Mostrando postagens com marcador Resenhander. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Resenhander. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 10 de julho de 2025

.: Crítica: musical “Wicked” desafia a gravidade e as expectativas


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação/Jairo Goldflus

Existe um momento em que o teatro deixa de ser teatro e passa a ser transcendência, em que a arte deixa de apenas entreter e começa a transformar. “Wicked - A História Não Contada das Bruxas de Oz”, em cartaz no Teatro Renault, é exatamente isso: um salto entre o bom e o inesquecível. E se a palavra “clássico” já pairava sobre essa história nascida nos palcos da Broadway, o que se vê na terceira montagem brasileira é o nascimento de um novo patamar para o teatro musical no país.

Myra Ruiz não interpreta Elphaba - ela É Elphaba. E isso não é apenas um elogio, é um aviso. Prepare-se para testemunhar uma entrega artística de tirar o fôlego, que combina técnica vocal absurda, presença cênica hipnótica e uma força emocional que faz tremer a poltrona. Ver Myra “voar” - literalmente e metaforicamente - enquanto canta “Desafiando a Gravidade” é uma experiência de se guardar talismã verde-esmeralda. Em uma era de performances cada vez mais plastificadas, ela entrega verdade.

Bel Barros, como Glinda, na apresentação que substituiu Fabi Bang, encontra o tom exato entre o carisma solar e a frivolidade encantadora da bruxa boa. A química com Myra é mais do que uma parceria: é a prova de que antagonismos podem gerar beleza. Já Luisa Bresser, como Nessarose, mostra um domínio emocional raro para tanta juventude. A transição da atriz, de doce para amarga, é digna de nota - e, se o futuro da dramaturgia musical brasileira precisa de representantes, ela certamente já está convocada.

Hipólyto, como Fiyero, encontra mais um papel que o desafia e o valoriza. O Fiyero interpretado por ele tem charme, mas também tem camadas - algo raro nesse tipo de papel. E Cleto Baccic, como sempre, é a cereja do bolo: o Mágico de Oz dele destila cinismo com vulnerabilidade, lembrando a todos os espectadores que até o poder pode ser patético. Há algo que diferencia esta montagem das anteriores: ela ouve o tempo. 

Sob a direção de John Stefaniuk e com novos figurinos, efeitos visuais e sistemas de voo que parecem saídos de uma ficção científica glamurosa, o espetáculo conecta-se às angústias e urgências do presente. A mensagem de resistência, identidade e amizade feminina não poderia ser mais atual. “Wicked” não é apenas um musical: é uma alegoria queer, um manifesto feminista, uma crítica às narrativas oficiais. Tudo isso embalado em luz verde e rosa, plumas, vassouras e canções que colam na alma.

Além disso, o projeto extrapola os limites do palco. O leilão de figurinos em prol do GIV, as ações durante o Mês do Orgulho LGBTQIAPN+ e a participação ativa do elenco em iniciativas sociais mostram que esta produção entende o que significa “teatro vivo”. Se o teatro é um espelho, “Wicked” é aquele espelho mágico que nos mostra não só quem somos, mas quem podemos ser.

E que prazer vê-lo em cartaz justamente agora, quando a cultura brasileira parece, mais do que nunca, precisar de esperança, de empatia e de um pouco de feitiçaria também. Não é novidade que "Wicked" sempre será o melhor espetáculo do ano em todas as vezes em que estiver em cartaz. Mas, sem qualquer exagero, também é o melhor espetáculo que você terá a honra de assistir em toda a sua vida.


Serviço
"Wicked - A História Não Contada das Bruxas de Oz"
Quartas, quintas e sextas-feiras, às 20h00. Sábados e domingos, às 15h00 e às 19h30.
Teatro Renault - Av. Brigadeiro Luís Antônio, 411 - República/São Paulo.
Bilheteria oficial no Teatro Renault (sem taxa de conveniência): de terça a domingo, das 12h00 às 20h00 (exceto feriados). Site e app Ticket For Fun: ticketsforfun.com.br.
Temporada estendida até 10 de agosto de 2025.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

.: Crítica: "Megan 2.0" é sequência fraca que não supera "Acompanhante Perfeita"

Por: Mary Ellen Farias dos Santos, editora do Resenhando.com

Em julho de 2025


A verdade é que "M3gan", o longa de terror com ficção científica com um toque de zoeira, surpreendeu positivamente a todos em janeiro de 2023 a ponto de anunciar uma sequência. Com data marcada para a estreia nos cinemas em 2025, antes, "M3gan 2.0" lançou trailers geradores de total empolgação para o público que foi fisgado dois anos antes. Contudo, o segundo filme não consegue realizar nem a metade da metade prometido ao som de "Toxic" na voz de Britney Spears.

Até mesmo a bonequinha cibernética assassina, dirigida mais uma vez por Gerard Johnstone, surge na trama perdida. Desta vez, a dançarina que faz jorrar sangue, canta e está mais comedida. Um dos pontos mais negativos e que acontece logo no início da produção, é o fato de demorar horrores para ela aparecer em cena. Seja por primeiramente ter perdido sua estrutura original ou por ser colocada num "corpo" provisório que pouco permite. "M3gan 2.0" parece que deseja ser levado a sério e erra feio, embora lance algumas piadinhas.

Assim, Megan fica sem propósito, tanto quanto o filme todo em suas 2 horas de duração. A boneca assassina dançante chega a perder o protagonismo para a novata Amelia (Ivanna Sakhno), num corpo de mulher, a máquina de matar adulta é focada, uma vez que foi criada a partir da base de dados de Megan com maior aprimoramento. Para acabar com a nova ameaça, Megan precisa retornar e Gemma (Allison Williams) o faz -para a alegria de Cady (Violet Mcgraw, A Maldição da Residência Hill").

Enquanto o filme vai passando, por vezes, quem curtiu o primeiro, fatalmente, irá se perguntar a respeito da necessidade desse retorno. E a resposta é que não, a bonequinha nem mesmo deveria ter voltado, não assim de modo aleatório e com um enredo totalmente fraco. Infelizmente, "M3gan 2.0" não acontece. É chato, sem sentido e descartável, ainda que valha a pena por trazer uma Megan crescida. Por outro lado, fica como um autêntico "M3gan 2.0" o longa "Acompanhante Perfeita", embora seja para maiores.


O Resenhando.com é parceiro da rede Cineflix Cinemas desde 2021. Para acompanhar as novidades da Cineflix mais perto de você, acesse a programação completa da sua cidade no app ou site a partir deste link. No litoral de São Paulo, as estreias dos filmes acontecem no Cineflix Santos, que fica no Miramar Shopping, à rua Euclides da Cunha, 21, no Gonzaga. Consulta de programação e compra de ingressos neste link: https://vendaonline.cineflix.com.br/cinema/SAN



"Megan 2.0" (Megan 2.0"). Ingressos on-line neste linkGênero: terror, ficção científicaClassificação: 14 anos. Duração: 2h04. Direção: Gerard Johnstone. Roteiro: Gerard Johnstone, Akela CooperElenco: Ana de Armas, Ian McShane, Anjelica Huston. Sinopse: BDois anos após M3GAN sair do controle, sua criadora, Gemma, tornou-se defensora da regulamentação da I.A. Confira os horários: neste link

Trailer "Megan 2.0"



Leia + 

: Crítica: "M3gan" é terror que julga a dependência da tecnologia

.: "M3GAN 2.0", aguardada sequência do thriller, chega aos cinemas

.: Crítica: "Acompanhante Perfeita" é a objetificação da mulher em suspense 10

.: "Superman": herói menos mártir e mais humano chuta sombras da DCU


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com.

O melhor filme do "Superman" de todos os tempos não tem vergonha de ser solar - e isso é revolucionário. Em tempos em que super-heróis se tornaram mártires sisudos ou memes ambulantes, o filme estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, dia 10 de julho, após anos em que o personagem foi soterrado por versões sombrias e soturnas. O filme devolve ao kryptoniano a leveza, a compaixão e a fé na bondade humana. E faz isso sem soar ingênuo - pelo contrário: este é, talvez, o "Superman" mais consciente, político e espirituoso já feito.

O novo longa-metragem de James Gunn não só resgata o idealismo que sempre foi a essência do herói, mas faz isso com ironia, consciência geopolítica e uma química tão explosiva entre os protagonistas que faz qualquer outro casal Clark/Lois parecer encenação de formatura. David Corenswet encarna um Superman que não é aquele escoteiro de moral imaculada, mas um herói humano demais: arrogante em certos momentos, cego em outros, e brilhantemente perdido entre salvar o mundo e pagar o aluguel. 

E a mágica acontece quando entra em cena a Lois Lane de Rachel Brosnahan - espirituosa, sagaz, com faro jornalístico afiado e, finalmente, com olhos que não se enganam diante de um par de óculos. Esqueça a Lois enganada por um disfarce ridículo. Aqui, ela sabe. E isso muda tudo. James Gunn, recém-egresso da Marvel e dos irreverentes personagens de "Guardiões da Galáxia", aplica no filme a mesma alquimia: ação com afeto, humor com consciência e personagens que se contradizem, erram e brilham. "Superman" tem cenas épicas, mas são os detalhes que encantam.

Nicholas Hoult oferece um Lex Luthor de digestão lenta: não é o vilão megalomaníaco instantâneo que o público está habituado a ver, mas uma ameaça que fermenta, cínica e atual, como os verdadeiros tiranos dos tempos de hoje. Gunn não se furta a críticas diretas - há sátiras impiedosas às redes sociais, à cultura da performance e aos ditadores de sempre. Há humor inteligente, que não teme rir da própria mitologia. 

É como se o Superman tivesse bebido do espírito anárquico dos Guardiões da Galáxia, mas com luz solar ao invés de sarcasmo sombrio dos filmes da DC Comics. Há até algo do lirismo dos primeiros "Homem-Aranha", de Sam Raimi, na forma como Gunn filma entre a leveza do voo e a melancolia do dever. O elenco de apoio é um trunfo à parte. Skyler Gisondo é um Jimmy Olsen deliciosamente fora do eixo, enquanto Sara Sampaio surpreende como uma Eve Teschmacher magnética, charmosa e tão tridimensional que merecia um spin-off

Mas quem de fato sequestra o coração da plateia é Krypto, o cachorro da Supergirl. Brilhando em todas as cenas, ele é o elo afetivo entre a insanidade dos poderes e a necessidade de carinho. Falando em Supergirl, Milly Alcock surge como uma força da natureza: imperfeita, irreverente e caótica. Em pouco tempo de tela, ela convence o público de que o futuro da DC pode ser mais feminino, imprevisível e complexo. 

O filme ainda introduz, com timing cômico preciso, heróis como Senhor Incrível (Edi Gathegi) e Lanterna Verde (Guy Gardner) . Eles aliviam a tensão sem parecerem alívio cômico: são presenças integradas, vivas, parte da engrenagem de um universo que parece, pela primeira vez em anos, realmente conectado.

A crítica social está por toda parte: das sátiras mordazes aos ditadores até a zombaria elegante da idiotização causada pelas redes sociais. "Superman" fala de guerras, poder, ego e influência - tudo isso com a leveza de quem não precisa gritar para ser ouvido. O longa sabe onde pisa, e cada fala tem uma espinha crítica sutil, porém contundente. E, sim, há duas cenas pós-créditos. No final, "Superman" não devolve ao público apenas o personagem, mas um sentimento quase extinto nos tempos atuais: a esperança. E isso, vindo de Hollywood, é quase um superpoder.


Assista no Cineflix mais perto de você
As principais estreias da semana e os melhores filmes em cartaz podem ser assistidos na rede Cineflix CinemasPara acompanhar as novidades da Cineflix mais perto de você, acesse a programação completa da sua cidade no app ou site a partir deste link. No litoral de São Paulo, as estreias dos filmes acontecem no Cineflix Santos, que fica no Miramar Shopping, à rua Euclides da Cunha, 21, no Gonzaga. Consulta de programação e compra de ingressos neste link: https://vendaonline.cineflix.com.br/cinema/SANO Resenhando.com é parceiro da rede Cineflix Cinemas desde 2021.

Programação do Cineflix Santos
“Superman” | Sala 4
Classificação:
 PG13. Ano de produção: 2025. Idioma: inglês. Direção: James Gunn. Elenco: David Corenswet, Rachel Brosnahan, Nicholas Hoult e outros. Duração: 2h09. Cenas pós-créditos: sim. Cineflix Santos | Miramar Shopping | Rua Euclides da Cunha, 21 - Gonzaga - Santos/SP.


Dublado
9/7/2025 - Quarta-feira: 15h40
10/7/2025 - Quinta-feira: 15h40
11/7/2025 - Sexta-feira: 15h40
12/7/2025 - Sábado: 15h40
13/7/2025 - Domingo: 15h40
14/7/2025 - Segunda-feira: 15h40
15/7/2025 - Terça-feira: 15h40
16/7/2025 - Quarta-feira: 15h40


Legendado
9/7/2025 - Quarta-feira: 18h20 e 21h00
10/7/2025 - Quinta-feira: 18h20 e 21h00
11/7/2025 - Sexta-feira: 18h20 e 21h00
12/7/2025 - Sábado: 18h20 e 21h00
13/7/2025 - Domingo: 18h20 e 21h00
14/7/2025 - Segunda-feira: 18h20 e 21h00
15/7/2025 - Terça-feira: 18h20 e 21h00
16/7/2025 - Quarta-feira: 18h20 e 21h00



terça-feira, 8 de julho de 2025

.: "Cidade Partida - 30 Anos Depois" é o relato de um Brasil que ainda sangra


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com.

Quando Zuenir Ventura lançou "Cidade Partida" em 1994, o Brasil ainda não havia cicatrizado as feridas da chacina da Candelária e do massacre em Vigário Geral. O que o jornalista fez não foi apenas reportar: foi desvelar, palavra que, aliás, aparece com frequência nos depoimentos que compõem esta nova edição-homenagem, organizada por Elisa Ventura, Isabella Rosado Nunes e Mauro Ventura. Trinta anos depois, a expressão que Zuenir criou virou clichê e, pior, realidade permanente.

"Cidade Partida - 30 Anos Depois", publicado pela Pallas Editora, não é uma simples reedição com nova capa ou posfácio requentado. É um mergulho coletivo na ferida aberta por um dos livros-reportagem mais contundentes da história recente. É também um tributo ao ofício do jornalismo que ainda ousa ouvir vozes silenciadas, ao poder da escuta como gesto político e, sobretudo, a um homem de 93 anos que ainda sonha com uma cidade unida.

Com uma entrevista inédita de Zuenir realizada em 2024, e reflexões assinadas por nomes como Luiz Eduardo Soares, Tainá de Paula, Silvia Ramos e Eliana Sousa Silva, o livro atualiza a pergunta que jamais deveria ter sido esquecida: quantas cidades cabem dentro do Rio de Janeiro? Zuenir relata, com a simplicidade que só os grandes dominam, a incursão de dez meses em Vigário Geral após a chacina de 1993. 

Como um homem branco da Zona Sul que ousou atravessar os túneis - físicos e simbólicos - que separam o “asfalto” da favela, ele oferece ao leitor, ainda hoje, uma lição de desconforto. Não o desconforto do medo, mas o do espanto ético: como pode um país suportar tanta desigualdade e ainda fingir normalidade? A crítica que se fazia em 1994 é dolorosamente atual. 

Se antes se falava de uma “cidade partida”, hoje Zuenir admite: existe uma cidade “tripartida”, tomada por narcomilícias, milícias, Estado paralelo e um poder público ausente - ou, pior, conivente. Os textos que acompanham esta edição especial ampliam a obra original. São vozes que vivem e pensam o Rio de Janeiro das múltiplas violências e resistência e questionam o rótulo de “cidade partida” como um reducionismo perigoso. 

Eliana Sousa Silva, por exemplo, afirma que não se trata de uma cidade cortada ao meio, mas de uma cidade estruturalmente desigual, onde o racismo, a exclusão e a hierarquização da vida moldam o espaço urbano. O livro acerta ao propor um contraponto geracional, ao mesclar especialistas, ativistas, artistas, educadores e moradores de favelas. A entrevista com DJ Marlboro - ao lado de Juju Rude e Anderson Sá - mostra que o funk, há décadas demonizado, foi e ainda é uma das linguagens que mais conecta as margens ao centro, embora siga sendo desmerecido por isso.

"Cidade Partida - 30 Anos Depois" é um livro necessário e que exige um posicionamento ético. Quem ainda se emociona com a beleza do Rio de Janeiro precisa, antes, encarar a feiura social. Quem sonha com um Brasil mais justo, deve ouvir os ecos entre os muros que separam os ricos dos pobres. O livro-reportagem virou um conceito, uma lente através da qual o Brasil passou a enxergar o Rio de Janeiro - e, por extensão, as próprias contradições.

O que se encontra neste volume é um testemunho coletivo sobre o espanto que persiste. O susto de perceber que a realidade pouco mudou desde as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, eventos que motivaram Zuenir a mergulhar por dez meses na favela de Vigário, acompanhado pelo sociólogo Caio Ferraz, na tentativa de entender o que há por trás da violência, da exclusão e da indiferença.

Mais do que denunciar, o livro propôs escuta. A nova edição reflete sobre os avanços, os retrocessos e as permanências da desigualdade urbana. A obra reúne também entrevistas com personagens emblemáticos como Rubem César Fernandes, Manoel Ribeiro, José Junior e João Roberto Ripper. A crítica social que antes soava como alerta agora ecoa como a crônica de uma tragédia anunciada, diante do fortalecimento de milícias e da ausência efetiva do Estado em territórios inteiros.

O mérito maior da publicação está em reconectar o jornalismo literário de Zuenir Ventura à realidade presente, sem perder de vista a complexidade da cidade. O relato do jornalista ao entrevistar o traficante Flávio Negão - com quem conversa tentando entender não apenas os crimes, mas as motivações, a lógica de sobrevivência e o senso de humanidade - continua sendo um dos pontos mais polêmicos e valiosos da obra. Não por glamurizar o criminoso, mas por se recusar a desumanizá-lo.

Trata-se de uma edição que também atualiza o debate sobre representatividade, políticas públicas, cultura periférica, direito à cidade e racismo estrutural. "Cidade Partida - 30 Anos Depois" é, portanto, um documento vivo, provocador e necessário. É o Brasil que se vê dividido e precisa, mais do que nunca, reagir. Talvez o momento mais comovente da obra esteja na voz do próprio autor. 

Quando ele diz, com certa frustração, que ainda não conseguiu escrever o livro sobre a “cidade unida” que tanto sonhou, não se ouve a resignação de um jornalista veterano, mas a persistência de um ideal: o de que narrar o abismo é também uma forma de construir pontes. Compre o livro "Cidade Partida - 30 Anos Depois" neste link.


sexta-feira, 4 de julho de 2025

.: Entrevista com Camila Anllelini: entre o amor e o ódio, ela decidiu escrever


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação

Se Freud tivesse Instagram, talvez stalkeasse Camila Anllelini com a mesma obsessão com que investigava a mente humana - não por voyeurismo, mas por pura fascinação diante de uma mulher que transforma trauma em literatura, dor em bisturi e amor materno em campo de batalha emocional. "De Amor e Outros Ódios" não é somente um livro. É uma ferida aberta que tem letra de filha machucada e psicanalista que observa.

O que Camila faz com essa matéria-prima íntima beira o indecente: ela convida o leitor a ler as cartas que nunca enviou, escancara a criança que quis consertar a mãe e ri - com ares de provocação - da coragem que levou anos para decantar. A personagem do livro escreve para a mãe. A autora escreve a partir da mãe. Mas e se essa mãe respondesse? E se fosse Freud o destinatário dessas confissões de filha? E se o amor não fosse apenas o oposto do ódio, mas a forma mais refinada desse sentimento? Nesta entrevista exclusiva, Camila Anllelini mergulha fundo.

Fala da psicanálise como quem se despe no divã, confessa contradições que a maioria sufoca com mantras de autoajuda, e revela que escrever - diferentemente de clinicar - é estar exposta, sem jaleco, sem diagnóstico e sem salvação. É um território em que não há frases de efeito, muito menos respostas terapêuticas. Só verdades perigosas, perguntas espinhosas e uma escritora que lembra o tempo todo que muitas vezes só dá para amar depois de sobreviver. Compre o livro "De Amor e Outros Ódios" neste link.


Resenhando.com - ⁠Sua personagem escreve cartas à mãe, mas se ela respondesse, que tipo de carta você acredita que ela escreveria de volta?
Camila Anllelini - Seriam bilhetes culpados, melancólicos. Porque essa é a mãe do "De Amor e Outros Ódios", a mãe que pôde ser, mas não de um lugar pacificado.


Resenhando.com - ⁠Você diz que precisou "esperar a ebulição da história" antes de escrever. Na sua vida, o que costuma explodir primeiro: o coração, o texto ou o silêncio?
Camila Anllelini - O silêncio, sempre o silêncio. O texto é um contorno aos "não ditos", o que pode emergir depois da decantação dos fatos que me capturam. O coração vem junto, a reboque, aos tropeços.


Resenhando.com - ⁠Em um mundo onde “ser mãe” ainda é cercado por idealizações tóxicas, seu livro é quase um ato político. Você acha que amar a mãe é, de certa forma, também sobreviver a ela?
Camila Anllelini - Sim. Se não sobrevivermos a ela, apesar do que nos aconteceu, não poderemos amá-la. Acredito que é preciso uma certa revolta pra se descolar da mãe ideal, essa que o sujeito enquanto filho ou filha deposita tantas expectativas, para podermos então entender quem somos além e apesar dela. Essa separação, quando bem sucedida, é uma das possibilidades para o amor.


Resenhando.com - ⁠Na sua escrita há psicanálise, dor e beleza. Já pensou que escrever pode ser mais arriscado do que clinicar? Algum texto seu já revelou algo que nem você sabia sobre si?
Camila Anllelini - Sem a menor sombra de dúvidas escrever é muito mais arriscado do que clinicar (risos). Na clínica, quem diz de si é o paciente. Na literatura, são os personagens dizendo da escritora. Com muita frequência, algo até então desconhecido se revela de mim. Escrever é lidar com um duplo.


Resenhando.com - ⁠Se Freud lesse seu livro, qual hipótese ele teria sobre sua personagem filha - e qual diagnóstico você daria a ele, caso ele fosse seu paciente?
Camila Anllelini - Aposto que Freud teria afeição pela personagem como teve com suas pacientes histéricas. Foi em nome delas que ele criou a psicanálise. A histérica não nega seu desejo, ela se implica no próprio sintoma, sendo capaz de fabricar um desejo para não ser satisfeito e assim se manter desejante. No deslizar entre um desejo e outro, ela vira especialista em denunciar a falta. A histérica tem um corpo que fala, que reivindica, e disso se constituem as histórias.


Resenhando.com - ⁠O que há de mais feio que você escreveu neste livro e decidiu manter?
Camila Anllelini - ”Eu achava que a minha mãe precisava de conserto”. Essa é uma posição infantil que não concebe a mãe como sujeito de si, como mulher, como ser desejante. Aos olhos da criança que escreveu isso por mim, a mãe é uma engrenagem que deve funcionar a serviço de suas leis, ou seja, nos moldes da sua demanda de amor.


Resenhando.com - ⁠Se a psicanálise é, muitas vezes, o exercício de escutar o indizível, o que você ainda não teve coragem de escrever sobre sua mãe - e o que ela talvez nunca tenha ousado ler em você?
Camila Anllelini - Tenho uma mãe que sempre abriu espaço para que eu dissesse, ainda que isso pudesse - e certamente eu o fiz - despedaçá-la. Foi dela que tive desde o início a permissão de dizer. Se tem alguém que me conhece no osso e me ama ainda assim, esse alguém é minha mãe.


Resenhando.com - ⁠Você diz que admirava a ideia de ter uma estante que precisasse de escada. Hoje, o que te faz subir escadas literárias: o desejo de ser lida ou o risco de não caber mais em si mesma?
Camila Anllelini - As duas coisas. O desejo de ser lida indubitavelmente me move degrau por degrau escada a cima, mesmo que eu acredite que ela nunca vai ter fim e que possivelmente terá. Mas o que possibilita que eu suba cada um desses degraus é a escrita. Ela precisa vir primeiro para que eu tenha o que levar comigo, e eu escrevo primordialmente porque, com frequência, não caibo em mim.


Resenhando.com - ⁠Você trabalha com contradições. Mas há alguma contradição que ainda a incomoda aceitar, mesmo sabendo que ela é inevitável?
Camila Anllelini - Todas. A aceitação não é sem incômodo, eu sou uma eterna inconformada. Faço perguntas, entro em conflitos e me pego querendo refazer a ordem do mundo. Mas saber que é inevitável é também um alento. Sem abrir espaço para a contradição a gente endurece, só consegue ver sempre a mesma rota de saída, isso não me interessa.


Resenhando.com - ⁠Se sua mãe nunca lesse esse livro, você ainda o escreveria da mesma forma? Ou a escrita só nasceu porque havia a chance - secreta ou desesperada - de que ela um dia o lesse?
Camila Anllelini - Esse livro foi escrito porque eu precisava escrevê-lo, nunca se sabe o que leva um escritor a correr tamanho risco. Não fui eu que escolhi, foi essa história que me escolheu para ser escrita. Por acaso, nela aparecia a figura da minha mãe. Agradeço ter podido fazer essa declaração a ela em vida e, além disso, sem imaginar que seria assim, essa história ter chegado aos leitores como um pedaço das suas próprias histórias. Desde a publicação essa têm sido uma grata surpresa.


sábado, 28 de junho de 2025

.: Crítica: "Elio" é versão masculina de Lilo sem um Stitch criador do caos

Por: Mary Ellen Farias dos Santos, editora do Resenhando.com

Em junho de 2025


A nova animação Disney "Elio" entrega o colorido Disney de encher os olhos do público diante da telona do cinema enquanto conta a história de um garotinho sem os pais, tendo que morar com uma tia que não sabe como lidar com uma criança. Vivendo em plena solidão, ainda que a mulher se desdobre para tentar mantê-lo em seu cotidiano corrido, o pequeno apaixonado por astrologia Elio pede para ser abduzido. 

Eis que um dia, as preces do garoto se concretizam. Fora da Terra, ele percebe que tudo não passou de um mal-entendido com os extraterrestres, uma vez que o garotinho não é o grande líder daqui. De fato, fica o questionamento, quem neste planeta estaria apto para tamanha representatividade, não é mesmo? 

Tentando parecer o autêntico representante dos humanos, Elio faz amizade com uma criatura sem olhos que está prestes a seguir, por obrigação, os passos do pai, vestindo uma carapaça para enfrentar batalhas. Em meio a fingimentos de ser quem não é ou tentar manter as aparências a história acontece, mas até o fim deixa o sentimento de que falta um liga. Não conversa, de fato, com o público a releitura da Lilo em versão masculina.

Sem despertar qualquer sentimento de envolvimento em quem está diante de toda a história, "Elio" faz brilhar os olhos com as cores que explodem na tela de cinema. Apenas. Sem originalidade, a animação deixa um ranço de superficialidade e repete o feito de "Mundo Estranho", colorido lindo numa trama que não envolve. 

Também pudera, "Eliotem todo um toque da pequena Lilo, porém aqui, não vive com a irmã após a morte dos pais, mas com a tia e ainda faz amizade com um ser bobinho e sem o carisma e caos de Stitch. Sem graça, nem mesmo um diferencial apresenta. Vejamos Stitch, uma criação com alto grau de maldade que muda por conta de uma garotinha, Glordon só quer ser feliz.

"Elioé mais uma história de alguém sem amigos e com o propósito de buscar  o desconhecido. Tanto é que o garoto sai do planeta no estilo do clipe "Not The End of The World" da cantora Katy Perry, com o visual aproximado de "Mundo Estranho""Elio" é agradável de se assistir pela estética, mas não mexe com a emoção do público, simplesmente acontece tal qual como uma produção para cumprir o cronograma.


O Resenhando.com é parceiro da rede Cineflix Cinemas desde 2021. Para acompanhar as novidades da Cineflix mais perto de você, acesse a programação completa da sua cidade no app ou site a partir deste link. No litoral de São Paulo, as estreias dos filmes acontecem no Cineflix Santos, que fica no Miramar Shopping, à rua Euclides da Cunha, 21, no Gonzaga. Consulta de programação e compra de ingressos neste link: https://vendaonline.cineflix.com.br/cinema/SAN



"Elio" (Elio). Ingressos on-line neste linkGênero: aventura, ficção científicaClassificação: livre. Duração: 1h39. Direção: Adrian Molina, Domee Shi, Madeline SharafianRoteiro: Julia Cho, Mark Hammer, Mike JonesElenco (vozes): Yonas Kibreab Zoe Saldaña Jameela Jamil Brad Garrett. Sinopse: Elio se vê transportado pela galáxia e é confundido com o embaixador intergaláctico da Terra.. Confira os horários: neste link

Trailer "Elio"


Leia + 

.: Crítica: "Lilo & Stitch" em live action é mais lento e dramático que a animação.: Crítica: "Mundo Estranho" traz protagonismo gay e criaturas coloridas

.: Crítica: "Wish: O Poder dos Desejos" resgata essência encantadora da Disney

.: Resenha crítica de "Enrolados", animação Disney

.: Crítica: "Wicked" é perfeito, embora entregue somente primeira parte

sexta-feira, 27 de junho de 2025

.: Crítica: “F1 - O Filme” acelera com emoção e homenagens a Ayrton Senna

Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com.

Brad Pitt está na melhor forma. E isso não é força de expressão. Em "F1 - O Filme", novo longa-metragem da Apple Original Films em cartaz nos cinemas e distribuído pela Warner Bros., o astro retorna aos cinemas como Sonny Hayes, um ex-piloto de Fórmula 1 que sai da aposentadoria para mentorar um jovem talento da equipe fictícia APXGP. O novato em questão é vivido por Damson Idris. A dupla de protagonistas tem química, tensão e humanidade de sobra.

Dirigido por Joseph Kosinski, o mesmo de "Top Gun: Maverick", o filme carrega a assinatura visual e narrativa que o consagrou como o cineasta dos heróis em crise de identidade que reencontram o propósito. Assim como Maverick, Sonny Hayes é o veterano arredio, sedento por liberdade, que volta às pistas não apenas para guiar carros, mas para guiar vidas - a sua própria e a de Pearce, interpretado por Idris.

O longa-metragem acerta em cheio ao unir tiradas sarcásticas ao glamour e à adrenalina da Fórmula 1. Além disso, há um enredo emocional e bem calibrado e cenas de tirar o fôlego, registradas durante os fins de semana reais do Grande Prêmio. O filme misturando ficção e realidade com uma imersão rara no cinema esportivo. A trilha sonora pontua cada curva com inteligência - rock, batidas eletrônicas e temas orquestrados reforçam tanto a velocidade quanto o estado de espírito dos personagens.

A atuação de Brad Pitt dá o tom certo ao personagem. Aos 61 anos, o olhar cansado, a ironia contida e a entrega física lembram que ele não é apenas um galã dos anos 90 – e o filme brinca com isso de maneira divertida e afiada. Em vários momentos do filme, o personagem de Damson Idris o chama pejorativamente de “anos 90”, como se estivesse ultrapassado. Na vida real, foi justamente naquela década que Pitt despontou com força em "Clube da Luta", "Seven" e "Doze Macacos". Agora, ele ressurge, como o próprio Sonny, com mais consciência e profundidade.

Damson Idris, por sua vez, brilha como Joshua Pearce, o jovem piloto cheio de talento e inseguranças. O ator britânico, conhecido pelo trabalho na série "Snowfall", finalmente se consolida como um nome forte da nova geração. A entrega dele é crua e sensível, equilibrando competitividade e vulnerabilidade com naturalidade. Tanto Idris quanto Pitt compartilham um ponto em comum na trajetória: ambos são atores que começaram com papéis promissores e ganharam respeito com o tempo, construindo personagens cada vez mais densos. "F1" é o encontro dessas duas forças em plena curva ascendente.

Produzido também pelo heptacampeão Lewis Hamilton, o filme acerta ao prestar diversas homenagens a Ayrton Senna - desde visuais que remetem ao piloto brasileiro até pequenas falas que evocam a presença dele no esporte. Para o público brasileiro, são momentos de respeito ao legado do campeão brasileiro. Além da dupla central, o elenco de apoio também entrega atuações consistentes. Kerry Condon, Javier Bardem e Tobias Menzies elevam o nível dos bastidores das escuderias, trazendo peso dramático e humor na medida certa. 

No fim das contas, "F1" não é apenas um filme sobre velocidade. É sobre legado, reconciliação e coragem. A coragem de voltar quando todos pensam que você já ficou para trás. A coragem de acelerar mesmo com medo da curva seguinte. E, sobretudo, a coragem de passar o bastão sabendo que ele está em boas mãos. Para Brad Pitt, é um lembrete do porquê ele continua sendo um dos grandes. Para Damson Idris, a largada de uma trajetória que ainda vai longe.

Assista no Cineflix mais perto de você
As principais estreias da semana e os melhores filmes em cartaz podem ser assistidos na rede Cineflix CinemasPara acompanhar as novidades da Cineflix mais perto de você, acesse a programação completa da sua cidade no app ou site a partir deste link. No litoral de São Paulo, as estreias dos filmes acontecem no Cineflix Santos, que fica no Miramar Shopping, à rua Euclides da Cunha, 21, no Gonzaga. Consulta de programação e compra de ingressos neste link: https://vendaonline.cineflix.com.br/cinema/SANO Resenhando.com é parceiro da rede Cineflix Cinemas desde 2021.


Programação do Cineflix Santos
"F1 - O Filme" | Salas 1 e 3
Classificação: 16 anos. Ano de produção: 2025. Idioma: inglês. Direção: Joseph Kosinski. Elenco: Brad Pitt, Damson Idris, Kerry Condon, Javier Bardem e Tobias Menzies12. Duração: 2h36m.
Cineflix Santos | Miramar Shopping | Rua Euclides da Cunha, 21 - Gonzaga - Santos/SP.

26/6/2025 - Quinta-feira: 15h10, 17h20 e 20h30
27/6/2025 - Sexta-feira: 15h10, 17h20 e 20h30
28/6/2025 - Sábado: 15h10, 17h20 e 20h30
29/6/2025 - Domingo: 15h10, 17h20 e 20h30
30/6/2025 - Segunda-feira: 15h10, 17h20 e 20h30
1°/7/2025 - Terça-feira: 15h10, 17h20 e 20h30
2/7/2025 - Quarta-feira: 15h10, 17h20 e 20h30

segunda-feira, 16 de junho de 2025

.: Leonardo Simões: identidade, crise e poesia no Brasil do ornitorrinco


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Fabio Audi

“Pretinho é camaleão, sabe?” Com essa frase que ecoa como verso e diagnóstico, Leonardo Simões sintetiza o espírito de seu livro de estreia, "Folha de Rosto", publicado pela Mondru Editora. Mineiro de nascença, paulista por adoção e poeta por combustão interna, o autor mergulha nas contradições do Brasil recente para transformar identidade, afeto e política em matéria literária. É um autor consciente de que escrever hoje é, também, um ato de sobrevivência.

Escrito entre 2018 e 2022, período em que “o Brasil virou um meme de si mesmo”, o livro assume a forma de um romance em poemas, um dossiê lírico sobre um país onde apelidos machucam, onde relações desmoronam por ideologia e onde “a identidade, que antes era criada a partir da autenticidade, virou um tipo de produto”. Para Leonardo, escrever "Folha de Rosto" foi mais do que publicar versos: foi enfrentar seus próprios estilhaços e decidir “quais tradições, costumes e relacionamentos você vai dar o sangue pra não perder nunca”.

Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, o autor fala sobre racismo, arte como resistência, a tensão entre forma e conteúdo e o perigo de se perder no personagem. Com franqueza e delicadeza, ele convida o leitor a olhar o país pelo reflexo torto de um espelho onde, talvez, o que apareça seja um ornitorrinco.

Resenhando.com - “Folha de Rosto” é um romance em poemas, mas também soa como um dossiê emocional da vida no Brasil recente. Escrever poesia em tempos de polarização é um ato de ingenuidade, resistência ou desespero?
Leonardo Simões - 
Acho que é um pouco dos três. Recentemente, assisti uma peça - chamada “Poema” - que parte dessa mesma pergunta. O certo é que a arte é um ponto cardeal quando o caos se instala. Não por acaso, a arte é a primeira coisa a ser limada e atacada por qualquer regime totalitarista. A polarização não pode resistir à poesia, ao teatro, ao cinema e aos demais processos criativos.


Resenhando.com - Em um país onde "pretinho" ainda vem carregado de camadas - do afeto disfarçado ao racismo não admitido - como foi para você transformar essa palavra em literatura sem diluir sua dor?
Leonardo Simões - O distanciamento é necessário para se criar uma imagem que absorva mais de uma dor. A poesia, de certa forma, é uma imagem. Para trabalhar o afeto e o racismo nesta tão tensa como a palavra “pretinho” sugere, para mim, foi importante não somente traduzir experiências pessoais, mas encontrar o ponto que está fora desse raio de visão, algo que atraia outros afetos, sejam eles bons ou ruins.


Resenhando.com - Seu livro começa com um apelido. Num país que adora apelidar tudo - do presidente ao entregador -, você diria que o Brasil tem vocação para batizar ou para reduzir alguém?
Leonardo Simões - 
Acho que sim. Faz parte do nosso jeitinho ser “cordial”. Mas a redução - ou os apelidos, como você citou - não demonstram carinho. Ao contrário, podem ser mecanismos para reduzir, para tirar a identidade do indivíduo. Veja “neguinho", por exemplo, o modo como essa palavra, dependendo do contexto, atinge níveis distintos de compreensão.


Resenhando.com - A fragmentação da identidade do protagonista ecoa a de muitos brasileiros. Mas... e você, Leonardo: ainda se sente às vezes um “camaleão de classe média preta em crise permanente”?
Leonardo Simões - 
Não um “camaleão de classe média”, mas sim “em crise permanente". Com as redes sociais, pulverizar sua própria identidade ficou fácil demais. Você apaga defeitos, edita falas, assume lados sem se aprofundar e pode ignorar tudo isso apenas descendo o feed por horas e rindo de memes. A identidade, que antes era criada a partir da autenticidade, virou um tipo de produto. Então, fica cada vez mais difícil entender o que se é, já que há mais influências e referências do que tempo para absorver a experiência. Para o camaleão, a camuflagem é seu mecanismo de defesa. Para gente, não usar todas essas camuflagens é que te livra do perigo de se perder no personagem. Manter a forma original, de certa forma, é estar em crise permanente. Consigo e com o mundo.


Resenhando.com - Entre Ferreira Gullar e o caos das redes sociais, onde você encontra mais material para escrever: nos clássicos da literatura ou nos comentários do YouTube?
Leonardo Simões - 
É impossível não ser cercado pelas redes sociais. E há diversos canais que colaboram para que os clássicos sejam conhecidos e lidos. Eu tento não me fechar em uma única, mas ficar sempre atento para aparecer e de certo modo me abastecer. Para mim, nesse momento, a fonte de pesquisa está conectada ao objetivo do trabalho. Para fazer “Folha de Rosto", reli a obra inteira do Ferreira Gullar algumas vezes durante o processo. O TikTok tem sido meu reduto. Finalizei uma dissertação de mestrado sobre o app, que se tornou um livro de ensaio, e também para a criação de outro livro. O que estou fazendo agora pede isso. Mas o valor dos clássicos está acima de tudo. É importantíssimo estar por dentro do que já foi escrito.


Resenhando.com - Seu livro pergunta se os casais terminam por amor ou por política. Quantos relacionamentos você perdeu entre 2018 e 2022?
Leonardo Simões - 
Acho que uns cinco, mais ou menos. O número parece pequeno, mas eram pessoas que estavam no convívio. Quando você se vê em lados tão opostos, ou o rompimento é definitivo ou dá pra ser moderado, encontrar um caminho mais próximo do meio… o importante, acredito, não é bem quantos relacionamentos foram perdidos, mas quais foram mantidos. Perder relacionamentos, seja pela política ou não, faz parte da vida. Vai acontecer. As coisas sempre vão mudar. A batalha mesmo é escolher o que vai ser mantido, quais tradições, costumes e relacionamentos você vai dar o sangue pra não perder nunca.


Resenhando.com - "Folha de Rosto" poderia ser lido como um diário íntimo ou um relatório sociológico - mas você o chama de romance. Isso foi uma decisão estética, afetiva ou política?
Leonardo Simões - 
Fico feliz pelo “relatório sociológico", mas essa nunca foi a intenção. A decisão por chamá-lo assim se dá por sua forma esguia, já que é um livro cujo conteúdo foca em alguém na busca por compreender sua identidade. Para isso, prosa e poesia parecem disputar o espaço dessa “voz”. Então, a forma tenta se conectar ao conteúdo. Ou o conteúdo busca delimitar a forma. A dúvida também faz parte dessa “decisão”.


Resenhando.com - O Brasil de 2018 a 2022 foi um laboratório de distorções. Ao escrever nesse intervalo, você teve mais medo de parecer panfletário ou de ser lido como neutro?
Leonardo Simões - 
Ótima pergunta. Mas não tive medo de ser lido como panfletário. O livro foge disso. No poema “ex-filho", por exemplo, a "voz” está muito mais próxima de alguém egoísta, abominável e narcisista. Criar essa tensão parecia importante para mostrar que mesmo as pessoas engajadas politicamente tem suas contradições. “Sobre Isto", livro do poeta Maiakovski, é uma briga feia dele com sua esposa, relatada em versos ferinos. O poema, Inclusive, serve de referência para “banho”, um texto do livro que também fala de uma desavença entre o casal. Sobre ser neutro, também não tive esse medo porque “Folha de Rosto” não defende uma ideia política, mas poética. A partir daí, cada um escolhe o “estilhaço” que vai usar para se defender (ou atacar).


Resenhando.com - Você transita entre a criação publicitária e a literatura. O que dá mais trabalho: vender um carro ou convencer um leitor a sentir?
Leonardo Simões - 
Vender um carro dá mais trabalho porque trabalha em uma única chave: convencer alguém a comprar alguma coisa. Na literatura, você pode frustrar, contrariar, irritar e uma infinidade de outras possibilidades sem que “agradar" seja prioridade. Aliás, não é. Se a literatura só quer agradar o cliente, aí vira publicidade…


Resenhando.com - Você escreveu “Pretinho é camaleão, sabe?”. E se hoje o Brasil se olhasse no espelho, que bicho ele veria?
Leonardo Simões - Um ornitorrinco: um mamífero que põe ovos, semiaquático, que não é ave, mas tem bico de pato e rabo de esquilo. Hoje, a política, a cultura e os relacionamentos no Brasil nunca foram tão confusos quanto olhar para um ornitorrinco.


Postagens mais antigas → Página inicial
Tecnologia do Blogger.