Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: arte feita a partir de foto publicada no Instagram @edsonaran.
Resenhando.com - Como foi transformar a ironia machadiana em terreno fértil para criaturas das trevas?
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Roteirista com mais de 20 anos de mercado, Andrea estreia na literatura com a segurança de quem conhece o ritmo das imagens, mas aposta na delicadeza da palavra como potência transformadora. O protagonista do romance, Carlos, é um menino abandonado que não se torna estatística, mas personagem - não por negação da realidade, mas por uma escolha radical: a de escrever esperança sem anestesiar a dor.
Em tempos em que cinismo virou sinônimo de lucidez, a autora faz o movimento inverso e se arrisca onde poucos ousam: acredita no afeto, investe na escuta, escolhe a ternura como campo de batalha. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, ela fala sobre infância e abandono, sobre roteiros e reinvenções, sobre literatura como gesto de reparação. E, principalmente, sobre os livros que salvam - mesmo quando ninguém mais parece disposto a tentar. Compre o livro "O Menino e o Livreiro", de Andrea Jundi, neste link.
Resenhando.com - "O Menino e o Livreiro" surgiu de uma imagem mental vívida. O que mais a sua cabeça anda projetando? Você costuma confiar nos delírios criativos como ponto de partida ou prefere o planejamento racional da estrutura?
Andrea Jundi - Adorei o “delírios criativos” (risos). Sim, eles são sempre meu ponto de partida. Não sou uma escritora que cria toda a estrutura com começo, meio e fim, antes de começar a escrever. Eu parto de uma cena que está muito clara em minha mente e a partir daí começo a desenvolver a personagem principal, sua trama central. Depois disso é natural que outros personagens comecem a surgir para suprir essa trama. A escrita estruturada para mim acontece quando escrevo roteiro de longa metragem. Aí, sim, preciso ter a curva dramática traçada antes de mergulhar no roteiro em si. Já a escrita literária é onde me permito ser livre na criação, onde me sinto mais à vontade no desordem. Não que não haja ordem alguma, mas ela vai nascendo a partir de um entrelaçado e não de uma linha. Nesse momento estou dedicada a escrever meu próximo livro e ele também surgiu de uma cena muito vívida em minha cabeça, um delírio criativo. Já encontrei a trama central e estou agora descobrindo a trilha das duas protagonistas. Sentindo dores e amores com elas, me entristecendo e me deslumbrando com cada etapa. Às vezes me sinto como numa mata intocada, perdida, mas vou insistindo no caminho e é como se elas me sussurrassem para onde seguir até encontrar um novo rastro para seguir.
Resenhando.com - Você fala de “cargas nos vagões” e escolhas impostas - quais dessas cargas você mesma ainda carrega e quais precisou deixar para escrever esse livro?
Andrea Jundi - Carrego uma carga enorme e linda que foi meu trabalho como assistente de direção no audiovisual. Ele que me trouxe ao longo de mais de vinte anos quase toda minha experiência em contar histórias e me colocou em contato com universos diversos que enriqueceram o meu, me deram repertório. Saí dessa estação mas levei a carga comigo. A maior carga que tive que deixar foi a síndrome de impostora, essa porque nunca agregou. Sempre escrevi pra mim mesma, não mostrava para ninguém, mas quando decidi escrever para os outros lerem, tive que enfrentar o medo do julgamento, medo do olhar dos outros sobre mim. Não sei se consegui deixar mesmo essa carga para trás, mas tenho conseguido ressignificá-la como parte de quem eu sou e me dando o direito de mudar e melhorar sempre.
Resenhando.com - Ao transformar um menino rejeitado em protagonista de uma jornada afetiva e simbólica, você também desafia a lógica de que a dor precisa ser exibida com crueza. A literatura brasileira está pronta para histórias ternas ou ainda prefere o chicote?
Andrea Jundi - Não escrevi com ternura de forma racional, mas durante a escrita, quando precisei fazer escolhas da narrativa, algo me impedia de ser cruel com o Carlos. Ele é um personagem que traz uma carga enorme de abandono em diferentes camadas, mas teve a sorte de encontrar pessoas que o ajudaram a seguir. Existem muitas histórias assim, de crianças que encontram uma mão no meio do caminho e outras tantas crianças como o João, irmão de Carlos, que são engolidos pelo sistema cruel. A existência do João tem a importância não só de representar essa dureza, mas também de enxergarmos as várias camadas que todos têm. Carlos enxerga nos olhos de João as camadas do irmão, sua bondade ressecada pela falta de amor e de cuidado e através desse olhar de Carlos, entendemos que ninguém é bom ou ruim e só, mas que somos moldados por situações externas que muitas vezes não escolhemos viver e ainda assim, estamos tentando fazer o melhor que podemos com o que nos restou. Às vezes, quase nada. A literatura brasileira é riquíssima e diversa e tem espaço para todo tipo de narrativa. Desde que lancei o livro recebo mensagens profundas de pessoas que se emocionaram muito com a história e que foram tocadas de uma forma que fazia tempo não sentiam. Estamos vivendo tempos muito difíceis e acho que histórias afetivas tem sido bem recebidas.
Resenhando.com - O livreiro e o assistente que acolhem Carlos parecem quase figuras arquetípicas — guardiões da palavra. Em quem você se inspirou para criar esses personagens que, em outro tempo, talvez fossem chamados de “mestres”?
Andrea Jundi - No caso de Romeo, o livreiro, ele e Carlos se conectam através de suas faltas, de seus vazios. Romeo tem um papel de mestre porque, ao permitir que sua solidão seja invadida, percebe que esse é o único papel que lhe compete; guiar esse menino. Não há outro papel para ele na vida de Carlos que não seja o de acolhê-lo. Tive avôs muito presentes em minha vida e talvez se forma inconsciente, tenha um pouco de cada um em Romeo. Já Pietro agrega com sua própria experiência de abandono, que é diferente da de Carlos, mas que também tem uma carga suficiente para moldar sua personalidade. Vejo mais o Pietro sendo guiado pelo Carlos do que o contrário, porque a dor do abandono de Carlos coloca o Pietro em movimento para também tentar entender sua própria história.
Resenhando.com - Você veio do audiovisual, um território coletivo e visual, e passou para a literatura, solitária e silenciosa. O que se ganha - e o que se perde - ao fazer essa travessia?
Andrea Jundi - Por vezes sinto bastante falta da coletividade do audiovisual. Sou uma pessoa que sempre andou em grupo e trabalhar nessa área é tão intenso, que as equipes acabam ficando muito ligadas umas às outras. Por outro lado, apesar de ser bastante social, sempre tive prazer no silêncio e em ficar sozinha. Ainda muito nova percebi essa necessidade e desde adolescente já escrevia fechada no quarto, ou ficava ouvindo música. Minha cabeça está o tempo todo criando cenas e imagens, acho que a minha solidão também é um pouco barulhenta rsrs. Fui encontrando saídas para o excesso de solidão que a escrita impõe e há um tempo faço parte de um grupo de escrita literária aqui em Lisboa, a Amora, uma forma de me cercar de pessoas criativas e também exercitar a escrita em grupo. Eu me mantive no audiovisual através da escrita de roteiros e para além de ficar perto dessa arte que amo, ainda posso trabalhar em equipe de tempos em tempos. Em roteiro, sempre acabo fazendo algum laboratório online com encontros semanais, onde lemos e opinamos nos projetos uns dos outros, enriquecendo o trabalho e dando um tempo na solidão quando ela pesa. Mas no geral, gosto desse silêncio da escrita.
Resenhando.com - A infância é quase sempre narrada por adultos. Como foi acessar uma voz infantil sem resvalar no tom professoral ou nostálgico? O que o menino Carlos ensinou a você que a roteirista Andrea ainda não sabia?
Andrea Jundi - Eu amo crianças, tenho um profundo respeito por essas mini pessoas, seus conhecimentos simples e leves muitas vezes tão mais profundos que os nossos. Tenho dois filhos, hoje com oito e 11 anos e somos muito ligados. Amo receber os amigos deles, viajar com amigos que têm filhos e observar essa interação entre eles, ouvir suas teorias sobre as questões da vida, as dúvidas que têm e como no geral pensam de forma tão mais límpida, mais simples. Acho que o tom afetuoso do livro tem muito a ver com a ingenuidade da criança. Apesar de não ser narrado em primeira pessoa, o olhar inocente de Carlos permeia a história. Uma vez ouvi uma menina em situação de guerra responder à pergunta de uma repórter sobre o que ela sonhava em ser quando crescesse, e ela disse que ali eles não sonhavam. Nunca mais esqueci aquilo, como pode uma criança não sonhar? Como podemos nós, como adultos, permitir que crianças não sonhem? Carlos me deu o dever de encontrar uma saída para ele e precisei enxergar através dos seus olhos o que ele precisava.
Resenhando.com - Morando em Portugal, você publicou por uma editora brasileira. Essa geografia afetiva da escrita - entre Brasil, Londres e Lisboa - impacta no modo como você observa e escreve suas personagens?
Andrea Jundi - Morar fora do Brasil me fez entender que muitas histórias e sentimentos são universais, mas tenho uma alma brasileira e através do meu trabalho no audiovisual, pude conhecer vidas muito diferentes da que eu cresci inserida. Amo gente, gosto de conversar e escutar histórias diversas, morei em uma vila de pescadores muito pobre no nordeste do Brasil para filmar um longa metragem e algumas daquelas crianças só tinham água com açúcar para enganar a fome. Filmei em comunidades, sentei no sofá de moradores e ouvi sobre seus medos e suas conquistas. Filmei com refugiados sírios e conheci os sonhos de seus filhos pequenos. Conheci quem voltou a ouvir pela primeira vez depois de anos surdo, quem ganhou seu primeiro cão guia que seria seus olhos a partir dali, presenciei o primeiro dia de dois irmãos chegando à sua nova casa com seus pais adotivos. Tudo isso no Brasil. Acredito que meus personagens terão sempre alma de brasileiro, minha gente, que eu conheço e entendo melhor que qualquer outro povo.
Resenhando.com - Seu livro fala sobre “quem parte e quem escolhe ficar”. Se pudesse revisitar os roteiros da sua própria vida, de quais personagens você teria partido antes, e para quais teria ficado mais tempo?
Andrea Jundi - No geral sou bem resolvida com as minhas escolhas. Gosto de me relacionar com as pessoas, aprofundar amizades, criar bases seguras. Tenho tendência a ser da turma que escolhe ficar e prefiro pensar que fiz o meu melhor antes de partir. Têm amizades e parceiros de trabalho que ficaram pelo caminho e sei que foi melhor assim porque não somavam na minha vida, mas conforme vou mudando de estação sempre dou um jeito de arrastar uns comigo. Sou apegada (risos). E se for para ficar, tem que fazer valer a pena.
Resenhando.com - Há um momento em que Romeo pergunta a Carlos sobre as cargas que ele escolhe levar. Qual foi a carga mais pesada que você precisou transformar em literatura para que não te esmagasse na vida real?
Andrea Jundi - Qualquer coisa que relacione criança à dor me machuca em um lugar profundo. No Brasil, mais de 5,5 milhões de crianças não têm pai na certidão de nascimento e outros tantos só tem o nome do pai na certidão, mas não os tem na vida real. Milhares de casas são lideradas por mulheres, mas numa sociedade que não olha por elas com o respeito e cuidado necessários. Na ponta final, quem sofre de muitos tipos de abandonos, são as crianças. O Estado vira a cara para essas crianças toda vez que não cuida de suas mães, toda vez que cerceia a liberdade às mulheres sobre seus próprios corpos e que as pune por crimes cometidos pelos homens. Acho que o tom afetivo do livro é o meu próprio afeto querendo gritar mais alto do que a raiva que sinto desse abandono imposto.
Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação
Há quem diga que dublagem é uma arte invisível. Mas quando a voz de Fernanda Baronne entra em cena - seja na pele da Viúva Negra, da Lucy alucinada ou da Zora de "Jurassic World: Recomeço" -, o que era invisível vira inconfundível. Com mais de três décadas de microfone e emoção, ela já emprestou as cordas vocais a Scarlett Johansson tantas vezes que, se a atriz americana acordasse falando português fluente, ninguém estranharia. Fernanda dubla com a precisão de quem sabe quando respirar no lugar do outro - e com a ousadia de quem sabe, também, quando não respirar.
Do dramalhão mexicano à ficção científica que treme a tela, Baronne nunca se escondeu atrás da técnica. Pelo contrário: tornou-se referência por habitar cada timbre como se fosse uma extensão de sua própria alma - mesmo quando a alma alheia é digital, barulhenta ou reptiliana. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, Fernanda Baronne fala sobre limites, desejos, vícios sonoros e dinossauros com crises de identidade. O resultado é um passeio irreverente pelos bastidores da voz - onde o talento sempre fala mais alto.
Resenhando.com - Se a Scarlett Johansson resolvesse aprender português só para dublar a si mesma, você toparia ser a coach dela - ou preferiria evitar o risco de perder o posto?
Fernanda Baronne - Claro que eu toparia! Seria a minha chance de conhecer ela!!
Resenhando.com - Você dubla a Scarlett há anos. Já sonhou com ela? Já brigou com ela mentalmente por alguma fala impossível de dublar?
Fernanda Baronne - Nunca sonhei com ela não. No filme “Como Vender a Lua” ela me deu um trabalhinho. A personagem falava rápido demais, mas nunca briguei com ela mentalmente, não. Eu gosto de desafios!
Resenhando.com - É possível desenvolver uma espécie de carinho com as artistas que você empresta a voz? Com quem dessas artistas você mais se indentifica? Ou você impõe algum distanciamento?
Fernanda Baronne - É super possível! Nossa, eu tenho carinho por várias atrizes. A própria Scarlett, Jennifer Garner, Charlize Theron, Eva Green, Katherin Winnick, Carey Mulligan… Mas acho que as mais “próximas” são a Scarlett (principalmente por causa dos 10 anos de Vingadores), e a Jennifer Garner que eu dublo desde a série "Alias" e sempre me identifiquei muito com ela!
Resenhando.com - No universo de "Jurassic Park", qual dinossauro você seria?
Fernanda Baronne - Eu seria um dinossauro herbívoro porque tenho pavor de violência!
Resenhando.com - Alguma vez você já pensou: “essa atriz não me representa, mas vou ter que emprestar a minha voz mesmo assim”? Como lida com esse ruído entre ética e estética?
Fernanda Baronne - Eu acho que quando uma atriz está fazendo um personagem, ela está a serviço do personagem. Eu não estou simplesmente dublando aquela atriz especifica, estou dublando aquela personagem especifica. Então, esse tipo de coisa nunca chegou a me incomodar. Claro que se me chamassem pra dublar um vídeo de fake news ou ofensivo a alguém, eu me recusaria, mas, felizmente, isso nunca aconteceu.
Resenhando.com - Dublar envolve ceder a própria respiração a outra pessoa. Qual foi o momento em que você percebeu que isso virou, para você, uma forma de arte - e não apenas técnica?
Fernanda Baronne - Linda definição sobre a arte! Quando eu dou aula ou estou orientando alguém que está iniciando, eu sempre falo da respiração. Não basta falar na hora em que a pessoa falou e no mesmo ritmo; tem que respirar junto. Não basta respirar junto, tem que reproduzir as expressões. Por exemplo, quando a gente está falando e levanta uma sobrancelha no meio da frase, a nossa inflexão de voz muda. Quando a gente está falando e pega alguma coisa no chão, o nosso jeito de falar, muda. São muitos detalhes que podem parecer pequenos, mas que tornam a dublagem uma arte profunda e sútil. Eu dublo desde pequena, mas acho que comecei a sentir que a dublagem realmente passou a ser uma forma de arte, foi depois que fiz minha formação em teatro. Naquele momento, eu entendi que a dublagem era apenas mais uma ferramenta para o ator expressar a sua arte, assim como o palco, o vídeo, o rádio, e tantos outros veículos…
Resenhando.com - Você começou na dublagem quando “Carrossel” ainda era novidade e o Google nem existia. Hoje, com IA clonando vozes e rostos, o que ainda é irreplicável no trabalho de um dublador de verdade?
Fernanda Baronne - Você disse bem: a “IA clona”. Ela apenas replica, ela não cria. E o que ela “cria” foi alimentado por uma imensidão de dados de trabalhos artísticos protegidos por direitos autorais cujos criadores não receberam qualquer remuneração por isso. Aliás, sequer autorizaram o uso. Mesmo que um dia aprimorem a IA e ela possa soar como alguém de verdade, tem uma coisa que ela jamais vai ter: alma. Um bom trabalho de dublagem traz a alma do dublador nele. A minha maneira de dizer uma frase quando estou dublando alguma personagem feita pela Scarlett, por exemplo, vem não só de todas as experiências artísticas que eu tive até hoje como também de tudo que eu vivi até hoje. Todas as experiências, profissionais e pessoais, moldam o artista; ele é inevitavelmente a soma de todas elas. O que a IA produz é um “Frankenstein”, uma colcha de retalhos sem alma. Uma das formas de nos reconhecermos humanos é através da arte. Como vamos nos reconhecer através de algo que foi produzido sem alma? Se um dia a IA realmente dominar a produção artística, será que não nos tornaremos meros reflexos das máquinas? Sem profundidade e sem alma? Acho que é algo sobre o qual precisamos começar a refletir bem seriamente.
Resenhando.com - Qual personagem você dublaria de novo, mas só depois de um bom vinho, um suspiro fundo e terapia?
Fernanda Baronne - Posso escolher dois? Jackie, de Hilary e Jackie, interpretada magistralmente pela magnífica Emily Watson, e a Marylin Monroe da Anna de Armas em Blonde.
Resenhando.com - Se sua voz fosse congelada em âmbar, como no DNA dos dinossauros de Jurassic World, o que você gostaria que as futuras gerações ouvissem dela?
Fernanda Baronne - Eu adoraria que elas ouvissem minha voz dizer coisas como: “Não há mais guerras no mundo”, ou “O ser humano aprendeu a respeitar a natureza”, ou “Não há mais fome no mundo e todo mundo tem onde morar.”
Resenhando.com - Você dubla mulheres fortes, perigosas, engraçadas, misteriosas. Já teve que inventar emoções que a atriz original não entregou? Como lidar com o papel de "melhorar" a atuação alheia?
Fernanda Baronne - Eventualmente, nós fazemos trabalhos que não parecem estar muito bem realizados. Eu digo “parecem” porque por se tratarem de trabalhos em língua estrangeira, sempre pode ser uma falta de compreensão cultural nossa do que é a interpretação naquela cultura. Mas, sim, isso já aconteceu. Na dublagem, por termos a imagem junto, não dá pra fugir totalmente do que a atriz está expressando fisicamente. Eu sempre dou o exemplo da interpretação clássica em novelas mexicanas que, para a nossa cultura, é bem exagerada. Não dá pra fugir totalmente daquilo, senão fica falso, mas claro que dá pra melhorar, pra aproximar mais da gente. Esse “inventar emoções” nada mais é do que o trabalho de interpretação do ator. Num caso desses, é como se você estivesse pintando sobre uma tela semi pronta, mas na qual você enxerga várias possibilidades de mudança: um sombreado, um tom, um efeito de luz… Você segue o que foi começado, mas dá o seu toque a partir do momento em que pega o pincel. E, às vezes, não tem a ver mesmo com um trabalho de má qualidade, mas com um jeito de interpretar ou de falar totalmente oposto ao que temos aqui. Os K Dramas, por exemplo, que fazem muito sucesso no Brasil. A língua coreana é muito diferente da nossa, o jeito deles de falar, os fonemas, a musicalidade… mas a essência, a alma, o bom trabalho, estão lá. Cabe aos dubladores traduzir aquilo para algo que se assemelhe mais ao nosso “jeito” de viver as coisas. É isso que eu chamo de “versão brasileira”.
Resenhando.com - Em um mundo ideal, que atriz do cinema internacional você ainda não dublou - mas gostaria de dar voz como se estivesse pegando carona em sua alma?
Fernanda Baronne - Hipoteticamente falando, claro, porque a atriz que eu vou citar já é dublada por uma colegas super talentosa que é a Adriana Torres, eu adoraria dublar a Claire Danes. Acho ela incrível!
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Ele já salvou vidas com estetoscópio na mão e agora arranca gargalhadas com um jaleco e uma peruca loira. Bruno Baroni, médico formado em 2020 em plena pandemia, decidiu que o hospital também podia ser palco - e viralizou ao transformar o cotidiano tenso das emergências em esquetes que dialogam com milhões de seguidores. Agora, ele leva esse universo para os palcos com a comédia teatral “Eu Também Sou Médico”, que mistura stand-up, personagens hilários e caos institucional com precisão cirúrgica. O espetáculo fica em cartaz até dia 29 de julho no Teatro Uol, com sessões às terças, às 20h00. Depois, parte em turnê por Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Curitiba.
A peça, em parceria com a roteirista e atriz Thaisa Damous, estreia em São Paulo e já tem sessões esgotadas. Na encenação, Bruno dá vida a tipos reconhecíveis por qualquer brasileiro que já passou por um postinho ou UPA: desde a residente insegura até a temida Doutora Dinossauro. Mas é com a enfermeira Sandra, diva do SUS e fenômeno nas redes, que ele conquista plateias e desafia os estereótipos do profissional de saúde.
Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, Bruno Baroni fala sobre vaidade médica, humor como remédio, a responsabilidade de rir do que dói - e como sobreviveu ao plantão mais longo do mundo: o da pandemia. Prepare-se para uma consulta fora do comum. E pode rir à vontade: aqui, o convênio é com o bom senso.
Resenhando.com - Você viralizou com a enfermeira Sandra. Mas diga com sinceridade de jaleco: quem é mais difícil de lidar, o algoritmo ou o paciente que “só quer uma dipirona”?
Bruno Baroni - Com toda a certeza o algoritmo! Até porque o algoritmo é algo completamente instável e imprevisível! Eu estudei seis anos de medicina e três anos de pós-graduação em dermatologia, então sou preparado pra tratar e cuidar do paciente! Quando aprendemos medicina, não é ensinado só o tratamento de uma doença, mas tambem aprendemos a como lidar com todas as possíveis complicações que podem acontecer com um paciente! Já o algoritmo, não é algo que aprendemos em lugar nenhum! Ainda mais eu, que cai de paraquedas nesse mundo do entretenimento, sem nenhuma pretensão.
Resenhando.com - A medicina exige precisão. A comédia exige timing. Quando o plantão virou palco e você decidiu que o estetoscópio também podia ser microfone?
Bruno Baroni - A comédia sempre fez parte da minha personalidade! Eu consumia quando criança muito conteúdo de humoristas muito conhecidos, e me identificava naquilo que eu via nos comediantes! Eu sempre tive esse olhar mais cênico das coisas, e conseguia visualizar cenas na minha cabeça de coisas do cotidiano que poderiam ser traduzidas em cenas de comédia! Quando o meu reconhecimento na internet aconteceu eu vi que eu conseguia levar pras pessoas o meu ponto de vista das coisas! Mas eu sinto que eu tenho uma necessidade de levar o riso pras pessoas de uma maneira mais próxima! Quero estar de frente com as pessoas! Eu me juntei com minha amiga roteirista Thaisa Damous em dezembro e decidi! Vamos escrever juntos uma peça, e vamos pros palcos!
Resenhando.com - Qual foi a primeira vez que você riu - de nervoso - dentro de um hospital? E teve que disfarçar com um “licença, vou ali buscar o prontuário”?
Bruno Baroni - É dificil lembrar de um momento específico! Ate porque minha memória é uma coisa a ser estudada, de tão enferrujada! Mas eu me lembro de momentos que me marcavam! Os momentos de alegria e risos na hora do café, quando todos os setores se juntavam em um só lugar pra fofocar e
compartilhar histórias! Enfermeiros, técnicos, médicos, auxiliares de limpeza, recepcionistas, todos em um só lugar rindo em unidade! Aquilo me trazia um conforto tão grande! Eu sempre sentia que o riso trazia as pessoas a se unir! Aqueles momentos para mim eram mágicos!
Resenhando.com - “Eu Também Sou Médico” mistura stand-up, teatro e caos hospitalar. Você aredita que, no fundo, médicos e atores vivem do mesmo combustível: improviso e vaidade?
Bruno Baroni - Não acredito que os médicos e atores vivam de um combustível de improviso e vaidade! Até porque os atores e médicos devem fazer uma desconstrução do ego, tanto para ter empatia e se colocar no lugar do paciente, quanto nos palcos quando se entrega a um papel de algum personagem!
Resenhando.com - Sandra, sua enfermeira pop, virou oráculo da saúde pública nas redes. O que ela diria hoje para um estudante do primeiro ano de medicina?
Bruno Baroni - Ela diria para colar na enfermagem! E sempre tratar todo o setor de maneira educada! Porque uma boa relação com a equipe do plantão faz com que o trabalho flua muito melhor! Ainda mais quando estamos começando! Todos estão ali para te ajudar, e te ver ajudar o próximo
Resenhando.com - Entre a pandemia e a fama, o que você aprendeu sobre remédio que não se compra em farmácia?
Bruno Baroni - A empatia! Saber se colocar no lugar do outro é algo que não se compra. E é o diferencial na hora de formar um profissional competente e humanizado. Saber entender as dificuldades e medos do meu paciente, e saber cuidar de forma individualizada cada pessoa!
Resenhando.com - Você se formou em 2020, no meio do colapso. Agora estreia nos palcos. Como foi sair da linha de frente da UTI direto para a coxia do teatro?
Bruno Baroni - Desde o último ano de faculdade comecei a fazer videos para a internet, e meu
crescimento aconteceu de forma muito espontânea e exponencial! Minha paixão pela comédia só foi
crescendo a cada ano! Eu tenho um prazer enorme em fazer o outro rir, tirar uma gargalhada de alguém!
E eu queria muito levar isso pras pessoas pessoalmente e nao só pela tela do celular!
Resenhando.com - Você está com quase três milhões de seguidores e uma peça em turnê. Em que
momento você se deu conta de que também era artista - e não só médico comediante?
Bruno Baroni - Nunca me enxerguei so como um médico comediante! Sentia que eu era um profissional multifacetado! Ao mesmo tempo medico, ao mesmo tempo humorista, criador de conteúdo!
Mas senti que queria essa mudada de chave na carreira indo pros palcos pra sentir o calor do publico!
Transformar aquele publico das redes em publico que eu poderia enxergar, abraçar e agradecer por todo
o carinho que me deram. Porque foi esse carinho que me fez chegar até aqui! Foi esse carinho que me
fez me sentir talvez o artista que sou hoje!
Ficha técnica
Espetáculo “Eu Também Sou Médico”
Elenco: Bruno Baroni e Thaisa Damous
Texto: Bruno Baroni e Thaisa Damous
Direção: Camila Vaz e Thaisa Damous
Produção: Ika Tronco
Figurino: Danilo Diniz
Iluminação: Vini
Cenografia: Grazi Bastos
Assessoria de Imprensa: Angelina Colicchio e Diogo Locci - Pevi 56
Serviço
Espetáculo “Eu Também Sou Médico”
Teatro Uol (Av. Higienópolis, 618 - Consolação)
Até dia 29 de julho, terças-feiras, às 20h00
Ingressos: entre R$ 45,00 e R$ 120,00. À venda pelo site do Teatro Uol
Classificação: 14 anos
Duração: 90 minutos
Em tempos de ruído, Ricardo Martins escolheu escutar. Ouviu a mata pulsando sob os pés, os xapiripë sussurrando entre galhos, e o chamado de um povo que ainda insiste em existir com dignidade onde quase tudo conspira contra. Consagrado por capturar a beleza bruta da natureza brasileira, o fotógrafo e documentarista se jogou em uma das mais radicais experiências da carreira: conviver com os Yanomami, um dos últimos povos originários isolados da floresta amazônica, e registrar a intimidade deles sem invadi-la.
Surgiram daí o livro “Os Últimos Filhos da Floresta” e a série “Aventura Fotográfica Yanomami”, que estrearam no MIS-SP como um chamado poético, político e urgente. Mas este não é apenas mais um projeto de imagens: é também um gesto de devolução. Parte da renda financia a construção de uma escola na aldeia Hemare Pi Wei, um pedido das lideranças indígenas e um símbolo da ponte possível entre mundos.
Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, Ricardo Martins conversa sobre fronteiras éticas, espiritualidade, colonialismo contemporâneo, fotografia como afeto - e sobre o que, mesmo depois de 15 livros, ele ainda não conseguiu traduzir com uma lente. Prepare-se para mergulhar em um território onde o retrato vira reza, a arte vira dívida, e a floresta, enfim, responde. Compre os livros de Ricardo Martins neste link.
Resenhando.com - Você já fotografou vales, serras, bichos e cidades. Mas e os silêncios dos Yanomami - você conseguiu capturar algum nas imagens? Justifique.
Ricardo Martins - Os silêncios dos Yanomami aparecem no gesto de uma criança que observa quieta, no olhar profundo de um ancião, no intervalo entre uma palavra e outra dita ao redor da fogueira. Eu tentei, com todo respeito, deixar espaço para que esses silêncios respirassem dentro das imagens — sem invadir, sem traduzir demais. Acho que quem vê as fotos com o coração aberto, talvez consiga ouvi-los também.
Resenhando.com - Ao ouvir de um líder indígena que seu nome “ecoou pela floresta”, o que ecoou em você naquele instante? Algum Ricardo ficou pra trás?
Ricardo Martins - Naquela hora, não ecoou só o meu nome — ecoou tudo o que eu vivi até chegar ali. Ecoaram as escolhas, as renúncias, as perguntas que me acompanham desde sempre. Um Ricardo mais apressado, mais urbano, mais ansioso ficou pra trás sim. Porque ali, na floresta, o tempo é outro. O ouvir é outro. E ser chamado de verdade por alguém que carrega a sabedoria do território me fez entender que eu estava sendo visto, mas também sendo acolhido.
Resenhando.com - “Os Últimos Filhos da Floresta” é um título quase apocalíptico. Você o escolheu com tristeza, urgência ou revolta?
Ricardo Martins - Eu escolhi com um pouco de tudo isso: tristeza, urgência e revolta. Mas acima de tudo, com amor. O título não é um fim — é um grito. Um aviso. Os Yanomami são guardiões de um mundo que está desaparecendo, e a gente precisa parar de fingir que isso não está acontecendo. O livro é um tributo, mas também é um alarme.
Resenhando.com - Documentar é escolher o que entra no enquadramento. Do que você teve que abrir mão para respeitar o invisível sagrado dos Yanomami?
Ricardo Martins - Abri mão da pressa. Abri mão da lógica do “conteúdo” que tudo quer mostrar. Não fotografei cerimônias que me pediram para não registrar. Não fiz perguntas que atravessassem barreiras sagradas. Eu estava ali como hóspede, e mais do que documentar, eu precisava escutar — mesmo quando a escuta era em silêncio.
Resenhando.com - Na hora de dormir na mata ou presenciar um ritual, em que momento o fotógrafo cedeu lugar ao homem?
Ricardo Martins - Quando escurece na floresta e o barulho do mundo de fora some, é o homem que sente medo, frio, beleza, presença. Nessas horas, a câmera até pode estar ao lado, mas ela perde força. Eu dormi em rede, me alimentei com eles, vivi o dia como eles vivem. E percebi que fotografar também é um gesto humano, mas ele precisa vir depois da escuta, depois do respeito.
Resenhando.com - Sua contrapartida foi a construção de uma escola. Você acredita que a câmera pode ser um tipo de ponte - ou também pode ser um invasor disfarçado?
Ricardo Martins - Ela pode ser os dois. Tudo depende de como se usa, de onde vem o olhar. Se você entra com a câmera como se ela fosse uma arma ou um troféu, ela vira invasora. Mas se ela vem junto com o coração, com o tempo, com o propósito verdadeiro — ela vira ponte. Minha intenção com o projeto sempre foi devolver algo real, algo que ficasse. A escola é essa devolução concreta. A fotografia, espero, seja também.
Resenhando.com - Os xapiripë, os espíritos brincalhões da floresta, aparecem nas fotos? Ou são justamente aquilo que escapa de toda lente?
Ricardo Martins - Eles escapam, claro. E ainda bem que escapam. A fotografia pode até registrar uma atmosfera, um brilho estranho na neblina, um movimento sutil… Mas os xapiripë vivem num plano que não se deixa capturar. Eles dançam no invisível. E talvez, quem olhar com atenção, sinta a presença deles - mesmo que não veja.
Resenhando.com - Se fosse possível mostrar apenas uma imagem desse projeto ao presidente da República, qual seria — e o que ela gritaria, em silêncio, para ele?
Ricardo Martins - Seria exatamente a fotografia da capa do livro: o retrato direto, firme e silencioso. O olhar dele atravessa quem vê, como se dissesse: “Nós estamos aqui. Seguimos de pé.” Essa imagem não precisa de legenda. Ela carrega dignidade, história e uma força ancestral que não se curva. A pintura no rosto, o cocar, a mão apoiada - tudo ali é resistência e sabedoria. Ela grita em silêncio: “Nos respeite. Nos proteja. Pare de fingir que não vê.” Mostrá-la ao presidente seria como obrigá-lo a encarar o que muitos ainda insistem em ignorar: que os povos originários não são passado. São presente. E precisam de políticas, não de promessas. Essa foto é um espelho. E quem a encara de verdade, precisa se perguntar: de que lado da história eu estou?
Resenhando.com - Você já retratou a Amazônia como paisagem. Agora, a retrata como corpo. Como isso transformou sua forma de existir no mundo?
Ricardo Martins - Antes, a floresta era horizonte. Agora, é pele. É carne. É o cheiro do urucum, o som dos passos leves, o gosto da mandioca. Conviver com os Yanomami me tirou da posição de observador e me colocou num lugar de troca. Hoje, carrego a floresta dentro — não como uma ideia bonita, mas como um compromisso.
Resenhando.com - Depois de 15 livros e tantas expedições, o que a floresta ainda te nega? E o que você ainda não teve coragem de perguntar a ela?
Ricardo Martins - A floresta ainda me nega todas as respostas prontas. E talvez esse seja o maior presente. Eu ainda não tive coragem de perguntar se estou pronto pra parar. Porque acho que no fundo, enquanto houver floresta viva e gente lutando por ela, meu caminho ainda é esse: contar, mostrar, devolver.
“Pretinho é camaleão, sabe?” Com essa frase que ecoa como verso e diagnóstico, Leonardo Simões sintetiza o espírito de seu livro de estreia, "Folha de Rosto", publicado pela Mondru Editora. Mineiro de nascença, paulista por adoção e poeta por combustão interna, o autor mergulha nas contradições do Brasil recente para transformar identidade, afeto e política em matéria literária. É um autor consciente de que escrever hoje é, também, um ato de sobrevivência.
Escrito entre 2018 e 2022, período em que “o Brasil virou um meme de si mesmo”, o livro assume a forma de um romance em poemas, um dossiê lírico sobre um país onde apelidos machucam, onde relações desmoronam por ideologia e onde “a identidade, que antes era criada a partir da autenticidade, virou um tipo de produto”. Para Leonardo, escrever "Folha de Rosto" foi mais do que publicar versos: foi enfrentar seus próprios estilhaços e decidir “quais tradições, costumes e relacionamentos você vai dar o sangue pra não perder nunca”.
Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, o autor fala sobre racismo, arte como resistência, a tensão entre forma e conteúdo e o perigo de se perder no personagem. Com franqueza e delicadeza, ele convida o leitor a olhar o país pelo reflexo torto de um espelho onde, talvez, o que apareça seja um ornitorrinco.
Resenhando.com - “Folha de Rosto” é um romance em poemas, mas também soa como um dossiê emocional da vida no Brasil recente. Escrever poesia em tempos de polarização é um ato de ingenuidade, resistência ou desespero?
Leonardo Simões - Acho que é um pouco dos três. Recentemente, assisti uma peça - chamada “Poema” - que parte dessa mesma pergunta. O certo é que a arte é um ponto cardeal quando o caos se instala. Não por acaso, a arte é a primeira coisa a ser limada e atacada por qualquer regime totalitarista. A polarização não pode resistir à poesia, ao teatro, ao cinema e aos demais processos criativos.
Resenhando.com - Em um país onde "pretinho" ainda vem carregado de camadas - do afeto disfarçado ao racismo não admitido - como foi para você transformar essa palavra em literatura sem diluir sua dor?
Leonardo Simões - O distanciamento é necessário para se criar uma imagem que absorva mais de uma dor. A poesia, de certa forma, é uma imagem. Para trabalhar o afeto e o racismo nesta tão tensa como a palavra “pretinho” sugere, para mim, foi importante não somente traduzir experiências pessoais, mas encontrar o ponto que está fora desse raio de visão, algo que atraia outros afetos, sejam eles bons ou ruins.
Resenhando.com - Seu livro começa com um apelido. Num país que adora apelidar tudo - do presidente ao entregador -, você diria que o Brasil tem vocação para batizar ou para reduzir alguém?
Leonardo Simões - Acho que sim. Faz parte do nosso jeitinho ser “cordial”. Mas a redução - ou os apelidos, como você citou - não demonstram carinho. Ao contrário, podem ser mecanismos para reduzir, para tirar a identidade do indivíduo. Veja “neguinho", por exemplo, o modo como essa palavra, dependendo do contexto, atinge níveis distintos de compreensão.
Resenhando.com - A fragmentação da identidade do protagonista ecoa a de muitos brasileiros. Mas... e você, Leonardo: ainda se sente às vezes um “camaleão de classe média preta em crise permanente”?
Leonardo Simões - Não um “camaleão de classe média”, mas sim “em crise permanente". Com as redes sociais, pulverizar sua própria identidade ficou fácil demais. Você apaga defeitos, edita falas, assume lados sem se aprofundar e pode ignorar tudo isso apenas descendo o feed por horas e rindo de memes. A identidade, que antes era criada a partir da autenticidade, virou um tipo de produto. Então, fica cada vez mais difícil entender o que se é, já que há mais influências e referências do que tempo para absorver a experiência. Para o camaleão, a camuflagem é seu mecanismo de defesa. Para gente, não usar todas essas camuflagens é que te livra do perigo de se perder no personagem. Manter a forma original, de certa forma, é estar em crise permanente. Consigo e com o mundo.
Resenhando.com - Entre Ferreira Gullar e o caos das redes sociais, onde você encontra mais material para escrever: nos clássicos da literatura ou nos comentários do YouTube?
Leonardo Simões - É impossível não ser cercado pelas redes sociais. E há diversos canais que colaboram para que os clássicos sejam conhecidos e lidos. Eu tento não me fechar em uma única, mas ficar sempre atento para aparecer e de certo modo me abastecer. Para mim, nesse momento, a fonte de pesquisa está conectada ao objetivo do trabalho. Para fazer “Folha de Rosto", reli a obra inteira do Ferreira Gullar algumas vezes durante o processo. O TikTok tem sido meu reduto. Finalizei uma dissertação de mestrado sobre o app, que se tornou um livro de ensaio, e também para a criação de outro livro. O que estou fazendo agora pede isso. Mas o valor dos clássicos está acima de tudo. É importantíssimo estar por dentro do que já foi escrito.
Resenhando.com - Seu livro pergunta se os casais terminam por amor ou por política. Quantos relacionamentos você perdeu entre 2018 e 2022?
Leonardo Simões - Acho que uns cinco, mais ou menos. O número parece pequeno, mas eram pessoas que estavam no convívio. Quando você se vê em lados tão opostos, ou o rompimento é definitivo ou dá pra ser moderado, encontrar um caminho mais próximo do meio… o importante, acredito, não é bem quantos relacionamentos foram perdidos, mas quais foram mantidos. Perder relacionamentos, seja pela política ou não, faz parte da vida. Vai acontecer. As coisas sempre vão mudar. A batalha mesmo é escolher o que vai ser mantido, quais tradições, costumes e relacionamentos você vai dar o sangue pra não perder nunca.
Resenhando.com - "Folha de Rosto" poderia ser lido como um diário íntimo ou um relatório sociológico - mas você o chama de romance. Isso foi uma decisão estética, afetiva ou política?
Leonardo Simões - Fico feliz pelo “relatório sociológico", mas essa nunca foi a intenção. A decisão por chamá-lo assim se dá por sua forma esguia, já que é um livro cujo conteúdo foca em alguém na busca por compreender sua identidade. Para isso, prosa e poesia parecem disputar o espaço dessa “voz”. Então, a forma tenta se conectar ao conteúdo. Ou o conteúdo busca delimitar a forma. A dúvida também faz parte dessa “decisão”.
Resenhando.com - O Brasil de 2018 a 2022 foi um laboratório de distorções. Ao escrever nesse intervalo, você teve mais medo de parecer panfletário ou de ser lido como neutro?
Leonardo Simões - Ótima pergunta. Mas não tive medo de ser lido como panfletário. O livro foge disso. No poema “ex-filho", por exemplo, a "voz” está muito mais próxima de alguém egoísta, abominável e narcisista. Criar essa tensão parecia importante para mostrar que mesmo as pessoas engajadas politicamente tem suas contradições. “Sobre Isto", livro do poeta Maiakovski, é uma briga feia dele com sua esposa, relatada em versos ferinos. O poema, Inclusive, serve de referência para “banho”, um texto do livro que também fala de uma desavença entre o casal. Sobre ser neutro, também não tive esse medo porque “Folha de Rosto” não defende uma ideia política, mas poética. A partir daí, cada um escolhe o “estilhaço” que vai usar para se defender (ou atacar).
Resenhando.com - Você transita entre a criação publicitária e a literatura. O que dá mais trabalho: vender um carro ou convencer um leitor a sentir?
Leonardo Simões - Vender um carro dá mais trabalho porque trabalha em uma única chave: convencer alguém a comprar alguma coisa. Na literatura, você pode frustrar, contrariar, irritar e uma infinidade de outras possibilidades sem que “agradar" seja prioridade. Aliás, não é. Se a literatura só quer agradar o cliente, aí vira publicidade…
Resenhando.com - Você escreveu “Pretinho é camaleão, sabe?”. E se hoje o Brasil se olhasse no espelho, que bicho ele veria?
Leonardo Simões - Um ornitorrinco: um mamífero que põe ovos, semiaquático, que não é ave, mas tem bico de pato e rabo de esquilo. Hoje, a política, a cultura e os relacionamentos no Brasil nunca foram tão confusos quanto olhar para um ornitorrinco.