sexta-feira, 18 de julho de 2025

.: Entrevista com Edson Aran: Machado, Drácula e outras heresias deliciosas


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: arte feita a partir de foto publicada no Instagram @edsonaran.

Imagine o seguinte: Brás Cubas andando distraidamente pelas ruas do Rio de Janeiro enquanto Capitu, mais instável do que nunca, recebe uma visita noturna do conde Drácula - e tudo isso sob o olhar nada complacente de Quincas Borba, que talvez tenha finalmente encontrado um adversário à altura do Humanitismo. Se essa cena parece um delírio febril de um crítico literário viciado em absinto, é porque você ainda não leu "Quincas Borba e o Nosferatu", o novo e audacioso romance de Edson Aran, autor que há anos reescreve, com ironia e precisão, os manuais de estilo da literatura nacional.

Aran - que já foi cartunista, editor de revistas masculinas, roteirista de TV, criador de memes, cronista ácido, conspirólogo confesso e um dos poucos homens que podem dizer que superaram a revista Playboy - volta ao romance com um livro que mistura Machado de Assis, Bram Stoker e um senso de humor afiado como as presas do vampiro em questão. O resultado? Uma obra que desafia puristas, diverte iconoclastas e talvez incomode mortos ilustres.

Nesta entrevista exclusiva para o Resenhando.com, Aran abre o caixão de suas ideias, morde o pescoço dos clássicos e lembra a todos, com irreverência e elegância, que a literatura continua sendo o melhor dos vícios - mesmo quando escrita com sangue e sarcasmo. É uma conversa sem crucifixos nem pudores. Compre o livro "Quincas Borba e o Nosferatu" neste link.


Resenhando.com - Como foi transformar a ironia machadiana em terreno fértil para criaturas das trevas?
Edson Aran - Esse foi um desafio dos mais divertidos. “Quincas Borba e o Nosferatu” é um romance polifônico construído com cartas, diários e notícias de jornal, exatamente como o “Drácula” de Bram Stoker. Só que dois dos narradores - Brás Cubas e Bento Santiago - não são confiáveis. Cubas continua sendo o dândi cínico de “Memórias Póstumas” e entra na história mais por tédio e vaidade, do que para entender a natureza dos fatos. Bentinho é ciumento, inseguro e não tem muita convicção do que presenciou. A mistura do romance gótico de Bram Stoker com a narrativa irônica do Machado reforça o horror da história. Porque, veja bem, “Quincas Borba e o Nosferatu” não é um livro de humor. É uma história de terror com momentos bem-humorados, é outra coisa.


Resenhando.com - Qual foi o limite ético (ou estético) que você precisou ignorar para colocar Brás Cubas e Capitu sob o mesmo teto que um vampiro sedento e aristocrata? A provocação foi literária ou existencial?
Edson Aran - Ao contrário de Capitu, eu sou fiel aos meus amores. Os personagens do Machado estão lá com todas suas características originais. Quincas Borba ainda é o filósofo meio doido que criou o Humanitismo. Capitu ainda é uma mulher sedutora e impulsiva de olhar oblíquo e dissimulado. Bento Santiago ainda é o marido ciumento e melindrado (talvez apenas um pouquinho mais cruel no meu livro do que em “Dom Casmurro”). Escobar é o mesmo Escobar, Sancha é a mesma Sancha e Drácula é o mesmo Drácula. Só Capituzinha, a filha de Sancha e Escobar, é um pouco mais levada no meu livro, mas criança tem que ser levada mesmo.


Resenhando.com - Você acredita que Machado de Assis teria rido ou processado você? E, no Tribunal das Letras, quem seria seu advogado: Kafka, Stan Lee ou Ariano Suassuna?
Edson Aran - Acho que Machado se divertiria muito com “Quincas Borba e o Nosferatu”. Bram Stoker também, por falar nisso. Antes de serem capturados e mantidos em cativeiro pelos acadêmicos, esses escritores produziam folhetins publicados regularmente em jornais e revistas. Era o streaming da época. Se Machado estivesse vivo, ele estaria escrevendo a novela das nove, talvez com Bram Stoker na sala de roteiro. Literatura é pra ser lida, não pra juntar poeira na estante. Tenho a impressão de que Machado gostaria de ver seus personagens ganhando vida numa narrativa contemporânea, mas com raízes na obra que ele escreveu. Eu não ia precisar de advogado, não. Principalmente se fosse o Kafka, que nunca ganhou um processo.


Resenhando.com - No Brasil atual, o que assusta mais: um Nosferatu rondando o Paço Imperial ou a ascensão de políticos que não leem nem bula de remédio?
Edson Aran - Ando bastante desanimado com o Brasil. Quer dizer, deixa eu explicar. Por um lado, sou muito fã da minha geração e acho que a gente mandou e manda muito bem na cultura, no jornalismo e na literatura. Estou com 62, então coloco nessa turma gente como a Fernanda Torres, a Debora Bloch, o Claudio Manoel, o Marçal Aquino, o Renato Russo...não dá pra reclamar, né? Agora, na política, foi um desastre. Fizemos o mesmo que todas as gerações anteriores: falhamos totalmente em tirar o país da estagnação burocrática, política e econômica. Mas olha, você acha que “Quincas Borba e o Nosferatu” não reflete essa melancolia? Achou errado, pois reflete.


Resenhando.com - Você tem um histórico marcante com o humor gráfico e a cultura pop. Quais personagens dos gibis ou da pornografia elegante dos anos 90 você gostaria de ver em um “cross-over literário” nos moldes de Quincas Borba e o Nosferatu? 
Edson Aran - Os quadrinhos vivem fazendo crossover desde sempre, então não tenho muito o que acrescentar não. E a literatura erótica não tem personagens muito marcantes. A não ser que a gente inclua “Drácula” nesta categoria, coisa que faz sentido pra mim. E talvez “Dom Casmurro”, já pensou? Será que Bentinho, no fundo, no fundo, não se excita com a ideia de Capitu se entregar ao Escobar? Será que aquilo tudo não é a fantasia sexual de um seminarista travado? Mas, voltando à pergunta, é bem possível que eu promova outros encontros inusitados no futuro. Será que “Quincas Borba e o Nosferatu” é o início de um multiverso? Quem sabe, quem sabe...


Resenhando.com - Existe alguma personagem da literatura brasileira que você jamais ousaria parodiar? É por reverência, medo ou falta de graça mesmo? 
Edson Aran - O humor é por natureza irreverente. Quando a reverência entra pela porta da frente, o humor sai pela porta dos fundos. Mas eu não faria paródia com o José de Alencar, por exemplo. Eu teria que reler os livros dele e a vida é muito curta. É a mesma coisa com “O Ateneu” do Raul Pompéia, com aqueles paragrafões de cinco quilômetros sem ponto final. Seria divertido zoar isso, mas quem leu esse troço até o fim? Quem ia entender a piada? A paródia é uma forma de homenagem e, quando é bem-feita, também é uma declaração de amor.


Resenhando.com - Você já criou a Telma Luíza, o Romero morto-vivo e até um livro de epitáfios. Quem você gostaria que assinasse seu próprio obituário - e o que gostaria que dissesse? 
Edson Aran - O obituário é um ótimo gênero literário porque o personagem nunca reclama, mas eu prefiro ser autor do que objeto. Já o meu epitáfio está no “Aqui Jaz – O livro dos epitáfios”: “Agora sim... espirituoso”.


Resenhando.com - No seu livro anterior, você brincou de reescrever a história literária brasileira. Se pudesse reescrever a história do jornalismo cultural brasileiro, qual revista você salvaria do esquecimento - e qual apagaria com gosto?
Edson Aran - De muitas maneiras, “Quincas Borba e o Nosferatu” é uma continuação de “Histórias Jamais Contadas da Literatura Brasileira”, só que num outro gênero, o horror. O jornalismo cultural teve bastante coisa interessante: Senhor, VIP, Playboy, Realidade, Oitenta, Pasquim... muita coisa boa. Mas eu não apagaria nenhuma revista da história não. A gente sequer lembra delas, pra quê apagar?


Resenhando.com - Seu livro tem Capitu, mas e Bentinho, foi cancelado, virou coach ou está preso na Cracolândia dos ciumentos anônimos?
Edson Aran - Bentinho foi um homem demasiadamente apaixonado e inseguro. Tudo o que ele fez na vida - largar o seminário, aproximar Sancha de Escobar - foi por causa de Capitu. E aí ele foi traído. Por Capitu e Escobar, seu melhor amigo. E, veja, Bentinho vivia no Rio de Janeiro do Segundo Império, não no Leblon do Terceiro Milênio. A infidelidade na época era um tremendo problema social, principalmente quando era explícita (e o romance é cheio de detalhes sobre isso, todo mundo sabia). Só que a traição de Capitu o tornou um homem demasiadamente cruel, característica eu ressalto em “Quincas Borba e o Nosferatu”. Agora, essa bobagem de que Capitu nunca traiu, que vejo muita gente defendendo, é uma atitude moralista sem-noção. Coisa de seminarista católico, igual ao Bentinho. Como assim, não traiu? Capitu deu sim. Deu muito. E daí? Ela continua sendo uma personagem fascinante, intrigante e apaixonante. Talvez porque tenha pulado a cerca sem medo de ser feliz. Deixa ela, pô.


Resenhando.com - Se fosse possível exumar um autor morto para conversar sobre seu novo romance, quem você traria à vida por uma noite - e o que pediria que ele lesse em voz alta para você e o Drácula?
Edson Aran - Conversei algumas vezes com o Millôr Fernandes, mas ele faz muita falta neste Brasil empacado no tempo. Então eu o traria de volta não apenas por mim, mas pelo país. Também enviaria uma cópia do livro para o Ivan Lessa, claro, que certamente retribuiria com um e-mail econômico, mas cheio de sacadas. Quando escrevi o “Delacroix Escapa das Chamas”, foi o Ivan quem inventou o conceito “um romance em quatro tempos” para um livro de quatro narrativas independentes. E com certeza eu mandaria o livro para o Jô Soares. Com certeza. A gente trocava muitas mensagens nos meus tempos de Playboy e tive a honra de ler “As Esganadas” antes de todo mundo. Eu gostaria muito de ouvir o autor de “O Xangô de Baker Street” sobre “Quincas Borba e o Nosferatu".


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