filme, fiel ao desenho e cheio de personalidade. Mas, infelizmente, a mesma atenção não foi dada à alma da história: Lilo.

A protagonista, interpretada por Maia Kealoha, carece do carisma e da energia que marcaram a Lilo original. E isso nem é culpa da jovem atriz. Na animação, Lilo era esquisita, otimista e cheia de vida, mesmo em meio à solidão e o vazio causados pela morte dos pais. Já no live-action, ela é reduzida a uma órfã melancólica, definida apenas pelo drama - faltou energia. O roteiro, escrito por Chris K.T. Bright e Mike Van Waes, carrega nas tintas do sofrimento e esquece de inserir as cenas leves, engraçadas e icônicas que eternizaram o filme original na memória dos fãs.

A tentativa de dar mais realismo à trama - como se a história de um alienígena disfarçado de cachorro precisasse de coerência absoluta - resulta em um filme que não se define: ora tenta ser dramático e profundo, ora quer ser infantil e acolhedor. No fim, não cumpre bem nenhuma das intenções. Outro problema é a adição de personagens irrelevantes, como a vizinha que surge sem propósito claro e não contribui para a trama. Se ela era tão próxima da família, onde estava antes, nos momentos críticos? Já Nani e seu namorado, felizmente, funcionam bem - os atores conseguem manter parte do carisma da animação, embora apareçam em poucas cenas marcantes.

O visual do longa-metragem é bonito, solar, e remete a uma boa "Sessão da Tarde" e ao próprio desenho animado. Os efeitos especiais são competentes, mas não salvam a narrativa arrastada e desequilibrada que o filme intencionalmente propõe para provar que mudou algo na animação. A trilha sonora, antes vibrante e memorável, agora se resume a versões acústicas e sem alma que não fazem jus ao espírito original havaiano e à leveza do desenho animado.

O final, que deveria ser o momento de catarse emocional, contradiz os esforços de Nani durante todo o enredo, enfraquecendo ainda mais a construção dessa história que marcou época no filme original. No fim das contas, o live-action parece mais preocupado em adaptar "Lilo & Stitch" ao gosto de um público adulto, esquecendo que seu maior mérito sempre foi falar com crianças - e com o lado infantil de cada um. Uma releitura desnecessária que, infelizmente, não acrescentou nada - nem um frescor, ao clássico moderno que se tornou a franquia animada. Ao tentar reinventar a roda, o filme entrega um drama indeciso e sem o brilho da produção original. O "Lilo & Stitch" de 2002 continua sendo a versão definitiva, mais divertida, mais emocionante e, acima de tudo, mais fiel ao que significa “Ohana”.


segunda-feira, 19 de maio de 2025

.: Crítica: “Missão: Impossível” é ação feita com engenhosidade e coragem


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com

A franquia “Missão: Impossível” sempre foi sinônimo de ação e cenas de tirar o fôlego - e “Missão: Impossível - O Acerto Final”, além de manter essa tradição, leva os filmes de ação a um novo patamar. Tom Cruise, mais uma vez, dá vida ao papel de Ethan Hunt, e ele se entrega de corpo e alma, protagonizando sequências desafiadoras que testam os limites do cinema de ação. Em cartaz na rede Cineflix Cinemas e em cinemas de todo o Brasil a partir do dia 22, a produção surpreende ao explorar um set subaquático, cuja complexidade técnica foi revelada em vídeo divulgado pela Paramount Pictures Brasil. 

A dedicação de Cruise e da equipe para tornar essas cenas possíveis demonstra o compromisso com a autenticidade e o impacto visual. É uma prova de que, na era dos efeitos digitais, ainda há espaço para a ação real feita com engenhosidade e coragem. Dirigido com maestria por Christopher McQuarrie - que também assina a produção ao lado do protagonista - o filme combina tensão, emoção e uma estética. O roteiro se aprofunda em dilemas humanos ao abordar a ideia de que a vida é feita de escolhas, oferecendo ao personagem Ethan Hunt novos contornos dramáticos sem perder o ritmo acelerado que os fãs tanto amam.

O elenco estelar, que conta com nomes como Hayley Atwell, Ving Rhames, Simon Pegg e Angela Bassett, entrega boas performances. A química entre os personagens e a direção segura criam momentos memoráveis, equilibrando cenas de ação com os dilemas emocionais dos protagonistas. Com estreia marcada para 22 de maio, “Missão: Impossível - O Acerto Final” promete ser um grande momento dos cinemas em 2025. Faz tempo que os filmes da série ultrapassaram os limites da sétima arte para colocar o espectador no centro da ação e fazer disso uma experiência. Nesse, que parece ser o capítulo final da franquia de sucesso, não é diferente.

.: Leandro Marçal e o litoral profundo, aquele que não aparece no cartão-postal


No livro, 14 contos são ambientados em ruas, praças e avenidas reconhecíveis de São Vicente e arredores - espaços onde a violência, a desigualdade e a masculinidade tóxica não apenas existem, mas moldam o cotidiano de homens comuns. Foto: divulgação

Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com

Nem todo litoral é feito somente de sol, mar, calor e cartões-postais. Na contramão do imaginário turístico que costuma pintar a Baixada Santista com tons de paraíso, o escritor vicentino Leandro Marçal lança um olhar direto, incômodo e necessário para o lado mais áspero da região. Em "Me Vê Dez Médias", quinto livro dele, há 14 contos ambientados em ruas, praças e avenidas reconhecíveis de São Vicente e arredores - espaços onde a violência, a desigualdade e a masculinidade tóxica não apenas existem, mas moldam o cotidiano de homens comuns. Longe de estereótipos idealizados, Marçal apresenta narrativas que dialogam com o que há de mais contraditório no comportamento masculino e na urbanidade periférica, revelando uma Baixada Santista que nem sempre ganha voz na literatura.

Viabilizado com recursos da Política Nacional Aldir Blanc, o livro é - também - um ato de resistência cultural e uma aposta na potência da escrita independente. Com narradores em primeira pessoa, sem nome, Marçal convida o leitor a caminhar pela mente de personagens cheios de conflitos e vícios sociais, em histórias que misturam incômodo, identificação e reflexão. “Esse livro tem mais o cinza das ruas do que as cores da areia e do mar”, explica o autor - uma frase que poderia, por si só, servir de epígrafe para toda uma literatura que se recusa a dar as costas à favela. O valor de cada exemplar é de R$ 30,00 e os pedidos podem ser feitos no site do autor: www.tireidagaveta.com.br.

Resenhando.com - Seu novo livro, "Me Vê Dez Médias", traz a violência e a brutalidade masculina como fio condutor. Como esse tema emergiu durante o processo de escrita e de que forma ele se entrelaça com o cotidiano da Baixada Santista?
Leandro Marçal - 
É muito comum ver homens médios tentando se provar o tempo todo: "o mais forte", "o mais bravo", "o mais temido", "o mais macho", "o mais pegador". Quem foge desse perfil parece ser visto com um olhar meio torto, de esquisito, de "ihhhh, a lá o cara...". E acho que desde o meu segundo livro tenho trabalhado um pouco essa questão, de homens comuns com comportamentos bem problemáticos, mas naturalizados não só por eles quanto por todo o entorno. Cada vez mais se pensa e se fala nisso, me parece. Mas é como instalassem na gente um software para replicar esses comportamentos, sem parar para pensar nisso, é difícil ser diferente. Neste livro, escolhi narradores homens, sem nome, em primeira pessoa, como se desse a mão ao leitor e à leitora, dizendo: vem cá, vamos passear na cabeça desse cara tão cheio de conflitos e contradições, tão viciado num jeito de ver um mundo, tão cheio de erros e acertos. Em alguns contos, espero que isso cause alguns incômodos. Dito isso: a epígrafe do livro é um trecho da música "Zerovinteum", do Planet Hemp: "É muito fácil falar de coisas tão belas / De frente pro mar, mas de costas pra favela". Essa frase me marca há muito tempo e tem tudo a ver com a nossa região. Tem muita gente escrevendo sobre como a praia é linda, sobre como temos paisagens bonitas. Não tenho muita certeza se há tanta gente escrevendo sobre a hostilidade dessa nossa província, cheia de tantas desigualdades e injustiças quanto todo o Brasil. 

Resenhando.com - A expressão popular que dá título ao livro evoca algo trivial do dia a dia, mas os contos trazem realidades duras. O contraste foi intencional? O que há de simbólico nesse título? 
Leandro Marçal  - 
Escolhi como título uma frase que remete à linguagem da Grande São Vicente (se santistas podem ser bairristas, eu também posso). Essa fala também está em um dos contos, quando um personagem pede seus pães antes de uma cena com alguns tiros. Parece uma frase banal, como a ilustração é bem bonita e traz pãezinhos, mas é como se eu fizesse uma armadilha para colocar os leitores e leitoras dentro de uma gaiola com 14 contos que não são "bonitinhos", mas duros. Como é a Grande São Vicente. 

Resenhando.com - Você menciona que a região não é apenas cenário, mas também protagonista. Como foi o processo de transformar a Baixada Santista em um personagem com voz própria?
Leandro Marçal - 
Quando comecei na literatura, tinha certa resistência a ambientar minhas ficções aqui na província. Achava que pessoas de outros lugares não captariam, não entenderiam, que os nomes de ruas ficariam meio sem sentido. Besteira! Ambientei todas as histórias em locais pelos quais passei, cheguei a fazer pesquisas e checagem de nomes de ruas, praças e avenidas. Não há um único conto sem descrição geográfica conhecida por quem insiste em morar aqui. 

Resenhando.com - Há um certo desencanto nas suas palavras ao falar da Baixada - o “cinza das ruas” parece se sobrepor às “cores da areia e do mar”. Como você acredita que a literatura pode romper com estereótipos turísticos de uma região como a sua?
Leandro Marçal - 
Não sei se é bem um desencanto ou se é uma tentativa de escancarar as desigualdades. Conheço gente que mora na orla de Santos e enxerga a Zona Noroeste, os morros e aquela região da Alemoa como pertencente a outro lugar, a outra cidade. Conheço gente de São Vicente que sente arrepios ao ouvir falar em Vila Margarida ou Área Continental. Não sei se a literatura consegue romper esses estereótipos de "o que vale é a praia", mas se um único leitor entender que o lado da praia não deveria dar as costas ao resto do município, já vai ter valido a pena. 


Resenhando.com - Nos contos, você fala da tentativa constante do homem de se provar, de impor sua força. Como você enxerga essa masculinidade tóxica no contexto das periferias urbanas, especialmente no litoral paulista?
Leandro Marçal - 
Em alguns grupos de amigos, parece que a quinta série nunca acabou. Eu ficaria feliz se essa afirmação fosse referente apenas a piadas e trocadilhos ruins (eu gosto). Nunca morei longe daqui e penso que a nossa região não foge tanto da realidade de outros lugares, onde os caras tentam se provar de diversas formas. Eu acho isso muito ruim porque faz a gente carregar um peso desnecessário. Homem se emociona, tem fraquezas e não tem todas as respostas do mundo. Admitir isso é um bom passo para ser melhor, para mudar nem que seja seu entorno. Só não vale se dizer "desconstruidão" apenas para se promover. Tento ficar longe disso e alerto para que nunca criem expectativas sobre mim, porque nem eu crio. Para quem acha que estou "militando" (para certa gente, esse verbo só não é usado no sentido pejorativo quando se trata da tara por gente fardada, né?), sugiro dar uma olhada nos índices de suicídios entre homens, na expectativa de vida masculina inferior à feminina e nos casos de violências causadas por homens contra mulheres e populações minorizadas diversas. Também sugiro se informar mais. 


Resenhando.com - O livro foi viabilizado com recursos da Política Nacional Aldir Blanc. Qual a importância do incentivo público à cultura, especialmente para escritores independentes que retratam realidades marginalizadas?
Leandro Marçal - 
Sem esse incentivo, eu não teria como publicar o meu livro. Volta e meia, tem alguém reclamando da falta de incentivo à cultura e aos livros no Brasil. Não raro, esse mesmo alguém está nas redes sociais vomitando contra leis como a Rouanet. O setor cultural precisa de políticas públicas de incentivo para ser viabilizado e para os trabalhadores exercerem seu ofício com mais dignidade. Se você acha que falo besteira, lembre-se de que áreas como a automobilística, o agronegócio e indústrias num geral recebem incentivos fiscais inúmeros para se manter em atividade. Como não estou debaixo do guarda-chuva de nenhuma grande editora, esse incentivo me permite publicar um livro sem tirar de onde nem tenho para o meu livro ganhar as ruas. Por meio dele, consegui remunerar dignamente a preparadora Camila Ferreira, o ilustrador Carlos Roque, o diagramador Vinicius Carlos Vieira, o revisor Marcos Teixeira e a gráfica. 

Resenhando.com - Você já transitou por diferentes gêneros - crônicas, ensaios autobiográficos, romance e contos. O que motivou a escolha pelos contos neste projeto específico? Eles ofereceram alguma liberdade narrativa particular?
Leandro Marçal - 
Nesse caso específico, eu escrevi os contos todos para o projeto, eles não estavam escritos anteriormente. Pensei que as histórias variadas me permitiriam abordar temáticas e lugares variados, de um jeito que um romance, por ser uma só história, não daria o espaço para expor tantos lugares. Também a escolha de colocar protagonistas homens, mas sem nome, ajuda colocar os leitores e leitoras em uma sensação de "qualquer cara pode ser esse cara". 


Resenhando.com - Sendo alguém que mora na região a vida toda, como foi o equilíbrio entre a escrita ficcional e a vivência real nas ruas e espaços retratados no livro? Há personagens ou cenas diretamente inspirados em pessoas que conheceu? E o que há de autobiográfico nisso?
Leandro Marçal - 
Dois ou três contos foram baseados em situações acontecidas com pessoas próximas. Mas só baseados mesmo, a faísca da realidade causou o incêndio da ficção. Comecei na literatura como cronista e a crônica exige do escritor um olhar atento para o dia a dia, para o banal, para as pequenas coisas capazes de virarem grandes textos. Como a minha literatura acontece nas ruas, não perder isso de vista é algo que está comigo, até por não ser autor de uma literatura que precisa de grandes acontecimentos, de grandes universos. 


Resenhando.com - Seu livro anterior explorava o futebol como pano de fundo. Há alguma conexão entre aquele universo e os personagens de "Me Vê Dez Médias", ou você vê essa nova obra como um ponto de ruptura?
Leandro Marçal - 
Acredito que há uma conexão entre os livros no sentido de haver personagens masculinos expondo as entranhas e contradições do ser masculino. Mas no livro anterior, há uma variação de gêneros, linguagens e narrações entre os contos; nesse atual, os contos têm uma linguagem mais parecida entre si, eles se conectam mais. 

Resenhando.com - Que tipo de leitura você espera provocar? Qual é o sentimento que você gostaria que o leitor carregasse ao fechar a última página?
Leandro Marçal - 
Acho que a minha literatura causa uma mistura de sentimentos. Nos contos, tem um pouco de incômodo e de identificação. Assim, desse jeito, contraditório. Sinceramente, se o livro servir apenas como entretenimento de algumas horas para os leitores, está tudo bem. Mas se um único leitor parar para pensar em como a gente naturaliza a brutalidade, a violência e a hostilidade, vai valer muito mais!

Nas histórias de “Me Vê Dez Médias”, a violência e a brutalidade masculina guiam e atormentam os protagonistas criados por Leandro Marçal

domingo, 11 de maio de 2025

.: Crítica: "Rita Lee: Uma Autobiografia Musical" é um acontecimento histórico


Por 
Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com. Foto: João Caldas F.º

Há espetáculos bons. Há espetáculos necessários. E há aqueles que, como um disco voador, tornam-se acontecimentos culturais inesquecíveis. "Rita Lee - Uma Autobiografia Musical", em cartaz até 15 de junho no Teatro Porto, é tudo isso e mais um pouco: é o melhor musical brasileiro em cartaz atualmente. Com direção precisa de Marcio Macena e Débora Dubois, roteiro de Guilherme Samora e direção musical de Marco França e Marcio Guimarães, o espetáculo transcende a homenagem biográfica e se transforma em um verdadeiro ritual de celebração da liberdade, da arte e da resistência. A vida de Rita Lee, tão rica em camadas, escândalos, poemas e ousadias, é contada com a mesma honestidade escancarada que fez do livro autobiográfico da cantora um marco editorial.

No centro disso tudo está Mel Lisboa, em um desempenho arrebatador que já lhe valeu o Prêmio Shell de Melhor Atriz - reconhecimento merecido e insuficiente diante da imensidão do que ela entrega no palco. Por vezes, o que se vê é tão potente que esquecemos que Mel Lisboa é Mel Lisboa. Ela se dilui completamente na persona de Rita Lee, tornando-se um big bang cênico: mística, explosiva, hecatômbica, avassaladora. A atriz, que já foi uma fã obsessiva em "Misery", esotérica em Helena Blavatsky e trágica em "Dogville", mais uma vez se reinventa - talvez como nunca - ao dar corpo, alma e voz a Rita Lee. Mais do que desfiar hits, ela encarna o espírito de uma época, passando o Brasil a limpo, especialmente em um momento em que o conservadorismo e os fantasmas da repressão parecem rondar novamente.

A montagem não poupa o espectador de emoção nem de crítica - Rita Lee não é retratada como santa, algo que nem ela gostaria. O texto resgata momentos cruciais da trajetória da artista que vão desde a infância ao Mutantes, do romance com Roberto de Carvalho à prisão durante a ditadura, do ativismo pelos animais à consagração como a maior vendedora de discos do país. Tudo é contado com irreverência e afeto, em um ritmo que costura música, memória e política com rara inteligência - e que não deixa o espectador perceber que o tempo está passando.

Outro destaque nesse mar de cultura é Fabiano Augusto, que surpreende o público ao se despir completamente da imagem de garoto-propaganda para entregar um Ney Matogrosso visceral, sensível e perfeitamente crível. É um momento de redenção artística que precisa ser aplaudido de pé - como tantas vezes acontece durante o espetáculo.

O elenco de apoio brilha em conjunto, trazendo à cena nomes marcantes da cultura nacional como Elis Regina, Gal Costa, Raul Seixas e Hebe Camargo com dignidade e presença cênica. Mas tudo orbita em torno da força gravitacional de Rita Lee - e de Mel Lisboa, que se consagra de vez como o nome artístico de sua geração. Como a própria Rita disse, e é repetido no espetáculo em alto e bom som, "seu maior feito foi fazer as pessoas felizes". E é isso que "Rita Lee - Uma Autobiografia Musical" faz: coloca o público para sorrir, cantar, chorar e dançar, como em um show de rock'n roll, mas também para pensar e se lembrar que liberdade, arte e coragem ainda são atos revolucionários.

"Rita Lee - Uma Autobiografia Musical" não é apenas um espetáculo. É um espelho do Brasil que fomos, somos e ainda podemos ser. Vá enquanto há tempo - e leve sua "ovelha negra" interior com você para que ela, para não ficar por baixo, "coloque as asas para fora".

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.: Lista: as dez mães mais importantes da literatura brasileira no Brasil de hoje


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com.

Da mãe amorosa à ausente, da protetora à transgressora, da silenciosa à revoltada. A literatura brasileira, em suas várias fases e escolas, construiu imagens complexas e simbólicas da figura materna - da mãe abnegada  à mulher que rejeita ou abandona a maternidade. Nesse vasto acervo, algumas personagens se destacam pela intensidade emocional, pela centralidade na trama ou pela originalidade com que encarnam o papel de mãe em seus contextos sociais, históricos ou simbólicos.

Listamos as dez mães mais importantes da ficção brasileira, elencadas em três critérios principais: o primeiro deles é o impacto narrativo - o quanto essa mãe/personagem influencia diretamente os acontecimentos da obra ou a trajetória dos protagonistas. Também consideramos a intensidade emocional, o grau de comoção, dor ou conflito que essa mãe desperta, tanto nos personagens, quanto nos leitores. 

Há, também, a relevância simbólica: o peso que a personagem carrega enquanto representação de tipos sociais, dilemas morais ou rupturas culturais, influenciando o imaginário coletivo ou a crítica literária. A classificação a seguir não pretende ser definitiva, mas oferece um panorama sobre as diferentes formas de maternar na literatura brasileira e no século 21 - com mães silenciosas, feridas, revolucionárias ou até ausentes. Cada uma, à sua maneira, marca o leitor e deixa uma marca na história da ficção brasileira.

10.° A ausência da mãe de Macabéa - "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector
Embora a mãe de Macabéa apareça apenas de forma indireta no romance "A Hora da Estrela", escrito por Clarice Lispector, a ausência dela é marcante. Macabéa é uma jovem órfã, criada por uma tia autoritária, e a personalidade apagada e submissa da personagem pode ser vista como resultado de carência de afeto materno. A autora inverte a lógica tradicional: ao invés de exaltar a presença da mãe, mostra como sua ausência molda uma existência vazia. A figura materna no romance é a ausência dolorosa do cuidado, da voz e da identidade. Na história, a mãe de Macabéa é uma jovem alagoana que escolheu o nome "Macabéa" por promessa à Nossa Senhora da Boa Morte. A mãe de Macabéa não criou a filha porque faleceu quando a protagonista do romance era muito pequena. O nome "Macabéa" tem origem judaica e remete à história do povo judeu e à resistência à ocupação grega de Jerusalém. A mãe de Macabéa é uma figura apenas sugerida e rapidamente descartada. Sua ausência é significativa, mas não atua diretamente na narrativa. Está mais como sombra do que como personagem. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link. 

9.° Vedina - "Véspera", de Carla Madeira
Vedina é uma mãe marcada pelo colapso emocional e pela culpa. Em um momento de desespero causado por um casamento violento e uma vida de traumas familiares, ela abandona o filho pequeno na rua. Ao voltar para buscá-lo, a criança já desapareceu. Esse ato dá início a uma narrativa profunda sobre dor, arrependimento e os efeitos da desestruturação familiar. Contada em dois tempos - o dia do abandono e os dias que o antecederam - a história revela como a violência doméstica, os traumas de infância e a solidão empurram Vedina para o limite no romance "Véspera", escrito por Carla Madeira. Ela não é uma vilã, mas o retrato de uma mulher vencida pelas circunstâncias. Vedina é uma mãe marcante porque rompe com o ideal da mãe abnegada e representa a maternidade atravessada pelo trauma e pela falência emocional. A história da personagem provoca desconforto e empatia, sendo uma das mães mais complexas da ficção recente.Revoluciona a representação da maternidade. O abandono do filho é uma das maiores quebras de tabu da literatura brasileira recente, com forte impacto emocional e ético. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.

8.° Dona Antônia - "Casa Velha" (Machado de Assis)
Por muito tempo, "Casa Velha", o livro quase perdido de Machado de Assis, foi considerada uma obra "menor", mas hoje tem sido revisitada por críticos interessados nas estruturas familiares e nas personagens femininas machadianas. Nela está o retrato de uma mãe aristocrática e controladora do século XIX, Dona Antônia, figura marcante pela autoridade moral e por exercer domínio psicológico sobre os membros da casa. Religiosa e tradicional, ela vive em função das convenções da época e tenta manipular o destino do filho, Félix, para que siga a carreira eclesiástica. A influência dela é forte, silenciosa e estratégica - e representa um modelo de maternidade ligado à manutenção da honra, da tradição familiar e do status social. É uma mãe de grande relevância dentro da obra por encarnar o poder matriarcal velado que rege as casas patriarcais. Ela é a guardiã do passado e da reputação - não por meio da violência, mas pelo medo da desaprovação. Representa a tensão entre o afeto materno e os interesses sociais. É um exemplo refinado da crítica machadiana à hipocrisia e à rigidez da moral burguesa. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.

7.° Sinhá Vitória - "Vidas Secas", de Graciliano Ramos
Um dos retratos mais comoventes da maternidade na literatura nacional, Sinhá Vitória é uma personagem marcante em "Vidas Secas", de Graciliano Ramos. Ela é a mãe que sonha, que resiste e que carrega a dignidade no meio da miséria. Enquanto o marido, Fabiano, é quase mudo e bruto, ela articula pensamentos, desejos e esperanças, principalmente em relação aos filhos, para quem deseja um futuro menos cruel. A figura dela é um elo entre a sobrevivência física e o desejo de ascensão simbólica. Sinhá Vitória representa a mulher sertaneja que, mesmo no silêncio da opressão, consegue manter aceso o desejo de mudança.Símbolo universal da resistência materna diante da miséria e do abandono social. A força silenciosa desta personagem moldou gerações de leitores e se tornou símbolo da mulher sertaneja. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.


6.° Engraçadinha - "Asfalto Selvagem - Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados", de Nelson Rodrigues
No romance-folhetim "Asfalto Selvagem - Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados", o polêmico escritor Nelson Rodrigues constrói uma das figuras maternas mais trágicas e ambíguas da literatura brasileira: Engraçadinha, que após uma juventude entregue aos prazeres do sexo torna-se uma fanática religiosa e se volta para a criação da filha, Cilene, como se tentasse expiar os pecados do passado. Atormentada pela história de incesto e desejo que marcou sua juventude, essa mãe tenta proteger Cilene de um destino que considera inevitável, investindo num cuidado rígido, repressivo e, por vezes, cruel. O amor dela é distorcido por valores morais e culpa, mas ainda assim reconhecível como uma tentativa desesperada de proteger a filha. A maternidade aqui se revela não como fonte de redenção, mas como campo de conflito entre o desejo de liberdade e o peso da tradição. É uma maternidade feita de silêncios, omissões e pânico moral - e, justamente por isso, profundamente humana. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.

5.° Dona Glória, mãe de Bentinho - "Dom Casmurro", de Machado de Assis
Em "Dom Casmurro", escrito por Machado de Assis, Dona Glória é a mãe que ama demais e que decide o futuro do filho por promessa religiosa. Ela força Bentinho ao seminário para cumprir uma promessa feita antes do nascimento dele, interferindo diretamente em sua formação emocional. A personagem representa a mãe religiosa, autoritária, mas amorosa - e também a mãe que, sem perceber, gera fraturas no desenvolvimento emocional do filho. A interferência dela é uma das causas do desequilíbrio psicológico do narrador, contribuindo para o tom trágico e ambíguo da obra.Ela influencia o destino psicológico e amoroso do narrador. Sem sua promessa e decisões, a história de Bentinho e Capitu seria outra. Uma mãe simbólica do controle afetivo. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.

4.° Cecília - "A Pediatra", de Andréa Del Fuego (Companhia das Letras)
No provocador romance "A Pediatra", e escritora Andréa Del Fuego apresenta Cecília, uma neonatologista que rompe com todas as expectativas sociais sobre a maternidade. Embora trabalhe diretamente com recém-nascidos, Cecília se mostra emocionalmente distante dos bebês e dos pais, desconfiando da idealização do instinto materno. Fria, solitária e crítica, ela é uma personagem que se recusa a performar a doçura que se espera de uma mulher ligada ao cuidado infantil. No entanto, ao se envolver afetivamente com uma criança, ela se vê confrontada com um mundo emocional que havia evitado. A narrativa, conduzida com humor ácido e aguda sensibilidade, mergulha nas ambiguidades da maternidade e mostra que nem toda mulher nasce para ser mãe - e que isso também precisa ser dito e respeitado. Cecília é uma personagem necessária porque escancara o peso das normas sociais e desafia os clichês da figura materna idealizada na literatura e na vida. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.

3.° Salustiana e Donana - "Torto Arado", de Itamar Vieira Junior (Editora Todavia)
No romance "Torto Arado", de Itamar Vieira Junior, as personagens Salustiana e Donana são figuras maternas que transcendem a família biológica e assumem papéis fundamentais na sustentação espiritual, emocional e social da comunidade rural de Água Negra. Salustiana, mãe de Bibiana e Belonísia, é parteira, curandeira e referência de força e dignidade. A maternidade dela é representada pela resistência às marcas da escravidão e pela transmissão de saberes tradicionais. Já Donana, avó das meninas, é uma figura ancestral, profundamente ligada à terra, aos ritos e à espiritualidade de matriz africana. Como mãe e avó, ela representa a continuidade do conhecimento, da fé e da luta por justiça. Ambas são mulheres que cuidam, acolhem e ensinam - não apenas suas filhas e netas, mas toda uma comunidade. Com elas, a maternidade se mostra como elo entre gerações e como prática coletiva de resistência, cura e memória. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.

2.° Dalva - "Tudo É Rio", de Carla Madeira (Editora Record)
A Dalva de "Tudo É Rio", escrito por Carla Madeira, está entre as mães mais impactantes da literatura brasileira contemporânea. O drama da personagem começa a partir de uma violência com ela e o filho recém-nascido, o que a lança em um luto permanente. Tomada por sentimentos contraditórios - dor, ódio, culpa, amor e desejo de vingança — ela representa a mãe que enlouquece em silêncio e faz do algoz uma vítima, em um jogo de gato e rato. A trajetória de Dalva mostra como o instinto materno pode ser ao mesmo tempo sagrado, violento e profano. Carla Madeira constrói uma personagem intensa, que carrega a maternidade como ferida aberta e, de quebra, mostra a maternidade como maneira de redenção a partir da prostituta Lucy. Figura visceral da dor materna contemporânea. Sua tragédia íntima impacta toda a narrativa. É uma das personagens mais discutidas da nova literatura brasileira. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.

1.° Ana e Madalena -"Não Fossem as Sílabas do Sábado", de Mariana Salomão Carrara (Editora Todavia)
Em "Não Fossem as Sílabas do Sábado", a escritora Mariana Salomão Carrara apresenta duas mulheres marcadas pela tragédia: Ana e Madalena, ambas viúvas após um acontecimento que matou seus respectivos maridos. A maternidade de Ana é atravessada pelo luto, pela solidão e pela necessidade de reconstruir a vida sem o pai da filha. Madalena, por sua vez, torna-se uma figura materna complementar, unindo-se a Ana em uma relação de amizade profunda e parceria. Juntas, elas formam uma nova configuração familiar, baseada no afeto, no cuidado mútuo e na ressignificação dos papéis femininos. A obra amplia a noção de maternidade ao mostrar que ela pode ser construída coletivamente, fora dos moldes tradicionais. Ana e Madalena são exemplos de como o amor e o apoio entre mulheres podem criar espaços seguros e afetivos para o crescimento de uma criança - e para a cura de quem cuida. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.

domingo, 20 de abril de 2025

.: Um resumo detalhado de "Caminho de Pedras", obra cobrada pela Fuvest


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com.

O romance "Caminho de Pedras" retorna às prateleiras, reconhecido como a obra mais politicamente comprometida de Rachel de Queiroz. A narrativa, escolhida como leitura obrigatória para os vestibulares da Fuvest em 2026 e 2027, se passa em Fortaleza nos anos 1930, no contexto da Era Vargas. O protagonista, Roberto, recebe a incumbência de angariar trabalhadores para integrar uma nova célula de esquerda. 

Entre os interessados está Noemi, mãe de Guri e casada com um homem por quem já não nutre sentimentos. Em busca de um propósito que a faça sentir-se viva, ela passa a frequentar os encontros do partido. A partir daí, surge uma forte afinidade intelectual com Roberto - laço que rapidamente se transforma em um envolvimento amoroso. A partir daí, Noemi começa a explorar novas fronteiras morais e éticas, tanto no amor quanto no ativismo político.

Expressão de um socialismo libertário raro na trajetória literária de Rachel de Queiroz, "Caminho de Pedras" é amplamente considerado seu livro mais ideológico. A obra antecipa o surgimento de um estilo mais reflexivo e psicológico, fundamentando cenas marcadas por grande carga emocional. Com inteligência narrativa, a autora constrói a história de uma paixão proibida alimentada pelo idealismo político.

Ao longo do romance, Rachel de Queiroz destaca a força de uma mulher que escolhe seguir os próprios desejos - mesmo que isso significasse enfrentar o divórcio. Em um contexto social onde se esperava da mulher apenas os papéis de mãe, esposa e dona de casa, Noemi surge como uma transgressora e, ao mesmo tempo, protagonista corajosa da própria trajetória. A punição social que sabia que enfrentaria não foi suficiente para dissuadi-la de romper com um casamento sem afeto. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.


Casamento, perdas e prisão: os bastidores da criação de “Caminho de Pedras”
Após o sucesso de "O Quinze", romance de estreia, Rachel de Queiroz fez diversas viagens para divulgar a obra. Durante esse período, conheceu o poeta José Auto da Cruz Oliveira, conhecido como Zé Auto, com quem se casaria em 14 de dezembro de 1932. No ano seguinte, em Fortaleza, nasceu Clotilde, a única filha do casal. 

Contudo, tragicamente, a menina faleceu aos um ano e meio de idade, em apenas 24 horas, vítima de meningite aguda. Pouco tempo depois, Rachel enfrentaria outra dor: a morte do irmão mais novo, Flávio, aos 18 anos, devido a uma septicemia causada por uma infecção em uma espinha no rosto. Esse período mergulhou a autora em um profundo estado de luto e desolação.

Nos anos seguintes, com o endurecimento do regime de Getúlio Vargas, o Nordeste passou a ser alvo de uma repressão intensa contra movimentos de esquerda. Durante esse clima político tenso, Rachel foi presa sob acusação de envolvimento comunista, ficando incomunicável nas instalações do Corpo de Bombeiros de Fortaleza. Foi justamente durante esse período de reclusão que ela iniciou a escrita do terceiro romance - sendo que o segundo, "João Miguel", só seria publicado em 1937 - o qual receberia o título de “Caminho de Pedras”.

A obra é frequentemente apontada por estudiosos como o romance mais politicamente comprometido de sua longa trajetória literária, marcado por um socialismo libertário que raramente voltaria a aparecer em seus escritos. Com uma prosa concisa e direta, o livro mergulha na psicologia dos personagens, narrando a história de um amor proibido entre Roberto e Noemi - esta, esposa do ex-militante comunista João Jaques e mãe de um bebê chamado apenas de Guri. A narrativa tem como pano de fundo o cenário de luta social dos anos 1930, com duras críticas ao Integralismo e ao autoritarismo do Estado Novo. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.


Resumo Detalhado de "Caminho de Pedras", de Rachel de Queiroz

Contexto histórico e político
Publicado originalmente em 1937, "Caminho de Pedras" se passa em Fortaleza, nos anos 1930, durante a Era Vargas, um período de forte repressão política, especialmente contra movimentos de esquerda. A narrativa se insere nesse cenário turbulento, trazendo à tona discussões ideológicas, sociais e morais - tudo isso atravessado por uma trama afetiva intensa.


🧍‍♂️ Personagens principais 
de "Caminho de Pedras"
Roberto - Jovem idealista, envolvido com o movimento de esquerda. A missão dele é organizar uma nova célula comunista em Fortaleza. Inteligente, sensível e politicamente comprometido, representa o engajamento da juventude com as causas sociais.

Noemi - Mulher casada, mãe do pequeno Guri, vive presa a um casamento sem amor com João Jaques, um ex-militante comunista agora desencantado. Noemi é uma personagem complexa, dividida entre o papel que a sociedade lhe impõe e o desejo de viver algo mais verdadeiro e intenso.

João Jaques - Marido de Noemi. É um homem desiludido, que abandonou a luta política. Seu afastamento do idealismo o coloca em contraste com Roberto, que ainda acredita na transformação social.

🧩 Enredo de "Caminho de Pedras"
A história de "Caminho de Pedras" gira em torno da chegada de Roberto a Fortaleza com o objetivo de reunir trabalhadores e formar uma nova célula comunista. Durante essa missão, ele conhece Noemi, uma mulher inquieta, frustrada com sua vida familiar e emocionalmente distante do marido. Ela se interessa pelas ideias políticas de Roberto, mas principalmente por ele como pessoa.

Noemi começa a frequentar reuniões políticas e estabelece com Roberto uma conexão que extrapola o campo ideológico: nasce entre os dois uma relação amorosa intensa, carregada de paixão, mas também de dilemas morais. Noemi vive um conflito interno profundo - entre os valores conservadores que a cercam (e que ela internalizou) e o desejo de se libertar de uma vida sem sentido.

Ao se envolver com Roberto, Noemi começa a experimentar uma forma de liberdade até então desconhecida para ela, questionando seu papel de esposa e mãe tradicional. Essa libertação, no entanto, tem um custo: o julgamento social e as consequências afetivas e políticas que envolvem sua escolha.

🔍 Temas principais de "Caminho de Pedras"
Conflito entre o desejo e o dever - 
Noemi personifica esse embate, sendo pressionada pelos papéis sociais atribuídos à mulher, mas ansiando por uma existência mais autêntica.

Militância e desilusão política - Roberto representa o entusiasmo revolucionário; João Jaques, a descrença e o abandono da luta.

Emancipação feminina: Noemi tenta trilhar um "caminho de pedras" rumo à autonomia emocional, intelectual e amorosa.

Moralidade e transgressão - A obra questiona os limites éticos impostos pela sociedade, colocando em foco o preço da liberdade individual.

💬 Estilo e linguagem de "Caminho de Pedras"
A escrita de Rachel de Queiroz em "Caminho de Pedras" é marcada por uma linguagem enxuta, direta e sensível, com forte carga psicológica e introspectiva. A narrativa avança com diálogos intensos e passagens de grande densidade emocional, revelando a complexidade interna dos personagens.


📝 Importância de "Caminho de Pedras" na obra de Rachel de Queiroz
Considerado por muitos críticos o romance mais engajado politicamente de Rachel de Queiroz, o romance "Caminho de Pedras" também marca o início de um estilo mais maduro da autora, com profundas análises existenciais e emocionais. É também uma das raras ocasiões em que ela explora, de maneira direta, temas ligados ao socialismo libertário. Apoie o Resenhando.com e compre o livro neste link.


Esquema por capítulos de "Caminho de Pedras" (resumo da narrativa)

Capítulo 1 - Chegada e missão
Roberto chega a Fortaleza com a missão de organizar uma célula comunista. É introduzido o contexto político da Era Vargas e o clima de tensão no Nordeste. Roberto começa a se aproximar de operários e trabalhadores para formar uma base ideológica.

Capítulo 2 - Primeiros contatos
Noemi aparece como personagem secundária nas reuniões políticas. Aos poucos, mostra-se interessada não só nas ideias, mas em Roberto. Introdução do núcleo familiar de Noemi: João Jaques e o filho, Guri.

Capítulo 3 - A aproximação
A conexão entre Roberto e Noemi se fortalece. O ambiente doméstico opressivo de Noemi é descrito, revelando seu desgaste emocional. Cresce o clima de tensão e desejo entre os dois.

Capítulo 4 - Início do romance
Noemi e Roberto se envolvem amorosamente. A relação desafia as convenções da época: adultério, militância e desejo de liberdade. Roberto é dividido entre seu idealismo político e o sentimento por Noemi.

Capítulo 5 - Conflitos internos
Noemi entra em crise: culpa, desejo, medo da repressão social. João Jaques começa a desconfiar.. Roberto tem dificuldades com o avanço da célula revolucionária.

Capítulo 6 - Queda e consequências
O relacionamento é descoberto ou se torna insustentável. Noemi enfrenta o julgamento da sociedade e o colapso do casamento. Roberto sofre repressão ou precisa fugir.

Capítulo 7 – Escolhas e liberdade
Noemi decide romper com as expectativas e padrões sociais. O final é melancólico, mas libertador: há perda, mas também consciência de si. A metáfora do "caminho de pedras" é consolidada como o percurso árduo da mulher em busca de autonomia.

Análise temática aprofundada de "Caminho de Pedras"

1. Amor e transgressão
O romance aborda o amor extraconjugal entre Noemi e Roberto, desafiando as normas sociais da época. Essa relação é retratada com profundidade emocional, explorando os conflitos internos de Noemi entre desejo e culpa.

2. Militância política
A obra está inserida no contexto da Era Vargas, destacando a repressão aos movimentos de esquerda. Roberto representa o idealismo revolucionário, enquanto João Jaques simboliza a desilusão com a política.

3. Emancipação feminina
Noemi busca romper com os papéis tradicionais de esposa e mãe, em busca de autonomia e realização pessoal. Sua jornada reflete as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que desafiam as expectativas sociais.

4. Conflito entre vida pública e privada
A narrativa explora como as escolhas pessoais de Noemi estão intrinsecamente ligadas ao contexto político e social, mostrando a interdependência entre o íntimo e o coletivo.


🧠 Perfil psicológico dos personagens principais de "Caminho de Pedras"

Noemi
Conflitos internos:
luta entre o desejo de liberdade e o peso da culpa por trair as expectativas sociais. Evolução: passa de uma mulher submissa a uma figura que busca ativamente sua autonomia, mesmo enfrentando consequências dolorosas.

Roberto
Conflitos internos:
 dividido entre o compromisso com a causa socialista e o amor por Noemi. Evolução: a relação com Noemi o humaniza, mas também o coloca em risco dentro do contexto político repressivo.


O que disseram sobre o livro "Caminho de Pedras"

“Caminho de pedras é uma história de gente magra, uma história onde há fome, trabalho excessivo, perseguições, cadeia, injustiças de toda a espécie, coisas que os cidadãos bem instalados na vida não toleram.” ― Graciliano Ramos

“A mesquinhez pulha dos indivíduos, a amargura sofrente de todos, a incapacidade como que por fatalidade, a dedicação por um ideal mais sonhado que entendido, o ambiente parado das cidades nordestinas (com exceção do Recife), a quantidade inflexível de sol que está no livro, a pureza da linguagem natural, sem a menor pesquisa: é a Rachel de Queiroz grande romancista.” ― Mário de Andrade

“A trilogia 'O Quinze', 'João Miguel' e 'Caminho de Pedras' marca claramente um momento da obra de Rachel. A afirmação de seu compromisso com a linguagem clara, de dicção moderna, a preocupação com o social, seus conflitos políticos, sua raiz nordestina. Marca ainda sua habilidade no desenho de personagens femininas cujo desempenho desafia invariavelmente a lógica patriarcal desta primeira metade do século XX.” ― Heloisa Teixeira


Fuvest 2026

"Opúsculo Humanitário" (1853) - Nísia Floresta Brasileira Augusta

"Nebulosas" (1872) - Narcisa Amália

"Memórias de Martha" (1899) - Júlia Lopes de Almeida

"Caminho de Pedras" (1937) - Rachel de Queiroz

"O Cristo Cigano" (1961) – Sophia de Mello Breyner Andresen

"As Meninas" (1973) – Lygia Fagundes Telles

"Balada de Amor ao Vento" (1990) – Paulina Chiziane

"Canção para Ninar Menino Grande" (2018) – Conceição Evaristo

"A Visão das Plantas" (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida

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