Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Luiza Sigulem
Sentado no meio-fio da memória brasileira, Humberto Werneck acende um cigarro imaginário e convida o leitor a conversar - sem pressa, mas com precisão. Aos 80 anos, o mineiro que já rabiscou reportagens, biografias e dicionários de lugares-comuns, lança "Viagem no País da Crônica" e transforma o que era um acervo digital em um passeio literário que atravessa estações, feriados, goleadas e golpes de Estado.
Werneck não só comenta Clarice Lispector, Rubem Braga e Fernando Sabino como se estivesse em um bate-papo informal - ele os costura com o cuidado de quem também é parte do tecido. Entre crônicas sobre uísque, chuva, fotografia e República, o jornalista transforma o gênero “maleável e indefinido” em mapa e espelho de um Brasil realista e fantástico, às vezes no mesmo parágrafo.
Nesta conversa exclusiva ao rés do chão com o Resenhando.com, Werneck fala do patinho feio da literatura, dos jogos de futebol com poetas e das dores e delícias de ser cronista em um país que parece sempre em véspera de alguma coisa. E prova, mais uma vez, que escrever bem é mais que talento: é saber escutar a rua com os ouvidos de quem consegue interpretar as entrelinhas da vida. Compre o livro "Viagem no País da Crônica" neste link.
Resenhando.com - Se a crônica é o patinho feio da literatura, quem seria o cisne da vez - o romance autoficcional ou o livro de autoajuda disfarçado de literatura?
Humberto Werneck - O cisne da vez pode ser um desses dois, ou ambos. O primeiro, tão em moda, me sugere anemia criadora. O segundo, nem isso.
Resenhando.com - Entre o meio-fio e a torre de marfim: como foi sobreviver a décadas de jornalismo sem ceder ao clichê do cronista que vira personagem de si mesmo?
Humberto Werneck - O jornalismo, ao contrário da literatura, busca ser objetivo e impessoal. Talvez isso explique que alguns jornalistas, na hora de serem cronistas, vão à forra, concentrando-se na observação do próprio umbigo.
Resenhando.com - Tem alguma crônica que você se arrepende de não ter escrito - ou pior, alguma que gostaria de ter assinado no lugar de Clarice Lispector, Rubem Braga ou Fernando Sabino?
Humberto Werneck - Arrependimento? Nenhum. Mas perdi a conta das crônicas alheias que me enchem de inveja benigna. “Viúva na Praia”, de Rubem Braga, por exemplo. “Esquina”, de Mário de Andrade. “O Amor Acaba”, de Paulo Mendes Campos. “O Inventor da Laranja”, de Fernando Sabino. “Canção de Homens e Mulheres Lamentáveis”, de Antônio Maria.
Resenhando.com - Ao organizar essa “viagem” literária de janeiro a dezembro, que estação do ano você acha que o Brasil definitivamente não sabe viver?
Humberto Werneck - O Brasil se dá bem com todas as estações do ano, até porque, na barafunda climática cada vez maior, as quatro têm estado muito parecidas.
Resenhando.com - Carnaval, uísque, fé e futebol: qual desses temas envelheceu melhor nas crônicas?
Humberto Werneck - Talvez o futebol tenha envelhecido melhor - embora não me pareça hoje nem remotamente merecedor de um Nelson Rodrigues.
Resenhando.com - Qual foi a maior mentira já contada sobre a crônica brasileira - e por que ela ainda sobrevive?
Humberto Werneck - A crônica sobrevive porque todos nós gostamos de uma conversa boa. Quanto às mentiras... bem, estou pensando aqui em Alceu Amoroso Lima, um crítico para quem “uma crônica, num livro, é como um passarinho afogado”. E tem o Ledo Ivo, que falou da crônica como sendo ”esse gênero anfíbio que, pertencendo simultaneamente ao jornalismo e à literatura, assegura notoriedade e garante o esquecimento”. A frase, aliás, está num livro dele que se chama "O Ajudante de Mentiroso".
Resenhando.com - No fim das contas, escrever sobre o cotidiano com humor é mais sobre rir do mundo - ou sobre disfarçar o próprio desespero?
Humberto Werneck - Talvez seja uma tentativa de consertar o mundo e as coisas.
Resenhando.com - O que dói mais: a pressa do deadline de um jornal ou a lentidão do reconhecimento da crônica como gênero literário legítimo?
Humberto Werneck - Cronistas como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Antônio Maria passaram anos escrevendo para o jornal do dia seguinte, e nesse regime brabo produziram textos capazes de atravessar o tempo. Com isso, se deram melhor do que muito contista e romancista que visava a eternidade, e cuja obra acabou não tendo a sobrevida de alguns recortes de jornal ou revista. O reconhecimento está chegando, mas ainda tem muito nariz cronicamente torcido para a crônica...
Resenhando.com - Ao costurar crônicas sobre a Revolução de 30, o golpe de 64 e a construção de Brasília, não deu vontade de escrever também sobre o golpe do PIX, o Enem da redação nula e a CPI do fim do mundo? A crônica ainda dá conta do Brasil de hoje?
Humberto Werneck - Para o bom cronista não há assunto que não sirva. Até mesmo a falta de assunto rendeu pérolas de mestres como Rubem Braga, Drummond ou Vinicius de Moraes. Drummond, aliás, deliciou os leitores com uma crônica sobre o que fazer com os pelos das orelhas. Por que o golpe do PIX, o Enem da redação nula e a CPI do fim do mundo não renderiam coisa boa de ler? A dificuldade não está no tema, mas da capacidade de tratá-lo sem que daí venha, em vez de crônica, um artigo ou editorial.
Resenhando.com - Se a crônica é uma conversa no meio-fio, o que fazer quando o leitor está com fone de ouvido, olhando pro celular e atravessando a rua sem olhar? Ainda dá pra puxar papo?
Humberto Werneck - Assim como acontece com o autor, não é sempre que o leitor está brilhante. Mas pode se dar também uma coincidência feliz, aquela em que, numa ponta e na outra, haja quem adore uma conversa boa.
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