sábado, 8 de novembro de 2025

.: "Carangueja", com Tereza Seiblitz, é teatro para desaprender a ser gente


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com
Foto: Renato Mangolin

Em tempos de Cop30, o espetáculo “Carangueja” exige que o público respire junto, afunde o pé na lama simbólica do mangue e aceite a metamorfose. Tereza Seiblitz - a Joaninha da novela "Renascer", a cigana Dara de "Explode Coração", a Bela B. de "Hilda Furacão" e uma das presenças mais hipnóticas da televisão dos anos 90 - retorna ao teatro como quem volta para o útero do mundo. Mas não é somente para representar a natureza ou as dores do planeta: o que acontece é um ritual, uma oferenda, uma ode ao verde e às raízes ancestrais.

Em “Carangueja”, o conceito de "religare" - essa ideia de reconexão, de religar o humano ao sagrado - não aparece como simples teoria, mas como experiência sensorial. A atriz cria uma simbiose real entre corpo e território. Ela é mulher-bioma, mulher-mangue, mulher-carangueja. E isso é lindo.

Ao longo dos 50 minutos de espetáculo, vozes surgem como se o público estivesse dentro da cabeça dessa criatura em transformação: receitas de moqueca, trechos de jornal, a locução de um aeroporto. Beckett sob sol equatorial. Sarah Kane em estado gestacional. Kafka banhado pelas marés do Piauí. Tudo isso soa absurdo - mas não é. Diante dos olhos do público, o palco se torna manguezal: um lugar onde o improvável nasce como coisa corriqueira.

E há um momento em que o espetáculo parece beber diretamente na estética do manguebeat. O manifesto de Chico Science dizia: “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar.” No espetáculo, Tereza Seiblitz transforma essa frase em gesto. O corpo dela torna-se antena fincada na lama, conectando ancestralidade e futuro, tradição e invenção em função da mensagem. Se Chico Science convocava a mistura entre o regional e o tecnológico, Tereza responde com outra fusão: a do humano com a matéria viva. Ela faz do próprio corpo a maré que sobe e desce, operando o mesmo impulso de ruptura, não com guitarras e batidas, mas com respiração e argila.

Se em "A Metamorfose" Kafka oferece ao leitor um homem-inseto aprisionado pela burocracia doméstica, “Carangueja” devolve à transformação o sentido original da palavra: o do renascimento. Mas há algo além. O espetáculo parece dialogar com "Sapiens", de Yuval Harari, quando o autor afirma que a humanidade se afastou da natureza para dominar o mundo e, nesse gesto, perdeu algo essencial de si. Tereza devolve à metamorfose uma outra hipótese evolutiva: e se a salvação não estiver no topo da cadeia, mas na lama, naquilo que se rejeita?

Ao mesmo tempo, há algo profundamente clariceano em cena. Assim como em "A Paixão Segundo G.H.", em que uma mulher, diante de uma barata esmagada, atravessa uma experiência radical de despossessão do ego, “Carangueja” coloca o público diante de uma metamorfose que é filosófica, não zoológica. É o despir-se da linguagem humana até tocar o indizível. A argila que acaricia as mãos do público ecoa a massa branca que sufoca G.H.: matéria viva que obriga a pergunta inevitável - quem somos quando deixamos de ser o que pensamos que somos?

E, numa dobra inesperada, há também o horror corporal à la Cronenberg. Como no filme "A Mosca", de 1986, a transformação não é bonita nem limpa. É visceral e biológica. Mas ao contrário do cientista que vira mosca por obsessão com o controle, no espetáculo a mudança nasce do abandono do controle. A ciência em "A Mosca" desumaniza o homem; o ritual em “Carangueja” desumaniza para re-humanizar.

O espetáculo tem algo de laboratório vivo. Objetos se transmutam em cena: madeira vira raiz aérea, argila vira corpo primordial, tecido vira maré. O público molda argila, mexe com ela, e pode levar o resultado para casa - ou entregar à artista para que integre uma futura exposição. É uma coreografia de responsabilidade afetiva com a Terra: uma catequese sensorial.

Seiblitz, em uma atuação que transcende, parece entender que o teatro não é explicação. Há nessa atriz algo de sagrado sem ser sacro, de religioso sem ser devocional. A cada movimento, é como se dissesse: “é preciso desaprender a ser gente para voltar a ser vida. Desapegar-se de tudo para simplesmente ser”.

Nesse mangue cênico, o antropocentrismo, patriarcado e ego não resistem. Porque “Carangueja” é sobre abandonar a forma para reencontrar a essência, desapegar do controle para reaprender com a maré, deixar de lado o olhar humano para enxergar como bioma. É o que a vida precisa: menos personagem e mais organismo; menos discurso e mais respiração; menos representação e mais autenticidade. Um espetáculo que pode ser lido como a reinvenção de alguém ou a saga de um planeta tentando sobreviver à humanidade. Essa dúvida é o que torna “Carangueja” indispensável. É impossível sair sem desejar permanecer ali. Um espetáculo que lembra que salvar o planeta é instinto de sobrevivência.

Ficha técnica
Texto, idealização, atuação: Tereza Seiblitz
Direção: Fernanda Silva e Tereza Seiblitz
Direção de movimento: Denise Stutz
Figurino: Fernanda Silva, Tereza Seiblitz e Maria Adélia
Visagismo: Maria Adélia
Iluminação: Adriana Ortiz
Operação de som e luz: Kenny Roger
Fotos: Renato Mangolin
Instagram: Manuela Seiblitz @caranguejaespetaculo
Produção: Corpo Rastreado

Serviço
Duração: 50 minutos
Dias 8 de novembro. Sábado, às 20h00.
Auditório
Ingresso - R$40,00 / R$20,00 / R$12,00
A partir de 12 anos
Tradução em Libras na sessão.





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