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domingo, 2 de novembro de 2025

.: Crítica: "Springsteen: Salve-me do desconhecido" fundamenta depressão

 
Cena de "Springsteen: Salve-me do desconhecido", em cartaz na Cineflix Cinemas de Santos


Por: Mary Ellen Farias dos Santos, editora do Resenhando.com

Em novembro de 2025


A cinebiografia "Springsteen: Salve-me do desconhecido", dirigida por Scott Cooper, também ator, roteirista e produtor americano apresenta um recorte marcante na história de Bruce Frederick Joseph Springsteen, mais conhecido como o cantor Bruce Springsteen, quando a música e a vivência dele com o pai foram reviradas enquanto preparava o álbum "Nebraska", em 1982, o que aflorou um lado depressivo e complicado para quem o cercava.

Com uma fotografia impecável, a produção com direção de arte de Stefania Cella entrega locações realistas ainda que não mais existam. Por meio da recriação, do icônico Asbury Park e seu carrossel coberto, no Carousel House, em Nova Jersey, a telona de cinema estampa cenas belas e ultra românticas entre o jovem Bruce (Jeremy Allen White) e Faye (Odessa Young). Contudo, vale ressaltar que na personagem estão reunidas várias das mulheres com quem o cantor esteve ao lado, logo, a Faye com carinha de Debbie Harry nunca existiu.


Em meio a uma personagem criada e recriações de lugares nos anos 80, o diretor Scott Cooper insistiu que o filme fosse gravado em locações reais em Nova Jersey, incluindo Freehold, Asbury Park, com o Stone Pony, o calçadão, a Convention Hall, o Frank's Deli, além de outras cidades, como Nova Iorque e Los Angeles, para garantir a autenticidade da história. De fato, não há como passar impune com o visual de "Springsteen: Salve-me do desconhecido", além do figurino impecável que a todo momento faz ver o verdadeiro cantor na atuação de Jeremy Allen White. Seja na jaqueta de couro preta, a calça justinha no bumbum ou a camisa xadrez. Tudo está lá.

A luta do cantor contra a depressão toma a narrativa de "Springsteen: Salve-me do desconhecido" e torna a produção sufocante, despertando no público o desejo de poder socorrer a voz de sucessos como "Dancing In the Dark ", "Glory Days", "Streets of Philadelphia", que não estão na trilha sonora do filme. Contudo, a grande vedete é "Nebraska", uma vez que é o centro da trama, a feitura do álbum. Na trilha sonora do longa também estão "Born in The U.S.A.", "Hungry Heart", "Lucille" e outras, inclusive de outros artistas como por exemplo, Dobie Gray com "Drift Away".

"Springsteen: Salve-me do desconhecido" envolve durante 1 hora e 59 minutos de duração, seja por caminhar numa fase da história da música americana e suas influências no mercado da época, mas por também focar nas relações tão difíceis de serem mantidas, ainda que seja entre pai e filho e as dificuldades de quem sofre de depressão. O longa é simplesmente excelente. Imperdível!


"Springsteen: Salve-me do desconhecido" (Deliver Me From Nowhere). Direção: Scott Cooper Roteiro: Scott Cooper, baseado no livro Deliver Me from Nowhere: The Making of Bruce Springsteen's Nebraska de Warren Zanes. Gênero: Drama, Biografia, Musical. Duração: 2 horas. Ano de Lançamento: 2025 (no Brasil, estreou em 30 de outubro de 2025). Distribuição: Disney / 20th Century Studios. Elenco Principal: Jeremy Allen White como Bruce Springsteen Jeremy Strong como Jon Landau (empresário de Springsteen), Paul Walter Hauser como Mike Batlan, Stephen Graham como Douglas "Dutch" Springsteen (pai de Bruce), Gaby Hoffmann, Odessa Young. Sinopse:  A jornada de Bruce Springsteen na criação de seu álbum de 1982 "Nebraska", que surgiu enquanto ele gravava "Born in the USA" com a E Street Band.

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Trailer de "Springsteen: Salve-me do desconhecido"


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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

.: Crítica: "Se Não Fosse Você" resgata gênero romance com trama de traição

Cena de "Se Não Fosse Você", em cartaz na Cineflix Cinemas de Santos


Por: Mary Ellen Farias dos Santos, editora do Resenhando.com

Em outubro de 2025


Uma história de amor cheia de reviravoltas e capaz de arrancar suspiros na telona Cineflix Cinemas. O romance "Se Não Fosse Você", sai do mundo dos livros escritos por Colleen Hoover e vai para a telona transbordando paixões adormecidas (tanto de uma história iniciada há 17 anos como numa segunda que acontece detalhadamente diante do olhar do público). Em 1 hora e 56 minutos, a adaptação cinematográfica dirigida por Josh Boone, o mesmo do sucesso "A Culpa é das Estrelas", entrega de modo envolvente um drama familiar tão comum a ponto de permitir identificação com os personagens em certas situações.

Após apresentar o casal Morgan (Allison Williams, "M3gan") e Chris Grant (Scott Eastwood), ao lado da irmã da mocinha, Jenny Davidson (Willa Fitzgerald, série "Pânico") e o amigo Jonah Sullivan (Dave Franco, "Artista do Desastre"), a notícia de uma gravidez derruba possibilidades -lançadas por olhares. E assim acontece por 17 anos quando um acidente devastador revela uma traição chocante, levando Morgan e a filha, Clara (Mckenna Grace, "Ghostbusters") a serem mais próximas.


Contudo, um pouco antes do maior dilema da trama, no caminho da jovem surge Miller Adams (Mason Thames), filho de um garoto problema conhecido por Morgan, da época do colégio. Tentando guardar o maior segredo de família, mãe e filha, redefinem o amor e se redescobrem com interferências mais diretas de Jonah. Enquanto que a amiga de Clara, Lexie (Sam Morelos), é a personagem que traz leveza para o drama focado na complicação das relações.

Não há dúvida de que "Se Não Fosse Você" é um filme agradável de se acompanhar, mesmo tendo como base uma história de traição e perda de familiares. Seja pela trilha sonora, pela ambientação que inclui um cinema de cenário, ambiente de trabalho de Miller, sendo que Miller e Clara desejem trabalhar na área. É sempre bom ver o retorno do gênero romance com pitada de comédia -mesmo pesando no tema-, uma vez que é nítida a falta de produções atuais seguindo o gênero romance com pitada de comédia, sendo que no início dos anos 2000 perpetuou sucessos como "De Repente 30" e "Se Fosse Verdade". Vale a pena conferir!


"Se não fosse você". Diretor: Josh Boone. Elenco: Mckenna Grace (Clara Grant), Mason Thames (Miller Adams), Allison Williams (Morgan Grant), Dave Franco (Jonah Sullivan), Scott Eastwood (Chris Grant), Willa Fitzgerald (Jenny Davidson). Sinopse: Um acidente devastador revela uma traição chocante. Morgan Grant e sua filha, Clara, exploram o que restou enquanto confrontam segredos de família, redefinem o amor e se redescobrem.

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Trailer de "Se Não Fosse Você"


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terça-feira, 28 de outubro de 2025

.: Antonio Arruda usa a palavra como lâmina e transforma dor em linguagem


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com
Foto: divulgação

Premiado roteirista, jornalista e mestre em Teoria Literária, Antonio Arruda estreia na literatura com "O Corte que Desafia a Lâmina", publicado pela Editora Cachalote. O livro, que cruza autobiografia e ficção, nasce do confronto entre dor e linguagem. A obra mergulha nas zonas de tensão entre vida e morte, fé e erotismo, desejo e repressão, revelando um autor que transforma o trauma em matéria poética.

Essa relação entre ferida e palavra também atravessa sua trajetória no audiovisual - da série "Cidade Invisível" (Netflix) ao infantil "Era Uma Vez no Quintal" (TV Cultura). Com formação em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, Arruda propõe o que chama de “estética da cicatriz”: um modo de lidar com o real a partir da dor, mas sem vitimização. 

Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, ele fala sobre a voz do pai que ecoa em sua escrita, o perigo e a beleza de escrever a partir da lâmina e o corpo como território de revelação e enfrentamento - quando cada texto é uma tentativa de lidar com o que fere, mas também com o que cura. Compre o livro "O Corte que Desafia a Lâmina", de Antonio Arruda, neste link.


Resenhando.com - O seu livro começa a ser elaborado a partir da ausência da voz do pai. Você acredita que toda obra literária é uma tentativa de devolver a voz a alguém, mesmo que esse alguém seja um fantasma dentro de nós?
Antonio Arruda - Creio que o primeiro movimento seja o de ouvir essa voz. Seja ela interna, pessoal, ou de outros. Uma voz individual ou coletiva, social, política, existencial. Uma voz que tem algo a dizer. Que necessita ora gritar, ora sussurrar o não dito. E o escritor é aquele que se abre à escuta dessa voz. No meu caso, voltar ao trauma vivido quando tinha 12, 13, 14 anos e presenciei o adoecimento e a morte de meu pai, vítima de um câncer que lhe extirpou alguns órgãos e, consequentemente, a fala, me abriu um rasgo na realidade.E eu olhei através dele. Nesse sentido, a partir da não voz do pai, como eu digo no livro, nasceu a voz poética do filho. Então, sim, de certo modo eu dei voz a um fantasma que me assombrou durante muitos anos. Porque quando visitei meu pai no hospital e ele, já mudo, me entregou um pedaço de papel onde estava escrito: “está tudo bem, meu filho”, eu passei muito tempo refletindo sobre esse “está tudo bem”. Hoje, entendo que meu pai não se referia a ele - que obviamente não estava bem -, mas a mim, ao que ele desejava para mim, como se dissesse: “está tudo bem você ser feliz, apesar de; está tudo bem você viver a sua sexualidade, apesar de; está tudo bem você seguir o caminho que quiser em sua vida, apesar de este momento de perda ser muito doloroso”. Eu transformei o trauma em linguagem e ressignifiquei meus fantasmas internos.E, a partir daí, comecei a acessar dores, violências e traumas, como eu disse, existenciais, coletivos. Esse processo, creio, pode ser lido como uma forma de devolver a voz a alguém, de se apropriar do real em sua terrível crueza e, ao tentar perceber e sentir o que esse real pode revelar, valer-se da matéria-prima da escrita, que é a palavra, a linguagem, para verbalizar o que está nas entranhas, nos escombros desse real.


Resenhando.com - Em algum momento, escrever o salvou da própria lâmina, ou apenas ensinou você a manuseá-la melhor?
Antonio Arruda Se eu me salvasse da lâmina, não haveria escrita. Talvez tenha me ensinado, ou, melhor dizendo, me convocado a enfrentar a lâmina da realidade e transformá-la em lâmina-palavra. Ao assumir a palavra como lâmina que corta o corpo-livro e dá vida a ele, me vi mergulhado em um tensionamento constante entre experiência de vida e experiência literária. Não consigo conceber uma literatura que não nasça da experiência, seja ela, como eu mencionei, pessoal ou coletiva, histórica. Um dos meus livros de cabeceira é “O Arco e a Lira”, de Octávio Paz. Há um trecho do qual eu gosto muito: “A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são a nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade”. Escrever, nesse sentido, é testemunhar a realidade - no caso do meu livro, cortante, violenta, dilaceradora - para, assim, conferir-lhe um sentido outro, construído por meio de símbolos, metáforas, imagens poéticas, criando um espaço-tempo que passa a ser o literário, não mais o da vida, ainda que tão vivo e pulsante quanto ela própria.


Resenhando.com - No livro, o corpo é texto e o texto é corpo. Se a sua escrita tivesse um cheiro, uma textura e uma temperatura, como ela seria?
Antonio Arruda Teria o cheiro de um corpo que sangra, mas que também goza; o cheiro do suor que exala no momento do estertor, mas que também irrompe da pele no instante do orgasmo; o cheiro da natureza, muito presente no meu livro, a floresta, o mar, a terra, a brisa, que ora leva o leitor a sentir o terrível e o cruel, ora o epifânico, o etéreo, o impalpável espectral.Teria a textura do ferimento em carne viva e da cicatriz que o constitui como memória nesse corpo atravessado pela experiência da dor e de sua possível transmutação. Teria a temperatura quente, quase escaldante do sol que assola o velho do conto “O Devir”, por exemplo, e também o frio do cadáver do adolescente do conto “A Queda da Estrela”; ou, ainda, a temperatura morna e úmida dos musgos da árvore sobre os quais o personagem do conto “Nu” se senta e vive sua experiência de desejo e temor. Teria esses cheiros, essas texturas e essas temperaturas pois minha escrita nasce da ambivalência, das contradições, do tensionamento constante e inevitável entre pulsão de vida e de morte.


Resenhando.com - Você vem de uma trajetória sólida no audiovisual, na televisão, na Netflix. O que a literatura o permitiu dizer que a câmera jamais permitiria captar?
Antonio Arruda Vou responder seguindo por outro caminho: o que a literatura me permitiu fazer, que é, fundamentalmente, o trabalho, a experimentação com a linguagem. Por mais que na escrita de um roteiro a descrição dos cenários, o tom das cenas, a criação das falas dos personagens passem, obviamente, pela escolha das palavras, com a literatura é diferente. A literatura permite uma elaboração mais complexa. A busca pela palavra que melhor diz, que melhor revela o sentimento do personagem, a atmosfera desejada. A literatura possibilita - não que o audiovisual também não o faça, mas em outra medida, de outra maneira - a sugestão, o mistério que habita as entrelinhas do texto, e que só será revelado - e ressignificado - pelo leitor. Cabe a ele, e apenas a ele, no fim das contas, experienciar o que o livro expressa. E talvez seja essa a grande beleza do fazer literário.


Resenhando.com - A obra é atravessada por erotismo, dor, fé e homoafetividade, temas muitas vezes tratados como “demais” por uma sociedade ainda careta. Quando você escreve, sente que está exorcizando o medo alheio ou desnudando o seu?
Antonio Arruda As duas coisas, e não somente elas, e sem que haja uma distinção pragmática entre o que é meu e o que é alheio a mim. Interessa-me mais o borrão, a mancha que atravessa escritor e leitor. O quanto meu livro pode também desnudá-lo de seus medos? O quanto eu posso exorcizar os meus? O quanto, ainda, para além de um possível exorcismo, se faz necessária a convivência com os demônios, olhá-los de frente, tê-los ao lado? No livro, erotismo, dor, fé e homoafetividade estão emaranhados, são temas que se entrecruzam. Então, acredito, ou pelo menos desejo, que o livro gere no leitor mais encruzilhadas do que estradas retas.


Resenhando.com - A estética da cicatriz que você propõe tem algo de ritual. O que há de oferenda e o que há de profanação no ato de escrever?
Antonio Arruda Você tocou em um ponto bem importante, foi bem agudo em sua colocação. Há, de fato, algo de ritual. Ofertar-se à escrita é o ofício do escritor. Entregar-se ao texto. Como diz a poeta Isadora Krieger, “escrever é desaparecer no texto”. Nesse sentido, há muito de oferenda no processo de escrita. É uma doação intensa, um sacrifício, há algo de litúrgico, mítico, místico. Algo se desvela e se descortina quando escrevo, algo muitas vezes maior do que eu, que existe para além de mim. Ao mesmo tempo, meu processo de escrita e meu texto neste livro carregam uma corporeidade densa. “O Corte que Desafia a Lâmina” trabalha o tempo todo com a dualidade entre sagrado e profano. Profanar a carne para ofertá-la em sacrifício ao espírito. Acessar o espírito para que ele unja a carne e seus cortes, suas feridas. É esse o paradoxo que me interessa. E a minha proposta com a estética da cicatriz é justamente essa: criar um livro-corpo que, ao ser atravessado pela lâmina-palavra, inevitavelmente faça da escrita uma forma de ritualizar as experiências - de vida e literária.


Resenhando.com - No livro, há um homem que carrega uma carcaça de tartaruga até o mar e afunda com ela. Qual seria a sua carcaça hoje, e o que ainda o impede de soltá-la?
Antonio Arruda Vou pensar sobre essa pergunta e levá-la para a minha próxima sessão de análise para elaborar uma possível resposta (risos). Talvez a gente passe a vida toda acessando carcaças que acreditamos já ter soltado. Mergulhar nas dores e nos traumas me parece ser um exercício constante. Não sei especificar qual a carcaça de hoje com a qual ainda não me afoguei no mar. Mas, fazendo uma ligação com a pergunta anterior, talvez seja esse o ritual que mais me constitui como sujeito inquieto e complexo: tatear o inconsceano (para utilizar um dos neologismos do livro) e, assim, quem sabe, acessar as profundezas de ser.


Resenhando.com - Você é roteirista, professor, pesquisador, sacerdote e agora escritor publicado. Qual dessas vozes mais o contradiz, e qual delas você tenta silenciar quando escreve?
Antonio Arruda Talvez a mais contraditória delas seja a do escritor. Justamente por abarcar as demais? Não sei. Respondo em forma de pergunta, pois a assertividade, aqui, mataria, justamente, a contradição. Nunca tinha parado para pensar sobre isso. Mas sinto que a voz do professor, por ser carregada de um inevitável didatismo, seja aquela que, ainda que inconscientemente, eu tente silenciar. Minha escrita é altamente simbólica, imagética, alegórica. Acredito que não haja nela espaço para didatismos.


Resenhando.com - A dor é matéria-prima da arte, mas também um mercado. Você teme que o leitor leia suas feridas como espetáculo, e não como identificação?
Antonio Arruda Não. A dor como espetáculo está na mídia, nas notícias que transformam corpos violentados, agredidos, estraçalhados em números, em estatística. Está nas redes sociais. Está, infelizmente e cada vez mais, nos algoritmos. Sua pergunta me fez pensar que talvez o leitor não leia minhas feridas (que já nem são mais minhas, na verdade, uma vez que, depois de terem sido matéria-prima para a escrita, viraram ficção; são, portanto, as feridas dos narradores, dos personagens, do livro-corpo) como espetáculo, mas, se não como identificação, talvez como estranhamento, repulsa? Acredito que a literatura, ao se valer de elementos que atravessam, transgridem, subvertem o real, leva os leitores a processos complexos de investigação sobre si. Pelo menos é o que desejo que eles sintam ao acessar os cortes e as cicatrizes que eu transformei em experimentação estética.


Resenhando.com - Se o corte é inevitável, o que você ainda não teve coragem de transformar em lâmina?
Antonio Arruda Não sei… Às vezes eu sinto um pouco de medo da falta de medo que eu sinto (risos). Talvez quando descobrir qual a carcaça de hoje que ainda não carreguei para o mar eu consiga responder a essa pergunta. Como algumas pessoas que leram meu livro enquanto eu o escrevia e antes de enviá-lo à editora me disseram: “seu livro é fruto de muita coragem”. E eu senti mesmo isso ao escrevê-lo. Foi muito intenso e profundo mergulhar nas dores, nos traumas, nos cortes. E foi libertador. E estou disposto a continuar encarando as lâminas, a fazer delas o elemento mefistofélico que me aguilhoa a existência.



domingo, 26 de outubro de 2025

.: Crítica: furioso e envolvente, “O Agente Secreto” é a alegoria do tubarão


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com

“O Agente Secreto”, novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, protagonizado por Wagner Moura, encara o Brasil como quem examina uma cicatriz que ainda está aberta. O resultado é eletrizante, dinâmico, por vezes hilariante e profundamente brasileiro. Um thriller político que se passa em 1977, mas que, em alguma partícula retorcida do tempo, fala com uma clareza incômoda sobre 2025. Porque talvez, como provoca o filme, o Brasil esteja mais para 1977 em 2025 do que quando era, de fato, 1977.

Mendonça Filho, que já fez do Recife um personagem em “Aquarius” e “Bacurau”, agora transforma a própria ideia de país em um enigma: o Brasil como cenário fantasmagórico e campo minado. Tudo respira Brasil - do som das ruas ao humor que sobrevive à tragédia, do sexo à carnificina exposta nas ruas. No centro da narrativa, está Marcelo (Wagner Moura), um homem em fuga.

Especialista em tecnologia, ele retorna a Recife buscando paz, mas encontra um microcosmo do Brasil em colapso moral. A metáfora é clara e cortante: ele é a isca na alegoria do tubarão - um homem cercado por predadores em um oceano onde as aparências enganam. O filme brinca com os absurdos do país como quem cutuca uma ferida para provar que ainda dói.

Com trilha sonora que é uma personagem à parte, "O Agente Secreto" faz o que poucos filmes brasileiros ousam: rir de si mesmo enquanto remexe feridas que ainda não foram curadas. O humor, às vezes ácido, às vezes quase pueril, surge como um antídoto à brutalidade, especialmente nas cenas em que a coadjuvante Tânia Maria ilumina o caos da situação em que os personagens estão envolvidos com leveza e frescor.

O elenco é um espetáculo à parte. Gabriel Leone, Hermila Guedes, Thomas Aquino, João Vitor Silva, Alice Carvalho, Carlos Francisco e Maria Fernanda Cândido entregam atuações precisas, vibrantes e orgânicas em personagens extremamente carismáticos. Até uma perna saltitante e sangrenta, para ilustrar o sensacionalismo e as "lendas urbanas" difundidas na época, funciona bem nesse filme que é mágico e, seguramente, o melhor do ano.

Há ecos de “Cinema Paradiso” na homenagem explícita ao próprio cinema. Entre cenas hilariantes, sangrentas e banhadas de testosterona, o diretor encontra o equilíbrio entre o drama político e a libido de um país que insiste em existir. Não é à toa que “O Agente Secreto” foi escolhido para representar o Brasil no Oscar 2026. É, antes de tudo, um filme sobre identidade: um mosaico de memórias, paixões, contradições e pequenas sobrevivências do dia a dia.

Como diria o antropólogo Roberto DaMatta em "O Que Faz o Brasil, Brasil?", somos o país da casa e da rua, da farsa e do afeto, da ordem e do improviso. E Mendonça Filho traduz isso em cinema com a precisão de quem entende que o insólito é parte da nossa gramática. No fim, resta um tipo de inveja rara: a de quem ainda não viu "O Agente Secreto" e poderá sentir, pela primeira vez, as tensões da primeira vez e a vertigem de ser brasileiro em uma tela grande. Afinal, em pleno 2025, continuamos em um país distópico, tropical, cômico e trágico, onde a liberdade tem gosto de carnaval e cheiro de pólvora. Exatamente o mesmo de 1977.

Mas o que Kleber faz vai além do retrato-político-debochado. É cinema que pensa o país não pela lógica da digestão: o Brasil não se contempla, mas se mastiga. Por isso, o filme é também um documento e um delírio: uma tese visual sobre o que Roberto DaMatta chamou de “drama permanente da sociedade brasileira” - a tensão entre a ordem e o improviso, entre a casa e a rua, entre o Estado e o corpo. É quase um gesto antropológico e antropofágico - no sentido mais "oswaldiano" do termo. Ele devora o Brasil e o devolve em imagens que misturam ironia, fúria e ternura. 

Cada plano parece mastigar as contradições históricas brasileiras: o atraso e a modernidade, o autoritarismo e a festa, a violência e o humor. É como se o filme dissesse que o Brasil só pode ser compreendido quando aceitamos sua condição híbrida, mestiça, inventada a partir do choque entre mundos. "O Agente Secreto" mostra que seguimos sendo um povo em invenção, um país que ainda se explica dançando sobre o próprio abismo.

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.: Wanessa Morgado transforma o caos da maternidade em catarse cômica


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.comFoto: Kim Leekyung


Com texto inédito de Andrea Batitucci, roteirista de "Minha Mãe É Uma Peça" e "Vai que Cola", e direção de Rafael Primot, o espetáculo “Manhê!” continua a emocionar e provocar gargalhadas em uma temporada que cresce a cada apresentação. Estrelado por Wanessa Morgado, o solo mergulha nas alegrias, culpas e contradições do universo materno - esse campo de batalha onde o amor e o caos coexistem, quase sempre, na mesma respiração.

Depois do sucesso no Teatro Uol, “Manhê!” segue em novas apresentações: 1º de novembro, às 14h30 e 17h00, no Teatro Arena B3, em São Paulo;  14 de novembro, às 20h30, no Teatro Municipal de Osasco; 22 de novembro, às 21h00, no Teatro Lauro Gomes, em São Bernardo do Campo; 29 e 30 de novembro, no Teatro Colinas, em São José dos Campos;  e, em janeiro, às quintas-feiras, às 20h, no Teatro Multiplan Morumbi, em São Paulo.

Com humor afiado e uma sinceridade desconcertante, Wanessa dá corpo e voz às dores e delícias de uma mulher que tenta ser mãe sem deixar de ser gente. O resultado é uma comédia realista e libertadora - feita para rir, pensar e talvez chorar um pouco também. Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, a atriz fala sobre maternidade, humor e o poder de transformar o desespero em arte.


Resenhando.com - “Manhê!” parte de um lugar comum - a maternidade - mas a trata de forma nada convencional. Qual foi o momento em que você percebeu que esse tema, tão explorado, ainda tinha um buraco cômico e dolorido a ser preenchido no palco?
Wanessa Morgado - Acho que resolvi falar primeiro do que eu sentia e via as mulheres perto de mim sentindo, sabe? A dor e a delícia de ser mãe, que em alguns momentos pra mim se equilibram nessa balança da maternidade...escrevi um conto, quase que como eu desabafo ou terapia, e dele veio a peça escrita pela maravilhosa Andrea Batitucci, que também é mãe, separada, de duas meninas.


Resenhando.com - A peça fala sobre “maternagem”, essa palavra que parece bonita, mas carrega uma carga brutal de exclusividade e cobrança. Se pudesse cunhar uma nova palavra para redefinir o papel da mãe, que termo criaria?
Wanessa Morgado Nossa, ótima pergunta...a "maternagem" na real deveria existir mais... a função de dar carinho, atenção, cuidados, não precisa e não é só da mãe. Não sei criar um novo termo eu acho, usaria os termos que já existem mas de verdade: sororidade, parceria, responsabilidade mútua etc.


Resenhando.com - No Brasil, ainda é comum romantizar a maternidade como um estado de graça. Em “Manhê!”, você desmonta esse mito com humor. Você acredita que a comédia pode ser mais eficaz do que o drama para revelar as dores reais da maternidade?
Wanessa Morgado Eu sempre achei que a comédia é um estilo maior. Não desvalorizando os outros estilos, pelo amor de Deus, mas só destacando mesmo o humor...com humor você consegue falar de coisas que não falaria sem ele, ser mais direta e quase "grossa" quando necessário sem que achem "pesado" como no drama por exemplo, mas ele toca, conscientiza, faz uma catarse mesmo... como bem diz a letra da música "rir de tudo é desespero". A gente ri de alegria, mas ri de desespero por se aproximar daquilo e, ao mesmo tempo, o humor te dá paz, em saber que você não está sozinha neste mundo, seja a situação que for, alguém já viveu isso ou algo muito parecido.

Resenhando.com - Como atriz de stand-up, mestre de cerimônias e locutora, você já se multiplicou em muitos palcos e vozes. O que a Wanessa do monólogo “Manhê!” tem que nenhuma outra versão sua ousou mostrar? 
Wanessa Morgado Com certeza essa Wanessa mãe, falando ali com propriedade e conhecimento de causa. Mesmo no meu stand up eu já falava de maternidade mas não de forma tão profunda, emocionante e vivenciando agora a história de vida dessa mulher... que não sou eu, mas que tem muito de mim...

Resenhando.com - A maternidade, como você retrata, é um território de caos e amor. Mas se fosse possível resumir em apenas um cheiro essa experiência, qual seria?
Wanessa Morgado Ah, seria um cheiro doce e suave, porque apesar de todo o perrengue que é, ser mãe pra mim, do meu filho... "péra", porque não sou a mulher que vai levantar a bandeira de que eu gostaria de ser mãe de vários... A função mãe me dá um pouco de cansaço (risos), mas voltando...ser mãe do Gael tem um cheiro de vida longa, de amor infinito e de muita paz, mesmo no caos.

Resenhando.com - O texto de Andréa Batitucci nasce de uma esquete sua. Existe alguma cena que você sente como uma cicatriz pessoal, algo tão seu que, mesmo encenado, ainda dói ao repetir?
Wanessa Morgado Nasce de um conto, não exatamente uma esquete, um conto um pouco mais longo e mais dramático, acredita? Não tem uma cena que seja uma cicatriz, mas tem uma cena que ainda não vivi e que dói muito em mim e no público todas as vezes, que é quando esse filho vai embora de casa... O famoso "ninho vazio"... Aff, pra mim é sempre difícil essa cena e nessa hora tenho vontade de fazer mais uns cinco filhos pra ir intercalando, um sai e outros ficam... dói.

Resenhando.com - “Minha Mãe é uma Peça”, “Vai que Cola”, “Além da Ilha”... Batitucci tem um histórico de humor popular. O que o público de teatro ganha quando um tema tão íntimo é tratado com essa mesma pegada, mas sem o filtro da TV?
Wanessa Morgado Na peça ela usa o ritmo da TV mas não o filtro, o que faz da peça esse estrondo que é... Quando as pessoas saem do teatro é sempre maravilhoso e incrível ouvir os depoimentos, de quem se viu como mãe ali, de quem se viu como filho daquela mãe que envelhece, adoece e quer mesmo assim viver muito ainda, de quem se enxerga na mulher, no homem nessa relação e em outros papéis que a peça traz.


Resenhando.com - Quando se fala de maternidade no palco, sempre se pensa no olhar feminino. Se um homem fosse fazer o mesmo espetáculo, que cena você acredita que ele jamais teria coragem de encenar?
Wanessa Morgado (Risos) Ixi, várias, eu teria que repensar a peça toda aqui pra pensar especificamente em uma... Mas tem uma do sexo, que a mulher está com a cabeça na lua e o cara ainda vem com uma frase de matar, que acho que os homens não teriam coragem de assumir.

Resenhando.com - Você já foi mestre de cerimônias para grandes empresas, uma função que exige controle e formalidade. Agora, em “Manhê!”, você se coloca no ridículo, no desespero e no colapso. O que é mais difícil: domar um público corporativo ou assumir o caos da maternidade no palco?
Wanessa Morgado Ah, o palco e o teatro me desafiam muito e sempre. Ser MC é sempre um desafio, cada empresa quer algo específico, tem ali em seu evento todas as expectativas, muitas vezes do ano, do semestre, é muita responsabilidade. Na peça, existe um texto a ser seguido, a luz e trilha dependem de mim e estou vestida de personagem, é diferente e desafiador em outro lugar.


Resenhando.com - Se pudesse escrever uma carta para a Wanessa de 2002, recém-formada na Escola de Teatro Macunaíma, o que ela diria ao ler que, em 2025, você estaria no palco falando de fraldas, amamentação e divórcios - e rindo disso tudo?
Wanessa Morgado O que ela diria? Eita... Acho que daria parabéns pra mulher que me tornei, apesar de todos os perrengues que já vivi, na minha criação mais conservadora, em meus alguns relacionamentos esquisitos, em meus medos e questões, vivi muito bem esses meus anos e cheguei vivíssima até aqui, onde pretendo seguir ainda mais viva!!

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