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terça-feira, 18 de novembro de 2025

.: Entrevista: Eric Nepomuceno, tradutor brasileiro de Gabriel García Márquez

Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.comFoto: Paula Johas

Eric Nepomuceno pertence à categoria dos tradutores que vão além das palavras, ele decifra mundos. Ao transportar a linguagem de um idioma para outro, ele também tem o dom de preservar todas as nuances de um texto, como a musicalidade, a sombra e a memória de um autor. Amigo íntimo de Gabriel García Márquez por quase quatro décadas, ele testemunhou de perto não apenas a construção literária de "Cem Anos de Solidão", mas o homem por trás de Macondo, os rituais, as manias, o humor e a personalidade do grande mestre. 

Agora, com a nova edição ilustrada do romance - que chega ao Brasil publicado pela Editora Record acompanhada das imagens vibrantes de Luisa Rivera -, Nepomuceno revisita a obra-prima que o acompanha desde sempre e reflete sobre o gesto de traduzir um universo tão musical quanto indomável. Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, ele fala sobre a amizade com Gabo, das escolhas que se fazem entre uma língua e outra, da resistência em ver os Buendía desenhados e da música secreta que só é possível ouvir quando se lê devagar. Um encontro raro com um dos maiores intérpretes literários das Américas. Compre a edição ilustrada de "Cem Anos de Solidão" neste link.


Resenhando.com - A nova edição de "Cem Anos de Solidão" apresenta ilustrações inéditas da artista chilena Luisa Rivera. Como o senhor percebe o diálogo entre texto e imagem nessa edição? As ilustrações influenciam de alguma forma a leitura do romance?
Eric Nepomuceno - Primeiro quero elogiar o trabalho da Luisa Rivera, que é uma desenhista extremamente talentosa. E suas ilustrações influenciam, claro, a leitura. Por isso García Márquez jamais permitiu que seus personagens fossem desenhados e recusou milhões e milhões de dólares para que "Cem Anos..." fosse levado ao cinema. Queria que cada leitor tivesse o seu Aureliano Buendía pessoal, cada personagem só dele. Depois que García Márquez cometeu a cruel imprudência de partir na viagem sem volta, os filhos autorizaram tudo. Não vi os filmes, passei os olhos por poquíssimas ilustrações justamente para continuar tendo meu Buendía pessoal, todos os meus personagens pessoais, e manter a fidelidade que me uniu a García Márquez por quase 40 anos de amizade.


Resenhando.com - O senhor traduziu obras de García Márquez ao longo de décadas. Como foi construir, ao longo do tempo, uma intimidade literária com o autor? Em que ponto o tradutor passa a “respirar” junto com o texto do escritor?
Eric Nepomuceno - Eu digo sempre que não sou e nunca fui tradutor profissional. Traduzo os amigos , além de duas ou três exceções que tinham especial interesse para mim. E digo que minha função é passar para o meu idioma o que o autor passou no dele: a mesma respiração, o mesmo ritmo, a mesma melodia, as mesmas pausas... Repito sempre que o melhor prêmio que recebi ao longo da vida não foram os Jabutis. Foi ouvir que nem parece tradução...


Resenhando.com - Muitos leitores de "Cem Anos de Solidão" dizem que o romance tem um ritmo próprio, quase musical. Como o senhor traduz ritmo, cadência e silêncio - elementos tão importantes na prosa de García Márquez? 
Eric Nepomuceno - Ora, mil perdões, mas a resposta está na pergunta: ritmo é ritmo, como na partitura musical. Cadência é cadência, no andamento da melodia. E silêncio é silêncio... Se a literatura de outro mestre de mestres, Ernest Hemingway, é mais silenciosa, a de García Márquez é extremamente musical... Ele traz o Caribe para a escrita, com todo o seu balançar e a sua melodia, ora alegre, ora melancólica...


Resenhando.com - Quando o senhor traduz, pensa no leitor brasileiro ou tenta manter a atmosfera original para que o leitor “viaje” até Macondo? 
Eric Nepomuceno - Sim, penso no leitor brasileiro, com certeza. E repito, mil perdões pela repetição...: minha função é trazer o livro para o português falado no Brasil. Daí manter a atmosfera e levar o leitor até Macondo e apresentar a ele os personagens, para que cada leitor crie a sua própria imagem. Daí minha resistência a ver o livro ilustrado. Vi apenas as primeiras, para confirmar que a Luisa não é propriamente uma ilustradora, é uma ótima desenhista.


Resenhando.com - O vocabulário latino-americano é riquíssimo e, às vezes, intraduzível. Há alguma palavra ou expressão de García Márquez que o senhor tenha lutado para encontrar uma equivalência em português?
Eric Nepomuceno - Nada é intraduzível. É sempre possível encontrar a tradução correta, com o mesmo peso, a mesma melodia, a mesma pausa. Não me lembro de nenhuma palavra ou expressão que tenha sido especialmente difícil. Repito: o importante é encontrar o ritmo, a melodia, as pausas...


Resenhando.com - Além de tradutor, o senhor é escritor e jornalista. Essas três funções conversam entre si ou entram em conflito quando está traduzindo?
Eric Nepomuceno
 - Eu só sei fazer duas coisas na vida, cozinhar e escrever. Como nunca fui convidado para assumir um restaurante, só me restou viver do ofício de escrever. Não, nunca há conflito, é só uma das três vertentes do meu ofício...


Resenhando.com - Seu trabalho como correspondente e jornalista investigativo o levou a cobrir momentos históricos e tensos, como o período das ditaduras latino-americanas. Essa vivência interferiu na sua forma de ler e traduzir a literatura do continente? 
Eric Nepomuceno
 - Mais que só ditaduras, cobri guerras civis especialmente sanguinárias, especialmente na América Central. Sua pergunta é boa, mas serei honesto na resposta: nunca pensei nisso. Interferiu, com certeza, na minha forma de ver a vida e o mundo... 


Resenhando.com - O senhor costuma dizer que traduzir é “escutar o texto”. O que "Cem Anos de Solidão" diz quando ninguém está ouvindo? 
Eric Nepomuceno
 - O que pretendo dizer é justamente o que disse agora há poco: para mim, literatura é música. Tem ritmo, tem harmonia, tem linha melódica, tem pausar... Não posso dizer aqui o que ouço quando leio e releio "Cem Anos...". Que cada leitor ouça do seu jeito...

Resenhando.com - García Márquez afirmava que todo escritor escreve sempre o mesmo livro - e o dele seria “o livro da solidão”. Qual é o livro que o senhor, como tradutor e escritor, tem escrito ao longo da vida?
Eric Nepomuceno
 - Eu, além de traduzir, escrevo contos e livros de não-ficção, livros jornalísticos. Vou dizer o que sinto neste exato instante, que pode mudar amanhã... De não ficção, "A Memória de Todos Nós", que conta de vítimas das ditaduras instaladas na América do Sul entre 1964 e 2020. E de contos, fico na dúvida entre "A Palavra Nunca" e "Quarenta Dólares e Outras Histórias".

domingo, 16 de novembro de 2025

.: Entrevista: Jerónimo Pizarro fala sobre o legado de Ricardo Reis


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com
Foto: divulgação

Segurar um livro de Ricardo Reis em 2025 é como abrir uma janela para um tempo que nunca existiu - e, ainda assim, insiste em assombrar. Há algo de profundamente irônico, quase literário demais para ser coincidência, no fato de o heterônimo que talvez tenha “se exilado” no Brasil retornar justamente agora, completo, restaurado, decifrado, com seus paradoxos intactos. A Tinta-da-China Brasil lança a primeira obra completa de Ricardo Reis, organizada por Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe, e a sensação é a de estar diante não apenas de um volume, mas de uma espécie de artefato arqueológico: um mapa para entrar na mente dividida - e multiplicada - de Fernando Pessoa.

Reis, o mais sereno dos inquietos, o mais clássico dos modernos, sempre foi um desafio até para quem vive de enfrentar manuscritos poeirentos e grafias arcaizadas. “Vivem em nós inúmeros”, escreveu ele - e talvez nenhuma frase explique melhor o exercício de tentar organizar a obra de alguém que, por definição, nunca foi apenas um. Nesta edição, o leitor encontrará poesia, prosa, inéditos, variantes e uma ortografia que soa como mármore: dura, bela, cheia de ecos gregos e latinos. 

Conversar com Jerónimo Pizarro - arqueólogo do espólio pessoano - é perceber que Reis continua a  desafiar. A amplitude da prosa escrita por ele desmonta a imagem de uma serenidade absoluta; sob as odes perfeitas há dúvida, trabalho, hesitação. Em tempos de velocidade ansiosa, há algo de  contemporâneo na contenção ricardiana, nesse equilíbrio que se sustenta sobre tensões, jamais sobre certezas. Em meio ao ruído, Reis oferece lucidez - e uma rebeldia silenciosa.

Em entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, Jerónimo Pizarro abre as “arcas de Pessoa” ao lado de quem passou anos dentro delas. Ele fala de grafias arcaizadas, do paradoxo entre classicismo e modernidade, de descobertas recentes, de ética pagã e também do simbolismo quase poético de lançar, no Brasil, o heterônimo que para cá teria fugido. Afinal - como Reis talvez sorrisse ao lembrar - nada é definitivo. Compre o livro "Obra Completa de Ricardo Reis", edição de Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe, neste link.


Resenhando.com - “Vivem em nós inúmeros”, escreveu Ricardo Reis - e talvez também se pudesse dizer: “editam-nos inúmeros”. O que significa organizar a obra completa de um heterônimo cuja própria existência é feita de paradoxos e desdobramentos?
Jerónimo Pizarro - Organizar a obra completa de Ricardo Reis é aceitar a contradição como princípio. Reis representa uma forma de disciplina poética que Pessoa inventa para equilibrar o tumulto dos outros. Mas Reis não é menos tumultuoso, nem em termos de filologia nem de ontologia...


Resenhando.com - Entre todos os heterônimos de Pessoa, Ricardo Reis talvez seja o mais enigmático: monárquico e pagão, clássico e moderno, racional e melancólico. Como traduzir esse equilíbrio de contrários em um volume que pretende ser definitivo?
Jerónimo Pizarro - A enigmática serenidade de Reis vem precisamente desse equilíbrio de contrários. A edição tentou refletir isso não através de um gesto unificador, mas respeitando a coexistência de tensões. Basta, por exemplo, começar a ler a prosa em paralelo com a poesia e vice-versa...


Resenhando.com - A edição mantém a grafia original usada por Pessoa - uma escolha que parece mais filosófica do que apenas filológica. Por que era essencial preservar essa ortografia “arcaizada” de Reis?
Jerónimo Pizarro - Preservar a ortografia de Reis é fazer uma homenagem ao seu tempo, ao seu classicismo. Até certo ponto, a ortografia “arcaizada” é parte do estilo ricardiano.


Resenhando.com - Há, neste livro, textos inéditos e variantes que reconfiguram o que sabíamos sobre Ricardo Reis. Que descobertas vocês destacariam? O que surpreendeu até mesmo os organizadores?
Jerónimo Pizarro - Entre as novidades, talvez surpreenda a amplitude da prosa de Reis: as reflexões filosóficas e notas que o aproximam de um ensaísta moral, não apenas de um poeta. Em princípio, as variantes revelam um labor que desmente a imagem de serenidade absoluta: há inquietação e dúvida sob o mármore aparente.


Resenhando.com - Pessoa dizia que “toda a arte é uma forma de literatura”. O que a prosa de Reis - menos conhecida do que as odes - revela sobre sua visão de mundo e sua relação com o próprio Pessoa?
Jerónimo Pizarro - A poesia e a prosa de Reis revelam uma vontade de pensamento, uma ética da distância. Nela, o diálogo com Pessoa torna-se mais nítido; como se ambos, o criador e a criatura, meditassem, lado a lado, sobre o valor da contenção (no meio da inúmera multiplicação...).


Resenhando.com - Ao ler Ricardo Reis hoje, em 2025, o que ele ainda fala? Em um tempo tão convulsionado e impaciente, que lição ética ou estética se pode tirar da serenidade pagã e do ceticismo de Reis?
Jerónimo Pizarro - Em 2025, o ceticismo ricardiano oferece lucidez; uma certa abdicação, resistência. Reis ensina que o equilíbrio pode coexistir com rebeldia e que o classicismo pode ser, paradoxalmente, uma vanguarda ética.


Resenhando.com - O livro encerra a trilogia da Coleção Pessoa, depois das obras completas de Caeiro e Campos. Que imagem do poeta - e do homem Fernando Pessoa - emerge dessa trilogia?
Jerónimo Pizarro - A trilogia da Coleção Pessoa mostra três formas de lidar com o infinito: Caeiro com a simplicidade, Campos com o excesso e Reis com a contenção. Juntas, as três obras revelam um Pessoa plural que se desdobra não para se perder, mas para se compreender melhor.


Resenhando.com - Ambos os organizadores têm trajetórias ligadas ao universo acadêmico e editorial, mas há também uma dimensão quase arqueológica em lidar com o espólio pessoano. O que mais fascina e o que mais exaure nesse trabalho de “abrir as arcas de Pessoa”?
Jerónimo Pizarro - O trabalho com o espólio pessoano é feito de fascínio e de um saber lidar com o cansaço físico. Fascina a inteligência labiríntica dos papéis, o modo como cada fragmento pode dialogar com outro; esgota a vastidão. Editar Pessoa é abrir caminhos que se multiplicam; cada descoberta traz novos interrogantes.


Resenhando.com - Há uma certa ironia em lançar a obra completa de Ricardo Reis no Brasil - o país para onde ele teria se exilado. Essa coincidência tem para vocês algum sentido simbólico?
Jerónimo Pizarro - Publicar Ricardo Reis no Brasil tem um sentido simbólico inevitável: é como se o heterónimo regressasse ao seu exílio imaginário. Há algo de circular e poético nesse gesto: Reis, que partiu para o Brasil, volta agora impresso e completo, como se cumprisse finalmente um destino literário.


Resenhando.com - Se Ricardo Reis pudesse escrever uma ode sobre este lançamento, o que ele diria?
Jerónimo Pizarro - Se Reis escrevesse uma ode sobre este lançamento, talvez dissesse: “Entre sombras antigas / e o rumor das nascentes, / um livro se fecha, outro desponta. / Nada é definitivo.” E sorriria, discretamente, perante a ideia de lançamento.



.: Ana Paula Couto, autora de "Amor de Alecrim", e mulheres 50+ em romance


Romance “Amor de Alecrim” continua a história de Amanda, protagonista de "Amor de Manjericão", e aborda temas como menopausa e independência emocional. Foto: divulgação


Com leveza e humor, a professora e escritora Ana Paula Couto lançou o livro "Amor de Alecrim", sequência de "Amor de Manjericão" (2022). O novo romance mergulha na vida de Amanda, uma mulher que, aos 50 anos, enfrenta desafios como crise conjugal, menopausa e a descoberta de novas paixões. A protagonista, que no primeiro livro superou um divórcio e um affair com um homem mais jovem, agora se depara com a aposentadoria, os dilemas da maternidade e o reencontro com um amor do passado. Além do entretenimento, a obra apresenta uma representação de uma personagem mais velha, discutindo temas como o etarismo e a invisibilidade feminina após os 50 anos.

Natural de Nova Friburgo (RJ), onde ainda reside, Ana Paula Couto é professora de língua inglesa há mais de duas décadas. Estreou na literatura em 2021, com participações em antologias como “Diário dos Confinados” (Editora Resilience). Seu primeiro romance, “Amor de Manjericão” (2022), foi pivô de sua transição para a carreira literária. Desde então, publicou os e-books “Conto Comigo” (contos) e “Vida Crônica” (crônicas) e participou de eventos como Flip e Bienais do Livro. Na entrevista abaixo, ela conta mais sobre o processo de escrita de “Amor de Alecrim”, seu segundo romance. Compre o livro "Amor de Alecrim", de Ana Paula Couto, neste link.


Quais são os principais temas de “Amor de Alecrim” e como eles dialogam com o primeiro livro, “Amor de Manjericão”?
Ana Paula Couto -  "Amor de Alecrim" é a continuação do meu primeiro livro, "Amor de Manjericão", e vem com temas como relacionamento entre mãe e filha, síndrome do ninho vazio, crise conjugal, aposentadoria, mudanças nos relacionamentos afetivos, autoconhecimento e independência emocional, menopausa e mudanças de paradigmas. "Amor de Manjericão" é um chick-lit que dá protagonismo a uma mulher 40+ retratando o seu processo de autoconhecimento e sua trajetória pessoal após uma traição seguida por um divórcio. A obra enfoca as nuances do universo feminino em que a personagem principal vivencia situações presentes em nossa sociedade como o etarismo, por exemplo, quando ela se relaciona com um homem bem mais jovem. Também retrata questões relacionadas à maternidade. Escolhi temas e assuntos que, de alguma forma, fossem comuns às mulheres e as tocassem de alguma forma. Quis trazer um spot ao cotidiano feminino. Sendo assim, Amor de Alecrim segue o mesmo tracejado do primeiro livro, trazendo, de forma leve e bem-humorada, a mesma personagem dez anos depois, já casada e cheia de questões inerentes à essa fase da vida.


Por que você decidiu escrever uma continuação?
Ana Paula Couto - Eu já havia pensado, assim que lancei meu primeiro livro, numa possível continuação, mas não era nada concreto. No entanto, ao lançar Amor de Manjericão, em 2022, recebi muito incentivo, e até ideias me foram dadas por leitores que me cobraram a continuidade da história. Em 2023, motivada pelo alcance que o Manjericão teve em tocar as pessoas e seus pedidos, me lancei na produção da sequência do romance. Escrevi o livro em um ano. Em 2024 busquei recursos profissionais para o meu segundo livro. Já que me senti mais preparada e possuía alguma experiência na área, utilizei-me do networking conseguido até então e submeti o livro à leituras críticas e beta. Esse ano foi todo destinado a lapidar e lançar o romance.


Que mensagem você espera que as leitoras encontrem nas duas obras?
Ana Paula Couto - Os livros trazem assuntos importantes de forma leve e divertida, como um bom chick-lit, mas também emocionam, tocam e inspiram mulheres. A principal mensagem é a superação de desafios e o não desistir de si mesmo, a despeito das circunstâncias e das vicissitudes da vida. Ambas histórias trazem, por meio de uma leitura fluida, o gostinho de se dar a volta por cima e saborear a esperança. Tudo isso regado aos temperos, manjericão e alecrim, que de forma lúdica, interferem no destino da personagem Amanda.


Para você, qual o diferencial desta história? Por que ela precisa ser contada?
Ana Paula Couto - Creio que o ponto forte de meus livros é abordar temas que refletem a vidas das mulheres como um todo. E também a questão de trazer personagens 40+ e 50+, fase da vida que se tem pouca representatividade. Sendo assim, acredito que, mesmo não sendo as personagens idosas, as histórias trazem luz ao envelhecer e às mudanças na vida das mulheres, o que acaba discutindo o etarismo.


O que a escrita destes dois livros representa para você, na sua trajetória pessoal e profissional?
Ana Paula Couto - A escrita do primeiro livro me transformou no decorrer de seu processo de criação por ter sido uma experiência terapêutica, já que trata-se de uma bioficção, mas, majoritariamente, escrever e lançar esse livro modificou a minha vida como um todo. Foi uma virada de chave em minha trajetória pessoal e profissional. Em um ano de lançamento me posicionei como autora de fato, desengavetando projetos. Participei de eventos literários em minha cidade e fora dela, me engajei em coletivos femininos de escrita e assim dei a largada da minha carreira como escritora e não parei mais. Percebi essa virada ao ser, agora, reconhecida como escritora e não mais somente vista como docente.


De que forma suas experiências anteriores com contos, crônicas e o blog Vida Crônica contribuíram para este segundo romance?
Ana Paula Couto -  "Amor de Manjericão" foi meu primeiro romance publicado. No entanto, já havia inúmeros contos e crônicas meus da época em que eu achava muito ousado me posicionar como autora, pois, ao meu ver, tratava-se de um hobby. Lancei meu blog “Vida Crônica” no Wordpress e lá pousava minhas tímidas produções artísticas. O blog ainda existe. Acredito que todo esse repertório me ajudou a dar corpo ao meu primeiro romance, até ter coragem para lançá-lo. Amor de Alecrim foi totalmente pautado em "Amor de Manjericão".


Como descobriu o chick-lit e por que esse gênero se encaixa tão bem na sua escrita?
Ana Paula Couto - "Amor de Manjericão" e "Amor de Alecrim" são chick-lits. Quando escrevi o primeiro livro não conhecia esse gênero, mesmo já tendo consumido histórias que se encaixavam nele. As histórias, tipicamente femininas e contemporâneas que conto, trazem com força esse estilo que não escolhi escrever, mas que se enquadrou à minha personalidade e ao meu feeling literário. A partir de 2022 comecei a escrever, a partir de um conto, uma bioficção retratando experiências vividas com a intenção de também relatar vivências das várias mulheres que passaram pela minha vida. Venho de uma família predominantemente feminina. Essa história comum, meu primeiro livro, precisava ser contada para tocar as mulheres. Há uma nítida identificação com as leitoras que se veem retratadas na obra.


Quais são as suas principais influências artísticas e literárias?
Ana Paula Couto - Sou leitora desde a adolescência e apreciadora, desde essa época, de Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar. Mais tarde, durante a minha formação acadêmica, fui fortemente influenciada pelos clássicos como Machado de Assis, George Orwell, Skakespeare e afins. No entanto, dissocio totalmente meu estilo literário de alguma influência específica. Sou um mix das músicas, dos filmes, dos livros e de tudo que absorvi culturalmente até aqui e exponho isso claramente em minhas histórias. Gosto de dizer que minha escrita fugiu da academia. Tenho orgulho disso. Apesar do chick-lit ainda ser um gênero considerado menor para alguns, o que é um ranço do legado da sociedade patriarcal, me realizo totalmente ao escrever algo contemporâneo direcionado ao público feminino.


Como você definiria seu estilo literário?
Ana Paula Couto - Meus dois romances são chick-lits e se utilizam da estrutura desse gênero que é salientar histórias sobre mulheres contadas por mulheres para outras mulheres. Minhas tramas fluem como uma conversa de uma mulher com outras mulheres em que a personagem principal compartilha o seu cotidiano, os seus pensamentos e as suas questões amorosas, profissionais e familiares.


Quando a escrita deixou de ser hobby e se tornou profissão?
Ana Paula Couto - Comecei a escrever poemas na adolescência, por volta dos 15 anos e sempre mantinha comigo um caderno de escritos, mas era algo bem orgânico, isento de alguma intenção. Assim foi por toda a minha vida até a maturidade, em que me mantive escrevendo contos e, principalmente crônicas, sendo esse meu gênero favorito, sem alguma pretensão e sem me ver como escritora. Somente após os 50 anos, durante a pandemia, me posicionei como autora de fato e comecei a me profissionalizar e colocar minhas obras para o público.


Como é sua rotina criativa para escrever?
Ana Paula Couto - Não tenho ritual algum de escrita, tampouco estabeleço metas ou faço planejamentos fechados de capítulos e enredos. Vou produzindo e me organizando durante o processo em que as ideias vão surgindo. Até pouco tempo atrás considerava esse meu processo meio avacalhado, pode se dizer assim, mas quando tive a oportunidade de conversar e conhecer o talentosíssimo autor Francisco Azevedo e o perguntei sobre o seu processo criativo, desmistifiquei o meu próprio. Francisco, como eu, não planeja seus livros e nem começa a escrever com tudo determinado. Ele, segundo me disse, começa a escrever e deixa a história fluir. Foi um alívio ouvir tal relato desse ícone de quem sou muito fã.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

.: Entrevista: Tony Ramos comemora retorno da novela "Rainha da Sucata"


Em entrevista, o ator relembra gravações e parceria com elenco e equipe. Foto: Globo/ Divulgação

Clássico dos anos 1990, "Rainha da Sucata" voltou às telas da TV Globo. No "Vale a Pena Ver de Novo'", logo após a "Sessão da Tarde", a novela é ambientada em São Paulo e retrata o universo dos novos-ricos e da decadente elite paulista, explorando o contraste entre a emergente Maria do Carmo (Regina Duarte) e a socialite falida Laurinha Figueroa (Glória Menezes). A relação entre as personagens também é marcada pela tensão provocada por uma paixão em comum: Edu Figueroa, papel de Tony Ramos. Saudoso e grande admirador da obra, o ator celebra o retorno com entusiasmo. “É sempre bom rever um trabalho e poder mostrar uma produção de tremendo sucesso como essa foi. Desde o princípio, eu sabia que essa obra seria eletrizante”, declara.

Membro dos Albuquerque Figueroa, tradicional família da alta sociedade paulistana, Edu é um típico playboy: fino, elegante e muito cobiçado. Apesar da falência da família, o jovem não perde seu charme característico. Colega de ginásio de Maria do Carmo, Edu costumava desprezá-la nos tempos de escola. No entanto, após a moça enriquecer e se tornar uma empresária bem-sucedida, ele aceita se casar com ela por conveniência. Entretanto, o relacionamento e a chegada de Maria do Carmo à mansão da família são marcados pelas perseguições de Laurinha. Madrasta de Edu, a socialite nutre uma paixão secreta e proibida pelo enteado e faz de tudo para destruir o casamento e arruinar a nova vida da “sucateira”, gerando cenas intensas e, por vezes, cômicas entre os personagens.

“As relações de Edu com Maria do Carmo e com Laurinha eram pontos altos da trama, pois havia uma ambiguidade na ligação com a madrasta e muitas confusões surgiam dessas emoções. Mas não existia, digamos, uma confusão de sentimentos. O que havia, na verdade, era uma disputa intensa, porque Laurinha era uma mulher ambiciosa, que percebia a queda da sua condição social. Ao mesmo tempo, ela via uma mulher jovem, com muito dinheiro, ascendendo naquela sociedade. Esses conflitos e incômodos geravam belíssimas cenas. E construir essa dinâmica com as duas atrizes foi fácil. Ambas são artistas excelentes, de altíssimo rendimento e muito bom humor”, reflete Tony Ramos. "Rainha da Sucata" é uma obra de Silvio de Abreu, escrita pelo autor com colaboração de Alcides Nogueira e José Antonio de Souza. A novela teve direção geral de Jorge Fernando e direção de Jorge Fernando e Jodele Larcher.Na entrevista abaixo, Tony Ramos relembra o trabalho na novela. 


Qual foi a sensação ao saber que "Rainha da Sucata" iria voltar no "Vale a Pena Ver de Novo"? De que forma essa reprise mexe com você?
Tony Ramos -
Para mim, foi uma alegria imensa. Recordo como se fosse hoje, de começar a gravar as cenas na Avenida Paulista. Lembro do meu encontro com Silvio de Abreu e com colegas queridos como Regina (Duarte), Glória (Menezes), o grande Paulo Gracindo, o saudoso diretor Jorginho Fernando e tantos outros. Foi marcante. Ali no início dos anos 90, eu vinha de uma longa temporada teatral em São Paulo, com o espetáculo "Meu Refrão: olê, Olá", do Abelardo Figueiredo. Quando a peça terminou e comecei a me dedicar exclusivamente à "Rainha da Sucata", vivi um momento lindo. Receber essa novidade mexe com meu emocional e com meu imaginário, que guarda momentos tão felizes da novela. É sempre bom rever um trabalho e poder mostrar uma produção de tremendo sucesso como essa foi. Desde o princípio, eu sabia que essa obra do Silvio seria eletrizante - e foi exatamente isso.


As relações de Edu com Maria do Carmo e com Laurinha eram um dos pontos altos da novela. Como foi construir as dinâmicas dos personagens com Regina Duarte e Glória Menezes? Alguma cena específica com as atrizes marcou você?
Tony Ramos - As relações de Edu com Maria do Carmo e com Laurinha eram pontos altos da trama, pois havia uma ambiguidade na ligação com a madrasta e muitas confusões surgiam dessas emoções. Mas não existia, digamos, uma confusão de sentimentos. O que havia, na verdade, era uma disputa intensa, porque Laurinha era uma mulher ambiciosa, que percebia a queda da sua condição social. Ao mesmo tempo, ela via uma mulher jovem, com muito dinheiro, ascendendo naquela sociedade. Esses conflitos e incômodos geravam belíssimas cenas. E construir essa dinâmica com as duas atrizes foi fácil. Ambas são artistas excelentes, de altíssimo rendimento e muito bom humor. Somando isso às conversas com Jorginho, que era um grande diretor, e às trocas com o autor antes das gravações, tínhamos clareza sobre o que eles imaginavam para a construção dos personagens. E várias cenas me marcaram profundamente. Há uma com Regina Duarte, por exemplo, que, se a memória não me falha, Silvio escreveu de forma que ocupou todo um bloco e ainda continuou no início do seguinte. Era uma cena linda entre Maria do Carmo e Edu, com cinco ou seis páginas.


"Rainha da Sucata" foi um de seus primeiros trabalhos com Jorge Fernando, com quem trabalhou em outras telenovelas ao longo dos anos, como "Sol de Verão" (1982), "A Próxima Vítima" (1995), "As Filhas da Mãe" (2002) e "Guerra dos Sexos" (2012). Como era a parceria com o diretor? Tem alguma lembrança marcante do trabalho com o Jorge?
Tony Ramos - Jorginho era um diretor que sabia exatamente o que queria e, além disso, tinha o chamado “momento de inspiração”. Independentemente do que estava escrito ou do que ele havia planejado e estudado, havia situações em que algo em cena despertava nele a vontade de mudar a marca ou a proposta da cena. Essa era uma característica muito positiva dele. Até porque ele também era ator e seguia trabalhando no teatro, fazendo monólogos no palco. Como diretor, era constante e inquieto, sempre em busca de novas soluções. Foi uma parceria maravilhosa. Tenho grande saudade desse incrível profissional - e não digo isso apenas pelo trabalho. Tudo no Jorge era marcante.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

.: Antonio Arruda usa a palavra como lâmina e transforma dor em linguagem


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com
Foto: divulgação

Premiado roteirista, jornalista e mestre em Teoria Literária, Antonio Arruda estreia na literatura com "O Corte que Desafia a Lâmina", publicado pela Editora Cachalote. O livro, que cruza autobiografia e ficção, nasce do confronto entre dor e linguagem. A obra mergulha nas zonas de tensão entre vida e morte, fé e erotismo, desejo e repressão, revelando um autor que transforma o trauma em matéria poética.

Essa relação entre ferida e palavra também atravessa sua trajetória no audiovisual - da série "Cidade Invisível" (Netflix) ao infantil "Era Uma Vez no Quintal" (TV Cultura). Com formação em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, Arruda propõe o que chama de “estética da cicatriz”: um modo de lidar com o real a partir da dor, mas sem vitimização. 

Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, ele fala sobre a voz do pai que ecoa em sua escrita, o perigo e a beleza de escrever a partir da lâmina e o corpo como território de revelação e enfrentamento - quando cada texto é uma tentativa de lidar com o que fere, mas também com o que cura. Compre o livro "O Corte que Desafia a Lâmina", de Antonio Arruda, neste link.


Resenhando.com - O seu livro começa a ser elaborado a partir da ausência da voz do pai. Você acredita que toda obra literária é uma tentativa de devolver a voz a alguém, mesmo que esse alguém seja um fantasma dentro de nós?
Antonio Arruda - Creio que o primeiro movimento seja o de ouvir essa voz. Seja ela interna, pessoal, ou de outros. Uma voz individual ou coletiva, social, política, existencial. Uma voz que tem algo a dizer. Que necessita ora gritar, ora sussurrar o não dito. E o escritor é aquele que se abre à escuta dessa voz. No meu caso, voltar ao trauma vivido quando tinha 12, 13, 14 anos e presenciei o adoecimento e a morte de meu pai, vítima de um câncer que lhe extirpou alguns órgãos e, consequentemente, a fala, me abriu um rasgo na realidade.E eu olhei através dele. Nesse sentido, a partir da não voz do pai, como eu digo no livro, nasceu a voz poética do filho. Então, sim, de certo modo eu dei voz a um fantasma que me assombrou durante muitos anos. Porque quando visitei meu pai no hospital e ele, já mudo, me entregou um pedaço de papel onde estava escrito: “está tudo bem, meu filho”, eu passei muito tempo refletindo sobre esse “está tudo bem”. Hoje, entendo que meu pai não se referia a ele - que obviamente não estava bem -, mas a mim, ao que ele desejava para mim, como se dissesse: “está tudo bem você ser feliz, apesar de; está tudo bem você viver a sua sexualidade, apesar de; está tudo bem você seguir o caminho que quiser em sua vida, apesar de este momento de perda ser muito doloroso”. Eu transformei o trauma em linguagem e ressignifiquei meus fantasmas internos.E, a partir daí, comecei a acessar dores, violências e traumas, como eu disse, existenciais, coletivos. Esse processo, creio, pode ser lido como uma forma de devolver a voz a alguém, de se apropriar do real em sua terrível crueza e, ao tentar perceber e sentir o que esse real pode revelar, valer-se da matéria-prima da escrita, que é a palavra, a linguagem, para verbalizar o que está nas entranhas, nos escombros desse real.


Resenhando.com - Em algum momento, escrever o salvou da própria lâmina, ou apenas ensinou você a manuseá-la melhor?
Antonio Arruda Se eu me salvasse da lâmina, não haveria escrita. Talvez tenha me ensinado, ou, melhor dizendo, me convocado a enfrentar a lâmina da realidade e transformá-la em lâmina-palavra. Ao assumir a palavra como lâmina que corta o corpo-livro e dá vida a ele, me vi mergulhado em um tensionamento constante entre experiência de vida e experiência literária. Não consigo conceber uma literatura que não nasça da experiência, seja ela, como eu mencionei, pessoal ou coletiva, histórica. Um dos meus livros de cabeceira é “O Arco e a Lira”, de Octávio Paz. Há um trecho do qual eu gosto muito: “A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são a nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade”. Escrever, nesse sentido, é testemunhar a realidade - no caso do meu livro, cortante, violenta, dilaceradora - para, assim, conferir-lhe um sentido outro, construído por meio de símbolos, metáforas, imagens poéticas, criando um espaço-tempo que passa a ser o literário, não mais o da vida, ainda que tão vivo e pulsante quanto ela própria.


Resenhando.com - No livro, o corpo é texto e o texto é corpo. Se a sua escrita tivesse um cheiro, uma textura e uma temperatura, como ela seria?
Antonio Arruda Teria o cheiro de um corpo que sangra, mas que também goza; o cheiro do suor que exala no momento do estertor, mas que também irrompe da pele no instante do orgasmo; o cheiro da natureza, muito presente no meu livro, a floresta, o mar, a terra, a brisa, que ora leva o leitor a sentir o terrível e o cruel, ora o epifânico, o etéreo, o impalpável espectral.Teria a textura do ferimento em carne viva e da cicatriz que o constitui como memória nesse corpo atravessado pela experiência da dor e de sua possível transmutação. Teria a temperatura quente, quase escaldante do sol que assola o velho do conto “O Devir”, por exemplo, e também o frio do cadáver do adolescente do conto “A Queda da Estrela”; ou, ainda, a temperatura morna e úmida dos musgos da árvore sobre os quais o personagem do conto “Nu” se senta e vive sua experiência de desejo e temor. Teria esses cheiros, essas texturas e essas temperaturas pois minha escrita nasce da ambivalência, das contradições, do tensionamento constante e inevitável entre pulsão de vida e de morte.


Resenhando.com - Você vem de uma trajetória sólida no audiovisual, na televisão, na Netflix. O que a literatura o permitiu dizer que a câmera jamais permitiria captar?
Antonio Arruda Vou responder seguindo por outro caminho: o que a literatura me permitiu fazer, que é, fundamentalmente, o trabalho, a experimentação com a linguagem. Por mais que na escrita de um roteiro a descrição dos cenários, o tom das cenas, a criação das falas dos personagens passem, obviamente, pela escolha das palavras, com a literatura é diferente. A literatura permite uma elaboração mais complexa. A busca pela palavra que melhor diz, que melhor revela o sentimento do personagem, a atmosfera desejada. A literatura possibilita - não que o audiovisual também não o faça, mas em outra medida, de outra maneira - a sugestão, o mistério que habita as entrelinhas do texto, e que só será revelado - e ressignificado - pelo leitor. Cabe a ele, e apenas a ele, no fim das contas, experienciar o que o livro expressa. E talvez seja essa a grande beleza do fazer literário.


Resenhando.com - A obra é atravessada por erotismo, dor, fé e homoafetividade, temas muitas vezes tratados como “demais” por uma sociedade ainda careta. Quando você escreve, sente que está exorcizando o medo alheio ou desnudando o seu?
Antonio Arruda As duas coisas, e não somente elas, e sem que haja uma distinção pragmática entre o que é meu e o que é alheio a mim. Interessa-me mais o borrão, a mancha que atravessa escritor e leitor. O quanto meu livro pode também desnudá-lo de seus medos? O quanto eu posso exorcizar os meus? O quanto, ainda, para além de um possível exorcismo, se faz necessária a convivência com os demônios, olhá-los de frente, tê-los ao lado? No livro, erotismo, dor, fé e homoafetividade estão emaranhados, são temas que se entrecruzam. Então, acredito, ou pelo menos desejo, que o livro gere no leitor mais encruzilhadas do que estradas retas.


Resenhando.com - A estética da cicatriz que você propõe tem algo de ritual. O que há de oferenda e o que há de profanação no ato de escrever?
Antonio Arruda Você tocou em um ponto bem importante, foi bem agudo em sua colocação. Há, de fato, algo de ritual. Ofertar-se à escrita é o ofício do escritor. Entregar-se ao texto. Como diz a poeta Isadora Krieger, “escrever é desaparecer no texto”. Nesse sentido, há muito de oferenda no processo de escrita. É uma doação intensa, um sacrifício, há algo de litúrgico, mítico, místico. Algo se desvela e se descortina quando escrevo, algo muitas vezes maior do que eu, que existe para além de mim. Ao mesmo tempo, meu processo de escrita e meu texto neste livro carregam uma corporeidade densa. “O Corte que Desafia a Lâmina” trabalha o tempo todo com a dualidade entre sagrado e profano. Profanar a carne para ofertá-la em sacrifício ao espírito. Acessar o espírito para que ele unja a carne e seus cortes, suas feridas. É esse o paradoxo que me interessa. E a minha proposta com a estética da cicatriz é justamente essa: criar um livro-corpo que, ao ser atravessado pela lâmina-palavra, inevitavelmente faça da escrita uma forma de ritualizar as experiências - de vida e literária.


Resenhando.com - No livro, há um homem que carrega uma carcaça de tartaruga até o mar e afunda com ela. Qual seria a sua carcaça hoje, e o que ainda o impede de soltá-la?
Antonio Arruda Vou pensar sobre essa pergunta e levá-la para a minha próxima sessão de análise para elaborar uma possível resposta (risos). Talvez a gente passe a vida toda acessando carcaças que acreditamos já ter soltado. Mergulhar nas dores e nos traumas me parece ser um exercício constante. Não sei especificar qual a carcaça de hoje com a qual ainda não me afoguei no mar. Mas, fazendo uma ligação com a pergunta anterior, talvez seja esse o ritual que mais me constitui como sujeito inquieto e complexo: tatear o inconsceano (para utilizar um dos neologismos do livro) e, assim, quem sabe, acessar as profundezas de ser.


Resenhando.com - Você é roteirista, professor, pesquisador, sacerdote e agora escritor publicado. Qual dessas vozes mais o contradiz, e qual delas você tenta silenciar quando escreve?
Antonio Arruda Talvez a mais contraditória delas seja a do escritor. Justamente por abarcar as demais? Não sei. Respondo em forma de pergunta, pois a assertividade, aqui, mataria, justamente, a contradição. Nunca tinha parado para pensar sobre isso. Mas sinto que a voz do professor, por ser carregada de um inevitável didatismo, seja aquela que, ainda que inconscientemente, eu tente silenciar. Minha escrita é altamente simbólica, imagética, alegórica. Acredito que não haja nela espaço para didatismos.


Resenhando.com - A dor é matéria-prima da arte, mas também um mercado. Você teme que o leitor leia suas feridas como espetáculo, e não como identificação?
Antonio Arruda Não. A dor como espetáculo está na mídia, nas notícias que transformam corpos violentados, agredidos, estraçalhados em números, em estatística. Está nas redes sociais. Está, infelizmente e cada vez mais, nos algoritmos. Sua pergunta me fez pensar que talvez o leitor não leia minhas feridas (que já nem são mais minhas, na verdade, uma vez que, depois de terem sido matéria-prima para a escrita, viraram ficção; são, portanto, as feridas dos narradores, dos personagens, do livro-corpo) como espetáculo, mas, se não como identificação, talvez como estranhamento, repulsa? Acredito que a literatura, ao se valer de elementos que atravessam, transgridem, subvertem o real, leva os leitores a processos complexos de investigação sobre si. Pelo menos é o que desejo que eles sintam ao acessar os cortes e as cicatrizes que eu transformei em experimentação estética.


Resenhando.com - Se o corte é inevitável, o que você ainda não teve coragem de transformar em lâmina?
Antonio Arruda Não sei… Às vezes eu sinto um pouco de medo da falta de medo que eu sinto (risos). Talvez quando descobrir qual a carcaça de hoje que ainda não carreguei para o mar eu consiga responder a essa pergunta. Como algumas pessoas que leram meu livro enquanto eu o escrevia e antes de enviá-lo à editora me disseram: “seu livro é fruto de muita coragem”. E eu senti mesmo isso ao escrevê-lo. Foi muito intenso e profundo mergulhar nas dores, nos traumas, nos cortes. E foi libertador. E estou disposto a continuar encarando as lâminas, a fazer delas o elemento mefistofélico que me aguilhoa a existência.



segunda-feira, 27 de outubro de 2025

.: Do glamour à sofrência: atriz Alice Wegmann transita entre novela e série


Depois de Solange em "Vale Tudo", Alice Wegmann volta à TV em grande estilo como Raíssa, estrela da terceira temporada de "Rensga Hits!". Foto: Alexandre Maciel

Quem acompanhou a reta final do remake de "Vale Tudo" ainda guarda na memória a energia solar de Solange, vivida por Alice Wegmann. Mal se despediu da personagem, e a atriz já volta ao horário nobre com outro papel vibrante: Raíssa Medeiros, protagonista da terceira temporada de "Rensga Hits!", série ambientada no universo sertanejo, que pode ser assistida na TV Globo, às quintas-feiras, logo após a novela "Três Graças".

Entre microfones, rivalidades e paixões de arrebatar, Raíssa vive o auge da carreira - e também suas maiores dores. Em entrevista, a atriz fala sobre o desafio de transitar entre duas personagens intensas, a experiência de gravar uma cena marcante logo após um episódio real de tensão e o que aprendeu com cada papel.


Como é para você viver esse momento intenso e contínuo na televisão, com duas personagens tão diferentes - Solange, de "Vale Tudo", e Raíssa, de "Rensga Hits!" - em sequência? Qual é a sua expectativa em relação à recepção do público?
Alice Wegmann - 
É maravilhoso. A Solange e a Raíssa têm trajetórias distintas, mas possuem uma vibração semelhante. Ambas são solares, determinadas, donas de suas escolhas - é bonito de ver. Acho que a Raíssa super faria uma campanha da Tomorrow, e ela e Solange se dariam muito bem! (risos) Tanto a primeira quanto a segunda temporadas de "Rensga" foram um sucesso, e, no Globoplay, a terceira já mostrou a que veio. Tenho certeza de que o público da TV vai adorar.


O que você mais aprecia em cada formato? Existe algo que só uma novela proporciona como atriz, e algo que apenas uma série permite explorar?
Alice Wegmann - 
A novela tem um alcance imenso, uma projeção muito diferente. Ela chega a todo o Brasil, e isso é o que mais me encanta. Nas séries, gosto da característica de ser um formato fechado, que nos permite pensar em começo, meio e fim, e desenhar as curvas do personagem com base no que nos é dado desde o início. As séries também oferecem uma densidade artística mais profunda porque, nesse tipo de trabalho, conseguimos ficar mais atentos aos detalhes. As novelas têm volume, demandam agilidade, rapidez - então, é preciso entrar num ritmo frenético. E vale dizer que só o Brasil consegue fazer isso como fazemos. Nesse aspecto, somos mestres.


Na nova temporada de "Rensga", Raíssa mergulha no trabalho e experimenta o sabor da fama, mas também enfrenta uma nova rivalidade e dilemas amorosos. Em meio a esse turbilhão emocional, qual foi a cena mais desafiadora para você gravar?
Alice Wegmann - 
Acho que a última cena da terceira temporada. Não pela cena em si, mas pelo que aconteceu antes dela. Eu estava a caminho da gravação, com o motorista que me buscava em casa, quando vimos um homem atropelado e paramos para socorrê-lo. Chamamos a ambulância, liguei para a mãe dele para avisar, e, depois que ele foi levado ao hospital, voltamos à estrada. Cheguei ao set ainda em choque, e para gravar uma cena de comédia. Nossa profissão é muito maluca: mais difícil do que fazer uma cena triste quando estamos felizes é fazer uma cena feliz quando estamos tristes. Mas é aí que mora a beleza do nosso ofício – dar dignidade a qualquer cena, mesmo que nossa emoção não esteja correspondendo.


E qual momento da Raíssa, nesta terceira temporada, você guarda com mais carinho?
Alice Wegmann - 
Gosto muito da cena do velório, porque “Romaria” é uma música que eu sempre quis ver na série. Pedi muito à Renata Corrêa, nossa autora maravilhosa, e ela inseriu no melhor contexto possível: as duas irmãs puxando o coro e cantando. Ficou tudo tão bonito. Foi emocionante de filmar.


Há alguma característica da Solange que você acredita que levará consigo após o fim da novela? E da Raíssa, existe alguma marca da sertaneja que você incorpora na sua vida?
Alice Wegmann - 
A Solange é muito autêntica e não tem medo de se arriscar - seja na forma de se vestir, de trabalhar ou de se relacionar. Gosto disso e levo para minha vida também. Quanto à Raíssa, admiro a maneira como ela diz “não” e se impõe em certos momentos. Acho que ela me ensinou a ser um pouco mais assim. Eu costumava ser muito boazinha e ingênua. Hoje me sinto mais atenta.

domingo, 26 de outubro de 2025

.: Wanessa Morgado transforma o caos da maternidade em catarse cômica


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.comFoto: Kim Leekyung


Com texto inédito de Andrea Batitucci, roteirista de "Minha Mãe É Uma Peça" e "Vai que Cola", e direção de Rafael Primot, o espetáculo “Manhê!” continua a emocionar e provocar gargalhadas em uma temporada que cresce a cada apresentação. Estrelado por Wanessa Morgado, o solo mergulha nas alegrias, culpas e contradições do universo materno - esse campo de batalha onde o amor e o caos coexistem, quase sempre, na mesma respiração.

Depois do sucesso no Teatro Uol, “Manhê!” segue em novas apresentações: 1º de novembro, às 14h30 e 17h00, no Teatro Arena B3, em São Paulo;  14 de novembro, às 20h30, no Teatro Municipal de Osasco; 22 de novembro, às 21h00, no Teatro Lauro Gomes, em São Bernardo do Campo; 29 e 30 de novembro, no Teatro Colinas, em São José dos Campos;  e, em janeiro, às quintas-feiras, às 20h, no Teatro Multiplan Morumbi, em São Paulo.

Com humor afiado e uma sinceridade desconcertante, Wanessa dá corpo e voz às dores e delícias de uma mulher que tenta ser mãe sem deixar de ser gente. O resultado é uma comédia realista e libertadora - feita para rir, pensar e talvez chorar um pouco também. Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, a atriz fala sobre maternidade, humor e o poder de transformar o desespero em arte.


Resenhando.com - “Manhê!” parte de um lugar comum - a maternidade - mas a trata de forma nada convencional. Qual foi o momento em que você percebeu que esse tema, tão explorado, ainda tinha um buraco cômico e dolorido a ser preenchido no palco?
Wanessa Morgado - Acho que resolvi falar primeiro do que eu sentia e via as mulheres perto de mim sentindo, sabe? A dor e a delícia de ser mãe, que em alguns momentos pra mim se equilibram nessa balança da maternidade...escrevi um conto, quase que como eu desabafo ou terapia, e dele veio a peça escrita pela maravilhosa Andrea Batitucci, que também é mãe, separada, de duas meninas.


Resenhando.com - A peça fala sobre “maternagem”, essa palavra que parece bonita, mas carrega uma carga brutal de exclusividade e cobrança. Se pudesse cunhar uma nova palavra para redefinir o papel da mãe, que termo criaria?
Wanessa Morgado Nossa, ótima pergunta...a "maternagem" na real deveria existir mais... a função de dar carinho, atenção, cuidados, não precisa e não é só da mãe. Não sei criar um novo termo eu acho, usaria os termos que já existem mas de verdade: sororidade, parceria, responsabilidade mútua etc.


Resenhando.com - No Brasil, ainda é comum romantizar a maternidade como um estado de graça. Em “Manhê!”, você desmonta esse mito com humor. Você acredita que a comédia pode ser mais eficaz do que o drama para revelar as dores reais da maternidade?
Wanessa Morgado Eu sempre achei que a comédia é um estilo maior. Não desvalorizando os outros estilos, pelo amor de Deus, mas só destacando mesmo o humor...com humor você consegue falar de coisas que não falaria sem ele, ser mais direta e quase "grossa" quando necessário sem que achem "pesado" como no drama por exemplo, mas ele toca, conscientiza, faz uma catarse mesmo... como bem diz a letra da música "rir de tudo é desespero". A gente ri de alegria, mas ri de desespero por se aproximar daquilo e, ao mesmo tempo, o humor te dá paz, em saber que você não está sozinha neste mundo, seja a situação que for, alguém já viveu isso ou algo muito parecido.

Resenhando.com - Como atriz de stand-up, mestre de cerimônias e locutora, você já se multiplicou em muitos palcos e vozes. O que a Wanessa do monólogo “Manhê!” tem que nenhuma outra versão sua ousou mostrar? 
Wanessa Morgado Com certeza essa Wanessa mãe, falando ali com propriedade e conhecimento de causa. Mesmo no meu stand up eu já falava de maternidade mas não de forma tão profunda, emocionante e vivenciando agora a história de vida dessa mulher... que não sou eu, mas que tem muito de mim...

Resenhando.com - A maternidade, como você retrata, é um território de caos e amor. Mas se fosse possível resumir em apenas um cheiro essa experiência, qual seria?
Wanessa Morgado Ah, seria um cheiro doce e suave, porque apesar de todo o perrengue que é, ser mãe pra mim, do meu filho... "péra", porque não sou a mulher que vai levantar a bandeira de que eu gostaria de ser mãe de vários... A função mãe me dá um pouco de cansaço (risos), mas voltando...ser mãe do Gael tem um cheiro de vida longa, de amor infinito e de muita paz, mesmo no caos.

Resenhando.com - O texto de Andréa Batitucci nasce de uma esquete sua. Existe alguma cena que você sente como uma cicatriz pessoal, algo tão seu que, mesmo encenado, ainda dói ao repetir?
Wanessa Morgado Nasce de um conto, não exatamente uma esquete, um conto um pouco mais longo e mais dramático, acredita? Não tem uma cena que seja uma cicatriz, mas tem uma cena que ainda não vivi e que dói muito em mim e no público todas as vezes, que é quando esse filho vai embora de casa... O famoso "ninho vazio"... Aff, pra mim é sempre difícil essa cena e nessa hora tenho vontade de fazer mais uns cinco filhos pra ir intercalando, um sai e outros ficam... dói.

Resenhando.com - “Minha Mãe é uma Peça”, “Vai que Cola”, “Além da Ilha”... Batitucci tem um histórico de humor popular. O que o público de teatro ganha quando um tema tão íntimo é tratado com essa mesma pegada, mas sem o filtro da TV?
Wanessa Morgado Na peça ela usa o ritmo da TV mas não o filtro, o que faz da peça esse estrondo que é... Quando as pessoas saem do teatro é sempre maravilhoso e incrível ouvir os depoimentos, de quem se viu como mãe ali, de quem se viu como filho daquela mãe que envelhece, adoece e quer mesmo assim viver muito ainda, de quem se enxerga na mulher, no homem nessa relação e em outros papéis que a peça traz.


Resenhando.com - Quando se fala de maternidade no palco, sempre se pensa no olhar feminino. Se um homem fosse fazer o mesmo espetáculo, que cena você acredita que ele jamais teria coragem de encenar?
Wanessa Morgado (Risos) Ixi, várias, eu teria que repensar a peça toda aqui pra pensar especificamente em uma... Mas tem uma do sexo, que a mulher está com a cabeça na lua e o cara ainda vem com uma frase de matar, que acho que os homens não teriam coragem de assumir.

Resenhando.com - Você já foi mestre de cerimônias para grandes empresas, uma função que exige controle e formalidade. Agora, em “Manhê!”, você se coloca no ridículo, no desespero e no colapso. O que é mais difícil: domar um público corporativo ou assumir o caos da maternidade no palco?
Wanessa Morgado Ah, o palco e o teatro me desafiam muito e sempre. Ser MC é sempre um desafio, cada empresa quer algo específico, tem ali em seu evento todas as expectativas, muitas vezes do ano, do semestre, é muita responsabilidade. Na peça, existe um texto a ser seguido, a luz e trilha dependem de mim e estou vestida de personagem, é diferente e desafiador em outro lugar.


Resenhando.com - Se pudesse escrever uma carta para a Wanessa de 2002, recém-formada na Escola de Teatro Macunaíma, o que ela diria ao ler que, em 2025, você estaria no palco falando de fraldas, amamentação e divórcios - e rindo disso tudo?
Wanessa Morgado O que ela diria? Eita... Acho que daria parabéns pra mulher que me tornei, apesar de todos os perrengues que já vivi, na minha criação mais conservadora, em meus alguns relacionamentos esquisitos, em meus medos e questões, vivi muito bem esses meus anos e cheguei vivíssima até aqui, onde pretendo seguir ainda mais viva!!

sábado, 25 de outubro de 2025

.: Entrevista: Tais Araújo celebra a estreia de "Reencarne"


Recém-saída do remake de "Vale Tudo", Tais Araújo volta para protagonizar série de terror. Foto: Globo/Estevam Avellar


Um novo capítulo no gênero do terror nacional será desvendado com a chegada de "Reencarne", série de terror Original Globoplay. Em nove episódios, sendo o primeiro aberto para não assinantes, a produção transporta o público para um Goiás pouco visto, um cenário de milharais infinitos e estradas de terra onde o terror mais visceral e genuinamente brasileiro ganha vida. A trama mescla suspense e drama existencial com cenas de horror gráfico, elementos clássicos como fenômenos paranormais e forças ocultas, e um inesperado toque de romance e desejo.

Na trama, o médico cirurgião Feliciano (Enrique Diaz) desafia todos os limites para salvar sua esposa doente, Cássia (Simone Spoladore). Enquanto ele se envolve em planos cada vez mais macabros, uma série de assassinatos volta a assombrar o interior de Goiás. Decidida a mergulhar na investigação desses crimes - marcados por ferimentos misteriosos - a cética delegada Bárbara Lopes (Tais Araújo) começa a viver experiências sobrenaturais que desafiam sua visão racional do mundo.  

Essa realidade ecoa um passado de vinte anos, quando os policiais Caio (Pedro Caetano) e Túlio (Welket Bungué) investigavam casos similares, culminando na morte de Caio, e na prisão de Túlio, acusado pela fatalidade. Após cumprir sua pena, Túlio é libertado e, em meio ao desespero e ao fim de seu relacionamento com Isadora (Isabél Zuaa), sua vida é virada de cabeça para baixo com a chegada de Sandra (Julia Dalavia), que afirma ser a reencarnação de Caio. A aparição da jovem de apenas 20 anos promete reabrir as investigações do passado e conectar os personagens aos planos macabros de Feliciano. 

"Reencarne" é produzida pelos Estúdios Globo para exibição no Globoplay e criada por Amanda Jordão, Elisio Lopes Jr, Flávia Lacerda, Juan Jullian e Igor Verde. Escrita por Amanda Jordão, Elisio Lopes Jr, Juan Jullian e Igor Verde. Tem direção artística de Bruno Safadi, direção de Noa Bressane e Igor Verde. A produção é de Isabela Bellenzani, produção executiva de Lucas Zardo e direção de gênero dramaturgia de José Luiz Villamarim.

A Delegada Lopes é uma personagem bem diferente do que você está habituada a interpretar. O que a atraiu especificamente para uma série de terror como "Reencarne”?
Tais Araújo -
O que me atraiu a essa personagem foi o fato de nunca ter interpretado nada parecido com ela e nunca ter trabalhado nesse gênero. É realmente diferente de tudo o que já fiz. Diria que é uma personagem complexa, desafiadora e difícil pra caramba de fazer. E depois de todos esses anos de carreira, fazer algo tão diferente é muito estimulante. Foi incrível, muito bom e muito divertido também. 
 

Como você explica a sua personagem?
Tais Araújo - 
A Lopes é uma profissional absolutamente cética, uma delegada, que está ali para desvendar esses assassinatos em série que acontecem. E quando ela menos percebe, a sua vida é atravessada pelo sobrenatural, por algo que ela não acredita. 

 
Como você se preparou para gravar a Lopes? Você chegou a buscar alguma referência? 
Tais Araújo - Minha preparação foi com a Estrela Strauss. Para criar a delegada Bárbara Lopes foi importante buscar uma dose de humanidade dentro de uma personagem tão cética. E sobre as referências, sim, elas foram fundamentais para eu entender o gênero, até porque eu não era parte desse público que consome terror. Passei a ver umas séries que não eram só de terror, mas também que tinham uma suspensão da realidade. E muita disposição, claro (risos). 


Quais foram os grandes desafios desse trabalho?
Tais Araújo - 
As cenas de possessão me assustaram, porque eu precisei usar uma lente branca que não me permitia enxergar nada. A preparação e a expectativa eram enormes também. Mas eu posso dizer que o processo todo foi tranquilo, porque estávamos cercados de uma equipe que nos dava muita segurança, até mesmo para “brincar” com o gênero. O Bruno Safadi, nosso diretor artístico, é tão experiente e tão calmo que abrandou a nossa ansiedade.  Tecnicamente falando, as cenas de terror são difíceis. Fotografia, a trilha sonora, a caracterização, o áudio... Tudo é fundamental para contar a história e não somente a cena em si.


Qual mensagem ou reflexão você espera que o público leve para casa após assistir a "Reencarne”?
Tais Araújo - "Reencarne" fala sobre: é possível ter a vida eterna? É possível manter as pessoas que a gente ama ao nosso lado para sempre? E se a gente pudesse fazer isso, faríamos? De que forma? Acho que "Reencarne" deixa um monte de perguntas.


Quais são as suas expectativas para a estreia?
Tais Araújo - 
Eu estou muito ansiosa. Temos uma história complexa, instigante, muito interessante. Estamos contando um terror (muito) brasileiro. Estou louca para ver como o público vai receber essa história - essa é a minha maior curiosidade. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

.: Entrevista: Malu Garcia transforma o confinamento em viagem interior


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com

Malu Garcia viajou para enfrentar a realidade. Em "Indomável", livro de estreia escrito por ela, a autora transforma quatro meses de confinamento em Cuba durante a pandemia em um exercício radical de liberdade e lucidez. O resultado é um relato que mistura crônica, memória e reflexão sobre o olhar estrangeiro, que ora vigia, ora liberta. 

Jornalista, radialista e apresentadora, Malu carrega na palavra o peso e o alívio das metamorfoses. Nas páginas do livro, Cuba não é o cartão-postal congelado no imaginário turístico, mas um território pulsante de contradições, onde a escassez revela a criatividade e o afeto se impõe na realidade do país. Escrever sobre a ilha é também escrever sobre o Brasil  e sobre a mulher que se reinventou ao ultrapassar as próprias fronteiras. 

Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, Malu fala da solidão feminina como potência, dos riscos ideológicos de narrar um país sob permanente observação, do poder político da ternura e do espelho incômodo que a ilha lhe devolveu. Entre a vigilância e a rebeldia, a autora descobre que a literatura é o único passaporte que realmente atravessa. Compre o livro "Indomável", de Malu Garcia, neste link.


Resenhando.com -⁠ Você transformou a experiência de “turista controlada” em literatura. No fundo, a sua escrita nasce da vigilância ou da rebeldia?

Malu Garcia - Penso que minha escrita nasceu do atrito entre as duas coisas. Eu não esperava me encontrar naquela situação de “controlada”, e isso me causou pânico. Sentia um medo absurdo e nem sabia muito bem o por quê. Num primeiro momento me ocorreu que talvez eu não pudesse voltar outra vez a Cuba. E também no contexto da pandemia, por óbvio, perder as minhas  pessoas no Brasil era um medo real e diário. Foi tenso. Os motivos do “controlada” estão no livro, e posso dizer que desobedecer certas regras, primeiro, me manteve viva; depois me impulsionou na escrita, sim. O que vivi lá nunca coube em roteiros prontos. Então, na hora de escrever as minhas vivências foi como fazer um balanço de uma rebeldia que não sabia que tinha vivido. A vigilância me ensinou a prestar atenção, a observar minúcias. Já a rebeldia me deu coragem para escrever a partir das brechas, para atravessar o que era imposto num tempo raro, aquele da pandemia. A experiência de “controlada” acabou se revelando uma proteção. Hoje penso que minha escrita é filha desse embate: nasce da vigilância, porque dela vem a consciência aguda do olhar sobre mim quase aos 50, mas floresce na rebeldia, porque só desobedecendo ao viajar num momento sanitariamente delicado pude encontrar a Cuba real e, mais ainda, a mim mesma.

Resenhando.com -⁠ ⁠Em suas crônicas, Cuba não aparece como cartão-postal. O que descobriu de si mesma ao enxergar a ilha como espelho e não apenas cenário?
Malu Garcia - Já na minha primeira viagem, em 2005, deixei de olhar Cuba como um cartão-postal e passei a encará-la como espelho. As conexões que fiz lá me levaram de volta à minha infância e foi aí que descobri aspectos de mim mesma que no cotidiano corrido talvez eu não tivesse chance. A ilha me confrontou com contradições: a beleza e a dureza, a alegria e a falta, a liberdade que pulsa apesar das amarras. Percebi que eu também sou feita dessas tensões - do desejo de ir além das limitações e da força para encontrar sentido mesmo em contextos difíceis. Ao escrever, vi que Cuba não era apenas cenário para minhas viagens, mas um reflexo das minhas próprias inquietações e da necessidade de me reinventar. No fundo, ao ficar presa na ilha, enxerguei também minhas fronteiras internas - e a coragem de atravessá-las. Aí entram as pessoas e os encontros que vão mudando minha vida e inauguram minha escrita.

Resenhando.com -⁠ ⁠Você diz que “viajar sozinha é a maior expressão de liberdade que uma mulher pode experimentar”. Mas, na prática, essa solidão já lhe foi cruel em algum momento?
Malu Garcia - Sim, já foi cruel - e é justamente por isso que também é tão libertadora. Toda liberdade pressupõe uma quota de sacrifício primeiro. Depois, o prazer! Viajar sozinha deixa de ser apenas sobre paisagens e descobertas externas, é também sobre encarar a si mesma sem distrações. É estar como inteira, sem a distração que outra presença proporciona e limita. Tem o fator de você não ter que convencer ninguém que está com fome de almoço às onze horas da manhã ou que quer ficar no museu da hora que abre até fechar, por exemplo. Viajando sozinha me obrigou a ser minha própria companhia, a sustentar meus medos e minhas escolhas. No começo eu pensava “o que as pessoas estavam pensando ao me virem sozinha”; sentiam pena? Depois tudo se transformou em potência: percebi que estar só significava estar fazendo aquilo que escolhi, totalmente inteira.

Resenhando.com -⁠ ⁠Onze viagens para Cuba em tempos de desencanto global parecem um mergulho obsessivo. O que a ilha tem que o Brasil insiste em lhe negar?
Malu Garcia - Eu viajo a Cuba desde de 2005. São vinte anos acompanhando as mudanças que ocorrem internamente muito mais como reflexo das agressões externas que o país sofre, do que qualquer outra coisa. Para entender isso é conveniente estudar a História. Mas Cuba me oferece uma intensidade que muitas vezes sinto faltar no Brasil. Lá, a vida pulsa sem pressa. Penso que como se trata de um lugar relativamente pequeno, tem-se muita cultura sem ter que atravessar grandes distâncias. Havana é como uma espécie de showroom de cultura. E tem o lado da escassez que revela a criatividade, e cada encontro é vivido como se fosse único. É um lugar que não me permite ser espectadora - me chama para dentro da experiência. O Brasil, com toda sua grandeza e riqueza cultural, muitas vezes me nega esse mergulho profundo porque se perde no excesso, no barulho, na pressa. Em Cuba, o tempo desacelera e me obriga a olhar nos olhos, a ouvir histórias inteiras, a participar de uma vida menos mediada por filtros. Talvez por isso eu tenha voltado tantas vezes: porque a ilha me oferece uma radicalidade de experiência que me revela não apenas um outro país, mas uma outra versão de mim mesma - aquela que o Brasil, na correria e na abundância, e no medo da violência, insiste em calar.

Resenhando.com -⁠ ⁠Há algo de político em cada escolha estética do seu livro. Escrever sobre Cuba, hoje, não é também assumir um risco ideológico?
Malu Garcia - Escrever sobre Cuba é, sim, assumir um risco - porque qualquer narrativa sobre a ilha costuma ser lida através de lentes ideológicas já polarizadas. Mas eu não poderia escrever de outro modo. Minha relação com Cuba não é panfletária, é existencial. Foi lá que fiz um balanço da minha vida chegando aos 50. Vivemos tempos de excesso de informação e sobre tudo temos que ter uma posição, uma opinião, um sentimento. Mas conhecimento mesmo não há. Sobre Cuba isso ainda vem carregado de desinformação. Se eu tivesse escrito minhas vivências passadas em qualquer outra ilha do mundo, Maldivas por exemplo, não suscitaria esse juízo do bem e do mal. Cuba tem uma História e muitas narrativas que interessam à manutenção de agressões externas. O povo está cansado mas não tem outra alternativa a não ser resistir. Daí o meu título Indomável. As minhas histórias lá não são nada de panfletárias a favor de uma ideologia. São as minhas vivências de lá, espelhadas numa vida nas daqui. As pessoas conhecem Cuba pelas notícias, a favor e contra, mas o meu livro é mais uma abordagem amorosa acerca da realidade cotidiana, das coisas simples e grandes que também dão a singularidade de um país. A bandeira impressa na parte interna da capa do livro não é um manifesto, é um símbolo de respeito à intensidade do país que tanto me transformou. Por outro lado tenho comigo uma vida inteira de expectativa por justiça social no meu próprio país. Talvez por isso Cuba me convoque tanto: porque, ao mesmo tempo em que revela suas contradições e falhas, expõe também o desejo coletivo de dignidade, de partilha, de sobrevivência com criatividade. O risco ideológico existe, mas para mim escrever é escolher não se esconder. E se minha literatura carrega política, é porque acredito que toda experiência humana - sobretudo a viagem - está atravessada por questões de liberdade, de desigualdade e de esperança. Em Cuba, nos quesitos segurança, solidariedade, educação e saúde, encontrei o espelho que me ajudou a refletir sobre o Brasil que ainda sonho viver.

Resenhando.com -⁠ ⁠Você conheceu a ex-mulher de Glauber Rocha e a mãe de Leonardo Padura. Mas qual foi o encontro mais íntimo, aquele que não coube no livro porque ainda é ferida aberta ou segredo guardado?
Malu Garcia - Tive muitos encontros profundos que não estão notoriamente no livro. Essa pergunta, nesse contexto mundial que vivemos hoje, me leva a refletir sobre um em especial: certa manhã fui apresentada a um senhor de um metro e meio, e 85 anos. Ele tinha acabado de escrever um livro e me presenteou com um exemplar, autografado para mim no parapeito da sua janela, de onde víamos o Malecon. Conversamos um pouco e nos despedimos já que eu seguiria direto para o aeroporto, de volta ao Brasil. No voo li o livro. Era a história vivida por ele enquanto chefe diplomático da embaixada de Cuba no Panamá, em 1989. Pude entender que aquela história era menos sobre geopolítica e mais sobre as coisas que acontecem na vida das pessoas e são imparáveis. Particularmente, guardo um grande medo desses grandes acontecimentos que viram vidas de cabeça para  baixo. O livro do Lázaro Mora conta a invasão do Panamá. Ele passou por tudo aquilo como personagem. O livro agora está editado no Brasil e chama “Não Temos o Direito de Esquecer”. E ainda hoje olhando o noticiário penso que a qualquer momento podemos ter a repetição disso, aqui, ou em países vizinhos. Mas essa sua pergunta me leva a refletir que gosto da minha vida sem grandes sobressaltos, grandes acontecimentos. Gosto da minha vida como maré, vezes alta, vezes baixa, mas nunca um furacão que descontrola tudo. Digo sempre às minhas amigas quando estamos em “café terapia” que tenho medo das cambalhotas que a vida dá: uma doença grave, uma perda, um revés. Aqueles acontecimentos que tiram a vida do prumo. Quando fiquei presa em Cuba por quatro meses eu só pensava nisso. Mas com a escrita me dei conta que todos os acontecimentos ruins da minha vida só me jogaram para o alto. Aquele encontro com Lázaro continua comigo, inteiro, e me ensinou que literatura é escuta antes de ser voz.

Resenhando.com -⁠ ⁠Suas crônicas são atravessadas por afetos, memórias e descobertas. Em algum momento, teve medo de que a literatura romantizasse demais um país onde a sobrevivência diária é, muitas vezes, luta bruta?
Malu Garcia - Sim, esse medo sempre me acompanhou, principalmente, pelo fato de que sobre Cuba todo mundo pensa que sabe tudo… e tenho consciência que meu livro por óbvio não esgota assunto algum, ainda mais um tema que sofre polarização, propaganda e o instinto já conduz à política. Tinha medo dos julgamentos, dos preconceitos que a simples menção ao nome da ilha já causam. Mas é necessário frisar que o meu livro são as minhas vivências. E, por óbvio, escrevo carregada das minhas próprias bagagens, de criação, sonhos e conquistas. A literatura tem uma força de encantamento, e Cuba, tem a sua crueza, que é vista por nós, brasileiros, com lupa, sem que enxerguemos ao nosso redor, nossas próprias crueldades, como pessoas morando nas ruas que nem nos impactam ou apiedam mais. Cuba hoje está diferente da Cuba que conheci nos últimos vinte anos. Mas meu livro é um testemunho desse tempo, visto por uma sempre estrangeira, está claro. A Ilha toda, com sua música, luz e intensidade humana, convida facilmente à idealização, contra ou a favor. Mas eu vivi o melhor que eu poderia ter vivido nesse tempo. Sem esquecer que por trás do riso generoso existia a dureza da fila, da falta, do improviso diário para garantir o básico. O risco de romantizar está em transformar a falta em espetáculo. Eu não queria cair nessa armadilha. Por isso escrevi tentando equilibrar afeto e lucidez: reconhecendo a beleza do que vivi, mas sem negar a luta. Minha intenção nunca foi pintar Cuba como um paraíso, mas como uma ilha de contradições que também revela minhas próprias contradições como uma brasileira do meu tempo e do meu lugar. Sim, porque ao meu redor também há pobreza ainda maior do que a que existe em Cuba, acrescida de uma violência e medo,  únicos também no mundo. A literatura, nesse sentido, não é romantização, mas tentativa de testemunho. E se existe idealização no que escrevo, ela não está em suavizar a realidade, mas em dar voz à dignidade com que o povo cubano atravessa suas batalhas cotidianas, reflexo de agressões externas históricas.

Resenhando.com -⁠ Ao narrar uma brasileira em Cuba, você inevitavelmente fala da identidade brasileira. O que descobriu sobre o Brasil estando longe dele?
Malu Garcia - Estar em Cuba me obrigou a enxergar o Brasil sem os filtros que a minha bolha de privilégios me oferece. De longe, percebi o quanto carregamos uma desigualdade naturalizada, quase anestesiada, como se fosse destino. Em Cuba, a escassez é explícita, mas existe também um senso de coletividade que amortece isso. No Brasil, temos abundância em alguns pontos, mas ela convive com um abismo social gritante — e muitas vezes escolhemos não ver. Descobri que a identidade brasileira é feita de contradições tão radicais quanto as cubanas, mas nós aprendemos a disfarçá-las. Distante, percebi o silêncio que me atravessa quando volto para o meu país e reconheço que o acesso à educação, à saúde, à segurança e até ao ato de viajar sozinha são privilégios. Escrever sobre Cuba foi, no fundo, escrever sobre o Brasil que me habita e sobre a culpa e a responsabilidade que carrego como mulher brasileira consciente dos meus privilégios. A ilha me mostrou um espelho menos confortável, mas mais verdadeiro. E talvez por isso eu volte sempre: para não esquecer que a identidade também se constrói no confronto com aquilo que preferiríamos não enxergar.

Resenhando.com -⁠ Você foi radialista, repórter, apresentadora de TV e agora escritora. Essa metamorfose da palavra em sua vida tem mais de cura ou de provocação?
Malu Garcia - Olha, para além dessas funções que exerci, eu acho que antes eu fui a primeira neta da dona Maria e sobrinha de uma freira, dona de uma mala cheirosa. Essa mala da minha tia teve um grande impacto nos meus sonhos de infância. Já minha avó era analfabeta, mas foi junto dela que a palavra ganhou o território da minha inquietação. No livro eu decifro um pouco dessas duas relações de afeto que mais tarde são decisivas para eu ganhar o mundo. Daí, a palavra passa a ser uma espécie de fio condutor na minha vida. No rádio, era rápida, quase um sopro; na TV, precisava estar enquadrada, bem medida; e na escrita… na escrita ela ganhou silêncio, pausa, ganhou corpo. Quando escrevi "Indomável", percebi que não era só sobre Cuba. Era sobre mim também. E aí entrou a cura - porque escrever me fez revisitar memórias, lacunas e contradições que na correria do dia a dia a gente não encara. Mas entrou também a provocação - porque, ao me ver fora do meu país, fora da minha bolha de privilégios, eu fui obrigada a me perguntar: quem eu sou nesse novo cenário, fazendo outras descobertas, ganhando referências, com outras verdades? Ao narrar minhas descobertas em Cuba, precisei revisitar memórias, deslocamentos e afetos que eu mesma não entendia completamente. Assim, a  palavra, funcionou como um espelho que obrigou a me encarar quase numa linha do tempo, sem possibilidade de volta, já que estou aos 50. Mas também foi provocação - para mim e para o leitor - porque expôs contradições de uma brasileira que vive em sua bolha de privilégios e, de repente, se vê diante de uma realidade que subverte certezas. Para mim até está engraçado. Depois da escrita eu passei a ter uma relação diferente, mais saudável com a minha própria casa. Domesticamente, virei uma pessoa mais organizada. Outra cura é que dias nublados ou chuvosos não me oprimem mais; e perdi a pressa para muitas coisas também. Penso que a escrita cicatrizou coisas que eu nem sabia que doíam. Então, quando terminei de escrever Indomável, percebi que não havia feito narrações apenas sobre minhas idas e vindas de Cuba, mas sim atravessado a mim mesma. De fato, essa metamorfose da palavra, em mim, não é escolha entre remédio e inquietação. Penso que seja muito mais um movimento que costura as duas coisas. E talvez seja isso que me põe em movimento até hoje: habitar esse espaço onde a palavra tanto acalenta quanto cutuca.

Resenhando.com - ⁠Se tivesse que resumir Cuba em uma única cena que dissolvesse política, poesia e contradição, qual seria?
Malu Garcia - Olha, se eu tivesse que resumir Cuba em uma cena só, eu escolheria um final de tarde no Malecón, em Havana. Você vê aqueles carros antigos passando, soltando fumaça e ao mesmo tempo ali perto as crianças saem da escola com um uniforme lindo e com uma alegria marcante, como se não houvesse falta nenhuma. Sentado, um casal apaixonado, mas ele com vontade de deixar o país e ela ligada a mil coisas da ilha; mais ao lado, um senhor com um violão gasto, tirando música da precariedade. Tudo isso sendo tomado pelo alaranjado do pôr do sol. Essa cena carrega tudo o que Cuba me revelou: a beleza que se entrelaça a dureza, a vida que pulsa apesar das faltas. É política porque a sobrevivência diária é, em si, um ato político; é poesia porque o povo cubano tem a capacidade quase mágica de extrair alegria do improvável; e é contradição porque nada ali é simples, tudo é atravessado por camadas de histórias, separações e resistências. Escolho essa cena porque foi num pôr de sol que entendi que Cuba não cabe numa frase pronta ou numa ideologia. Ela se encarna nas pessoas, nos gestos pequenos, no som do mar batendo contra o muro e devolvendo, de alguma forma, a força de quem nunca deixou de resistir. O Malecón é bem a expressão disso: a água bate forte, por vezes o encobre, e ele persevera, gigante. Foi numa tarde assim que me dei conta que tudo o que havia descoberto e vivido por ali era grandioso demais e eu precisava organizar dentro de mim, sobretudo. E foi assim que  nasceu Indomável.


domingo, 19 de outubro de 2025

.: Teatro: Thalles Cabral vai até a beira do precipício para enfrentar a tristeza


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Fotos: Ronaldo Gutierrez

Thalles Cabral, ator, músico e protagonista do solo "Triste! Triste… Triste?", mergulha em uma das experiências mais intensas da arte: a representação da perda de uma mãe e a busca por identidade em meio ao luto. Inspirado no livro "Triste Não É ao Certo a Palavra", escrito por Gabriel Abreu, e dirigido por Nicolas Ahnert, o espetáculo não apenas traduz a dor do personagem, mas a transforma em uma experiência sensível, íntima e, por vezes, surpreendentemente leve para o público.

Em entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, Thalles fala sobre a liberdade de interpretar um solo literário, a complexidade de misturar memórias próprias com as do personagem e a relação quase terapêutica que se estabelece entre ator e público. Ele comenta ainda como o humor e o cinismo coexistem com a tragédia, criando camadas que tornam o espetáculo um convite à reflexão sobre memória, família e identidade. 


Resenhando.com - Interpretar um filho lidando com a iminência da morte da mãe exige mergulhar em emoções extremas. Como você separa o que é seu do que é do personagem em cenas tão íntimas e dolorosas?
Thalles Cabral - Eu gosto de ir até a beira do precipício. O que eu mais prezo na atuação é a verdade. Como ator, preciso acreditar naquilo pra que os outros acreditem também. E pra isso, acabo buscando dentro de mim ferramentas pra acionar esse lugar: memórias, sensações, experiências, que possam me colocar ao lado daquele personagem. Muitas vezes são emoções que já conheci, mesmo que em outra intensidade. Se há algo de similar, já serve. Depois vem a investigação, o quanto usar, até onde ir. Não me interessa criar um personagem sem misturar algo de mim e tão pouco me confundir com ele. O que me move é essa linha tênue, chegar perto do abismo, mas não saltar.


Resenhando.com - Sua carreira transitou entre novelas, séries e cinema. O que muda na sua abordagem quando o palco é um solo literário, e você não tem outros atores para “compartilhar” a carga emocional?
Thalles Cabral - Quando o Nicolas surgiu com o convite pra transformar o livro em um solo, eu hesitei. Contar uma história sozinho é um desafio enorme. O jogo com outros atores é uma das maiores alegrias do teatro, e abrir mão disso me parecia um risco grande. Mas quando li o livro do Gabriel e depois a adaptação do Nicolas, vi que "Triste..." é, na verdade, um terreno fértil, cheio de possibilidades. E com o tempo, percebi que, no fundo, não estou sozinho. O público, tão perto, respira junto comigo. Eles se tornam meus parceiros de cena, e é com eles que eu compartilho essa viagem toda.


Resenhando.com - O personagem que você interpreta lida com memória, identidade e cinismo. Algum 
desses elementos acabou refletindo em você durante os ensaios ou na vida pessoal?
Thalles Cabral - Ah, passei por todos esses e mais alguns (risos). É impossível lidar com as diferentes emoções que um texto exige sem se encharcar delas. Mas acho que o que mais ficou em mim foi a relação com a memória. Revirei fotos minhas quando criança, fotos antigas dos meus pais, fui atrás desses registros, que aliás é uma coisa maravilhosa. Com o digital, a gente foi perdendo o costume de revelar as fotos, mas eu sempre tive essa mentalidade de registrar tudo, tenho HDs cheios de fotos e vídeos. Acho que a memória é o que nos faz ser quem somos, e é preciso preservá-la com carinho.


Resenhando.com - Em "Triste! Triste… Triste?", o humor surge como contraponto à tragédia. Qual foi 
o momento mais divertido ou irônico que você descobriu dentro do luto do personagem?
Thalles Cabral - Acho que os momentos mais divertidos são os das lembranças da mãe. Ela nunca aparece em cena, mas está por toda parte, principalmente nessas histórias que o filho rememora num tom quase de talk show. Essa escolha foi linda, porque humaniza a ausência. Aquelas histórias são engraçadas, familiares, e o público se reconhece nelas. Nos ensaios, a gente explorou muito essas passagens, buscando uma forma de narrar leve e íntima, como quem conta algo da própria vida. E nesses momentos, eu realmente me diverti.


Resenhando.com - Você já lidou com grandes prêmios e reconhecimento no cinema. Como é lidar com a vulnerabilidade extrema do teatro íntimo, onde cada gesto e silêncio pesa para o público?Thalles Cabral - O teatro é uma das coisas que eu mais amo na vida e o lugar onde eu mais me sinto inteiro. Faço desde os sete anos, e ainda hoje é o espaço onde mais aprendo sobre mim. Talvez só andar de bicicleta tenha começado tão cedo e permanecido até hoje (risos). Existe algo de muito especial entre o ator e o público, algo que não se explica, só se vive. Essa vulnerabilidade é o que me fascina. É o risco, a troca, a sinergia com aquele público daquela noite, um pacto que nunca se repete. Ainda não inventaram nada melhor do que sair de um teatro mexido depois de uma peça boa. E tentar provocar isso nos outros é um privilégio raro.


Resenhando.com - Ao explorar a dor do filho, você se sentiu obrigado a buscar memórias próprias de perda, ou conseguiu criar tudo a partir da imaginação e empatia? 
Thalles Cabral - Sim. Eu vejo o espetáculo como uma grande alegoria do luto. O personagem atravessa todas as fases desse sentimento, ora de maneira realista, ora num registro mais lúdico. É quase um ensaio sobre o que significa perder. O luto é sempre uma quebra, uma interrupção, e pode aparecer de muitas formas na vida, não só na morte. Durante o processo, olhei pras minhas próprias experiências de perda e lembrei de como reagi diante delas. Acho que é sempre a partir da gente que o trabalho começa.


Resenhando.com - O solo é inspirado no livro de Gabriel Abreu, mas Nicolas Ahnert expandiu a 
narrativa. Qual foi a cena que mais te desafiou a reinventar sua própria atuação dentro dessa liberdade dramatúrgica?
Thalles Cabral - A cena em que as várias vozes da cabeça dele começam a discutir foi, sem dúvida, a mais desafiadora. Era preciso dar identidade a cada uma delas sem nenhum apoio visual, só com corpo e voz. Além disso, a cena tem um ritmo próprio, que vai crescendo até quase o caos. Demorei pra encontrar o tom dela, mas depois virou uma das minhas favoritas.


Resenhando.com - Thalles, você já disse que seu disco “Utopia” é uma narrativa própria, com clipes dirigidos por você. Existe alguma relação entre a construção desse universo musical e a construção do personagem em "Triste! Triste… Triste?"?
Thalles Cabral - "Utopia" é um álbum que fala sobre uma geração que vive pro amanhã, um amanhã distante, idealizado, quase inalcançável, e acaba esquecendo do agora. O personagem de Triste é o oposto. Ele não vive pro futuro, vive preso ao passado, sem perspectiva. É justamente olhando pra trás que ele consegue se mover pra frente. De algum modo, os dois se encontram nesse mesmo estado de suspensão: o que paralisa por excesso de futuro e o que paralisa por excesso de passado. Talvez ambos estejam tentando entender o agora, que é o lugar mais difícil de habitar.


Resenhando.com - A peça fala de uma geração anestesiada em busca de identidade. Você se identifica com essa “geração” ou vê o personagem como um espelho crítico do que poderia ter
sido você?
Thalles Cabral - 
Acho que o teatro e a arte no geral sempre me fizeram olhar pro mundo de outro jeito. Desde pequeno, sou curioso, atento, inquieto. O personagem de "Triste..." evita o enfrentamento, foge daquilo que realmente importa, e nisso a gente é bem diferente. Eu não fujo. Posso levar um tempo pra elaborar, pra entender como abordar certas coisas, mas enfrento logo. Não gosto de prolongar nada. E quanto à busca de identidade, eu entendo que é algo que vai nos acompanhar durante a vida toda, e isso não me angustia. Pelo contrário, gosto de me surpreender comigo mesmo e me sinto orgulhoso de quem estou me tornando.


Resenhando.com - Se pudesse escolher um momento do espetáculo para que o público lembrasse de 
você para sempre, qual seria?
Thalles Cabral - Não escolheria um momento, mas uma sensação. Triste oferece várias possibilidades de reflexão, e cada espectador leva a sua. Eu adoro quando vou ao teatro e saio com uma tarefa de casa, algo que me acompanha na volta, que me faz pensar sobre a minha vida. É isso que eu desejo pro público, que saiam pensando sobre as próprias relações, sobre como se comunicam com seus pais, filhos, amores. A palavra é o início e o fim de tudo.

 
Ficha técnica
Epetáculo "Triste! Triste… Triste?"
Texto e direção: Nicolas Ahnert. Elenco: Thalles Cabral. Cenário e figurino: Pazetto. Iluminação: Nicolas Caratori. Trilha sonora: Alê Martins. Direção de produção: Nicolas Ahnert. Produção: Laura Sciulli e Victor Edwards. Realização: ZERO TEATRO.

 
Serviço
Epetáculo "Triste! Triste… Triste?"
Temporada: outubro (sábados, às 20h00, e domingos, às 19h00). Novembro (sábados, às 20h00, domingos, às 19h00, e segundas, às 20h00)
Classificação: 14 anos
Duração: 70 minutos
Ingressos: R$80
Link para venda: linktr.ee/tristeespetaculo
Teatro Do Núcleo Experimental
R. Barra Funda, 637 - Barra Funda/São Paulo
Capacidade: 100 lugares.



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