Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Claudia Ribeiro
Um nome pode ser destino, fardo, bandeira ou metáfora. No caso de Mouhamed Harfouch, foi ponto de partida para um mergulho teatral - e existencial. Após rodar por cinco palcos no Rio de Janeiro, o monólogo "Meu Remédio" estreia em São Paulo no Teatro Santos Augusta, com sessões aos sábados e domingos, entre os dias 30 de agosto e 28 de setembro.
Escrito, produzido e protagonizado por Harfouch, com direção de João Fonseca, o espetáculo mistura memórias, músicas e ancestralidade em 75 minutos de pura exposição - do ator ao homem, do filho ao artista. Com humor, lágrimas e acordes tocados ao vivo, o texto revela não só uma trajetória marcada pela reinvenção, mas também o peso e a força que cabem em um nome.
Nesta entrevista exclusiva para o Resenhando.com, o ator que brilhou em novelas como "Cordel Encantado" e "Órfãos da Terra", e em musicais como "Querido Evan Hansen", fala sobre coragem, pertencimento e os bastidores emocionais da peça mais íntima da vida dele. Entre feridas, risos e confissões, Mouhamed abre espaço para aquilo que ainda está em processo. Porque, como ele mesmo afirma em cena, "aceitar quem somos é curativo".
Resenhando.com - “Meu Remédio” surge de um nome difícil de carregar. Que tipo de cura você acredita que um nome pode atrasar, ou apressar, na vida de alguém?
Mouhamed Harfouch - Se você pensar que o nome é aquilo que te individualiza num primeiro momento, é o teu cartão de visita, e que esse nome é algo que você não escolhe quando nasce, você recebe, de certa forma, de maneira imposta, isso tem um peso. Quando há um casamento perfeito e você gosta é uma maravilha. Mas isso nem sempre ocorre, e com minha peça tenho visto que muita gente teve ou tem dificuldades com o próprio nome. E as razões são diversas. Mas o interessante é que pensar sobre nosso nome pode nos levar a uma viagem muito transformadora sobre quem somos, de onde viemos e para onde vamos. É uma oportunidade de nos revisitarmos. A peça sugere esse diálogo consigo mesmo. Agora sobre atrasar ou apressar, não penso assim. Tudo tem seu tempo correto e faz parte do processo de amadurecimento de cada indivíduo. A cura, muitas vezes, pode vir do resultado deste processo de amadurecimento e isso, sim, é libertador!
Resenhando.com - A peça é uma travessia íntima embalada por humor e dor. Você teve medo de se expor demais ou, pior, de ser confundido com as caricaturas que também interpreta?
Mouhamed Harfouch - Tive muito medo, por isto levei dois anos escrevendo, ou melhor, maturando. Escrevia uma parte e parava meses. Tinha medo da exposição, tinha dúvidas sobre levar algo tão íntimo para o palco e se isso poderia ser interessante para alguém. Meu diretor João Fonseca foi fundamental nesse processo, pois me deu a mão e me motivou a seguir em frente. Não me deixou desistir. O resultado me deixou realmente muito feliz. Fomos acolhidos pelo público e a crítica carioca de uma maneira muito linda.
Resenhando.com - Ao se lançar como autor, ator e produtor, qual foi o momento mais tentador para desistir, e o que impediu você?
Mouhamed Harfouch - Já tinha produzido e atuar é o meu ofício. Agora escrever é um desafio enorme, ainda mais quando é sobre sua própria história. Sempre tive em mente o título e o como gostaria de terminar a peça, mas como chegar até lá? Como desenvolver isso de forma teatral? Isso foi, sem dúvida, meu maior desafio, mas tive que vencer um por vez. Vencida a etapa da escrita, veio a de produzir, levantar recursos, viabilizar! Levei quase três anos com uma ideia na cabeça para conseguir materializar. Quando consegui levantar recursos e pautar o espetáculo para a estreia, veio o medo absurdo, o do ator. Afinal, é o primeiro monólogo que levo aos palcos. Para conseguir vencer tantos desafios, foi fundamental contar com uma equipe maravilhosa como a minha. Mas preciso agradecer aos meus filhos, minha primeira plateia e escuta. Eles riam e adoravam ouvir a leitura do meu texto, das minhas histórias que fazem parte deles, e ver meus primeiros ensaios….Isso me deu muita força e coragem.
Resenhando.com - Você cresceu entre sírios e portugueses num Brasil ainda mais pouco preparado para lidar com o “outro”. Já sentiu que era preciso performar uma brasilidade mais palatável para ser aceito?
Mouhamed Harfouch - Nunca pensei sobre. Sempre fui extremamente brasileiro, nasci e cresci aqui, estudei em um colégio católico e só o que destoava da aparente normalidade era justamente o meu nome, porque era onde as pessoas codificavam a minha diferença. Então, minha luta era me entender enquanto parte desta mistura, e não ter vergonha de ser diferente. Saber carregar um nome tão forte e repleto de significados. Se tivesse adotado um outro nome, isto sim, poderia ser parte de um processo para me tornar mais palatável talvez.
Resenhando.com - Há uma cena ou uma canção em "Meu Remédio" que, até hoje, ainda dói apresentar? O que você poupa da plateia?
Mouhamed Harfouch - Meu espetáculo não transita pela dor, mas pela alegria e emoção. Sempre me emociona a cena onde falo da mala que a gente abria quando meu pai voltava da Síria, ou quando algum primo trazia para meu pai. Era abrir a mala e subir o cheiro de um outro continente, outra cultura, outro povo. Essa cena sempre me faz lembrar da minha infância junto aos meus irmãos, meus pais e isso me emociona muito. Minha mãe acabou falecendo depois que escrevi e estreei a peça. Foi logo depois que estreei, na verdade. Escrevi a peça e me referia a ela presente, e agora me refiro a ela em lembrança. Então, a cena em que falo sobre ela, sobre como ela preparava pratos e mais pratos para nós e também o chancliche, queijo árabe maravilhoso, que cito na peça. Acabou virando um momento que me toca muito e que tenho que respirar para seguir com a história. Mas revivê-la todos os dias no teatro me faz muito feliz. E essa é a tônica da peça: as pessoas saem felizes. E isso é a minha alegria.
Resenhando.com - Você já deu vida a muitos personagens na TV, no cinema e no teatro. Quem é mais difícil de encarar: o protagonista da própria história ou os papéis que exigem negar quem se é?
Mouhamed Harfouch - Como artista, quero provocar, tocar as pessoas, emocionar, divertir e ampliar horizontes. Então, contar uma boa história é minha busca. Quando cheguei a ao ponto final de “Meu Remédio” fiquei muito empolgado, muito feliz mesmo, achava que tinha uma boa história para contar. Os seis meses de temporada no Rio nos mostraram que sim. Mergulhar na nossa verdade não é tarefa fácil, ter coragem para se revisitar é um processo delicado, mas muito libertador. Sempre tentei achar a verdade de cada personagem, comigo não poderia ser diferente (risos).
Resenhando.com - Seu espetáculo defende que “aceitar quem somos é curativo”. Mas o que você ainda não aceita em si e que talvez ainda esteja em tratamento?
Mouhamed Harfouch - No momento, tento curar a ausência da minha mãe e me entender sem ela. Neste ponto, o teatro me ajuda mais uma vez. Mas não só isso, não somos uma coisa só. Algo definitivo. A medida que crescemos, amadurecemos, vencemos algumas barreiras, alguns desafios, lidamos com vitórias, derrotas, frustrações, sonho, medos e desejos. A vida não é corrida de cem metros, é maratona, e eu tô correndo, sem pressa de chegar. Que venham os novos desafios.
Resenhando.com - João Fonseca dirigiu nomes como Cazuza, Tim Maia, Cássia Eller. O que ele revelou de Mouhamed que nem você sabia que estava guardado?
Mouhamed Harfouch - Acho que, ao não me deixar desistir, pude me entender melhor. Entender o quanto o teatro me salvou e me deu pertencimento. A entender minha relação com meu nome, minha família e minha própria história. A gente vai vivendo, realizando as costuras da vida, fazendo nossas escolhas e os caminhos, somos atropelados pela correria do agora, então, de certa forma, João me mostrou o quanto as minhas escolhas construíram aquilo que me fez chegar até aqui. Ele me mostrou o quanto tive consciência dessas escolhas, mesmo sem fazer ideia que eu tinha essa consciência. Hoje vejo que sempre fui fiel ao que acredito.
Resenhando.com - A plateia ri, chora, se identifica. Mas houve alguma reação do público que te desmontou completamente?
Mouhamed Harfouch - Não esperava que a plateia se identificasse tanto com minha história, de verdade. Que participasse tanto... Teve uma senhora, no Rio, que foi cinco vezes ao meu espetáculo e pagando, tá? Na quinta vez, eu virei para ela e disse: "Agora você não paga mais! É minha convidada tá?" (risos). Tudo isso me surpreendeu positivamente.
Resenhando.com - Depois de olhar tão profundamente para dentro, que tipo de personagem você nunca mais aceitaria interpretar?
Mouhamed Harfouch - Não gosto de personagens vazios. Não gosto de caricatura. Não tenho tesão em fazer algo gratuito, sem alma, sem propósito… por que somos tocados pelo o que é humano. E isso só vem quando é de verdade.
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