Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação.
Há quem diga que todo livro é um abrigo provisório - desses que acolhem até que a vida volte a caber dentro da gente. Em “O Menino e o Livreiro”, publicado pela editora E-Galáxia, Andrea Jundi não escreve apenas um romance de estreia: ela consegue erguer, página por página, uma morada sensível para os órfãos de afeto, para os que foram deixados na estação errada e para os que, apesar de tudo, ainda esperam um trem que os leve a algum lugar que mereça ser chamado de casa.
Roteirista com mais de 20 anos de mercado, Andrea estreia na literatura com a segurança de quem conhece o ritmo das imagens, mas aposta na delicadeza da palavra como potência transformadora. O protagonista do romance, Carlos, é um menino abandonado que não se torna estatística, mas personagem - não por negação da realidade, mas por uma escolha radical: a de escrever esperança sem anestesiar a dor.
Em tempos em que cinismo virou sinônimo de lucidez, a autora faz o movimento inverso e se arrisca onde poucos ousam: acredita no afeto, investe na escuta, escolhe a ternura como campo de batalha. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, ela fala sobre infância e abandono, sobre roteiros e reinvenções, sobre literatura como gesto de reparação. E, principalmente, sobre os livros que salvam - mesmo quando ninguém mais parece disposto a tentar. Compre o livro "O Menino e o Livreiro", de Andrea Jundi, neste link.
Resenhando.com - Você escolheu contar uma história de abandono sem cair na tragédia anunciada. Como autora, que riscos você correu ao optar por uma narrativa esperançosa em um país em que a infância é diariamente sacrificada?
Andrea Jundi - A escrita para mim acontece enquanto escrevo. Quando comecei a escrever "O Menino e o Livreiro", não sabia qual seria o caminho a percorrer, não tinha um final definido e tampouco sabia todos os personagens que fariam parte da história. Carlos se mostrou para mim desde o início como um menino cheio de amor e de vida e, como um novelo, conforme ia puxando o fio, fui sendo guiada por esse caminho do afeto das relações. Escrever qualquer tipo de história sempre envolve o risco de não ser bem aceito. É algo que os escritores lidam diariamente, não importa o tamanho de seu sucesso já conquistado. Mas quando escrevemos com verdade, sempre haverá público. "O Menino e o Livreiro" trata de um tema muito difícil que me toca profundamente, e a tendência à tragédia, na minha opinião, é mais óbvia do que o caminho da esperança. Mas quando se trata de crianças, se nós adultos não conseguirmos ajudá-los a encontrar uma saída, o que resta?
Resenhando.com - "O Menino e o Livreiro" surgiu de uma imagem mental vívida. O que mais a sua cabeça anda projetando? Você costuma confiar nos delírios criativos como ponto de partida ou prefere o planejamento racional da estrutura?
Andrea Jundi - Adorei o “delírios criativos” (risos). Sim, eles são sempre meu ponto de partida. Não sou uma escritora que cria toda a estrutura com começo, meio e fim, antes de começar a escrever. Eu parto de uma cena que está muito clara em minha mente e a partir daí começo a desenvolver a personagem principal, sua trama central. Depois disso é natural que outros personagens comecem a surgir para suprir essa trama. A escrita estruturada para mim acontece quando escrevo roteiro de longa metragem. Aí, sim, preciso ter a curva dramática traçada antes de mergulhar no roteiro em si. Já a escrita literária é onde me permito ser livre na criação, onde me sinto mais à vontade no desordem. Não que não haja ordem alguma, mas ela vai nascendo a partir de um entrelaçado e não de uma linha. Nesse momento estou dedicada a escrever meu próximo livro e ele também surgiu de uma cena muito vívida em minha cabeça, um delírio criativo. Já encontrei a trama central e estou agora descobrindo a trilha das duas protagonistas. Sentindo dores e amores com elas, me entristecendo e me deslumbrando com cada etapa. Às vezes me sinto como numa mata intocada, perdida, mas vou insistindo no caminho e é como se elas me sussurrassem para onde seguir até encontrar um novo rastro para seguir.
Resenhando.com - Você fala de “cargas nos vagões” e escolhas impostas - quais dessas cargas você mesma ainda carrega e quais precisou deixar para escrever esse livro?
Andrea Jundi - Carrego uma carga enorme e linda que foi meu trabalho como assistente de direção no audiovisual. Ele que me trouxe ao longo de mais de vinte anos quase toda minha experiência em contar histórias e me colocou em contato com universos diversos que enriqueceram o meu, me deram repertório. Saí dessa estação mas levei a carga comigo. A maior carga que tive que deixar foi a síndrome de impostora, essa porque nunca agregou. Sempre escrevi pra mim mesma, não mostrava para ninguém, mas quando decidi escrever para os outros lerem, tive que enfrentar o medo do julgamento, medo do olhar dos outros sobre mim. Não sei se consegui deixar mesmo essa carga para trás, mas tenho conseguido ressignificá-la como parte de quem eu sou e me dando o direito de mudar e melhorar sempre.
Resenhando.com - Ao transformar um menino rejeitado em protagonista de uma jornada afetiva e simbólica, você também desafia a lógica de que a dor precisa ser exibida com crueza. A literatura brasileira está pronta para histórias ternas ou ainda prefere o chicote?
Andrea Jundi - Não escrevi com ternura de forma racional, mas durante a escrita, quando precisei fazer escolhas da narrativa, algo me impedia de ser cruel com o Carlos. Ele é um personagem que traz uma carga enorme de abandono em diferentes camadas, mas teve a sorte de encontrar pessoas que o ajudaram a seguir. Existem muitas histórias assim, de crianças que encontram uma mão no meio do caminho e outras tantas crianças como o João, irmão de Carlos, que são engolidos pelo sistema cruel. A existência do João tem a importância não só de representar essa dureza, mas também de enxergarmos as várias camadas que todos têm. Carlos enxerga nos olhos de João as camadas do irmão, sua bondade ressecada pela falta de amor e de cuidado e através desse olhar de Carlos, entendemos que ninguém é bom ou ruim e só, mas que somos moldados por situações externas que muitas vezes não escolhemos viver e ainda assim, estamos tentando fazer o melhor que podemos com o que nos restou. Às vezes, quase nada. A literatura brasileira é riquíssima e diversa e tem espaço para todo tipo de narrativa. Desde que lancei o livro recebo mensagens profundas de pessoas que se emocionaram muito com a história e que foram tocadas de uma forma que fazia tempo não sentiam. Estamos vivendo tempos muito difíceis e acho que histórias afetivas tem sido bem recebidas.
Resenhando.com - O livreiro e o assistente que acolhem Carlos parecem quase figuras arquetípicas — guardiões da palavra. Em quem você se inspirou para criar esses personagens que, em outro tempo, talvez fossem chamados de “mestres”?
Andrea Jundi - No caso de Romeo, o livreiro, ele e Carlos se conectam através de suas faltas, de seus vazios. Romeo tem um papel de mestre porque, ao permitir que sua solidão seja invadida, percebe que esse é o único papel que lhe compete; guiar esse menino. Não há outro papel para ele na vida de Carlos que não seja o de acolhê-lo. Tive avôs muito presentes em minha vida e talvez se forma inconsciente, tenha um pouco de cada um em Romeo. Já Pietro agrega com sua própria experiência de abandono, que é diferente da de Carlos, mas que também tem uma carga suficiente para moldar sua personalidade. Vejo mais o Pietro sendo guiado pelo Carlos do que o contrário, porque a dor do abandono de Carlos coloca o Pietro em movimento para também tentar entender sua própria história.
Resenhando.com - Você veio do audiovisual, um território coletivo e visual, e passou para a literatura, solitária e silenciosa. O que se ganha - e o que se perde - ao fazer essa travessia?
Andrea Jundi - Por vezes sinto bastante falta da coletividade do audiovisual. Sou uma pessoa que sempre andou em grupo e trabalhar nessa área é tão intenso, que as equipes acabam ficando muito ligadas umas às outras. Por outro lado, apesar de ser bastante social, sempre tive prazer no silêncio e em ficar sozinha. Ainda muito nova percebi essa necessidade e desde adolescente já escrevia fechada no quarto, ou ficava ouvindo música. Minha cabeça está o tempo todo criando cenas e imagens, acho que a minha solidão também é um pouco barulhenta rsrs. Fui encontrando saídas para o excesso de solidão que a escrita impõe e há um tempo faço parte de um grupo de escrita literária aqui em Lisboa, a Amora, uma forma de me cercar de pessoas criativas e também exercitar a escrita em grupo. Eu me mantive no audiovisual através da escrita de roteiros e para além de ficar perto dessa arte que amo, ainda posso trabalhar em equipe de tempos em tempos. Em roteiro, sempre acabo fazendo algum laboratório online com encontros semanais, onde lemos e opinamos nos projetos uns dos outros, enriquecendo o trabalho e dando um tempo na solidão quando ela pesa. Mas no geral, gosto desse silêncio da escrita.
Resenhando.com - A infância é quase sempre narrada por adultos. Como foi acessar uma voz infantil sem resvalar no tom professoral ou nostálgico? O que o menino Carlos ensinou a você que a roteirista Andrea ainda não sabia?
Andrea Jundi - Eu amo crianças, tenho um profundo respeito por essas mini pessoas, seus conhecimentos simples e leves muitas vezes tão mais profundos que os nossos. Tenho dois filhos, hoje com oito e 11 anos e somos muito ligados. Amo receber os amigos deles, viajar com amigos que têm filhos e observar essa interação entre eles, ouvir suas teorias sobre as questões da vida, as dúvidas que têm e como no geral pensam de forma tão mais límpida, mais simples. Acho que o tom afetuoso do livro tem muito a ver com a ingenuidade da criança. Apesar de não ser narrado em primeira pessoa, o olhar inocente de Carlos permeia a história. Uma vez ouvi uma menina em situação de guerra responder à pergunta de uma repórter sobre o que ela sonhava em ser quando crescesse, e ela disse que ali eles não sonhavam. Nunca mais esqueci aquilo, como pode uma criança não sonhar? Como podemos nós, como adultos, permitir que crianças não sonhem? Carlos me deu o dever de encontrar uma saída para ele e precisei enxergar através dos seus olhos o que ele precisava.
Resenhando.com - Morando em Portugal, você publicou por uma editora brasileira. Essa geografia afetiva da escrita - entre Brasil, Londres e Lisboa - impacta no modo como você observa e escreve suas personagens?
Andrea Jundi - Morar fora do Brasil me fez entender que muitas histórias e sentimentos são universais, mas tenho uma alma brasileira e através do meu trabalho no audiovisual, pude conhecer vidas muito diferentes da que eu cresci inserida. Amo gente, gosto de conversar e escutar histórias diversas, morei em uma vila de pescadores muito pobre no nordeste do Brasil para filmar um longa metragem e algumas daquelas crianças só tinham água com açúcar para enganar a fome. Filmei em comunidades, sentei no sofá de moradores e ouvi sobre seus medos e suas conquistas. Filmei com refugiados sírios e conheci os sonhos de seus filhos pequenos. Conheci quem voltou a ouvir pela primeira vez depois de anos surdo, quem ganhou seu primeiro cão guia que seria seus olhos a partir dali, presenciei o primeiro dia de dois irmãos chegando à sua nova casa com seus pais adotivos. Tudo isso no Brasil. Acredito que meus personagens terão sempre alma de brasileiro, minha gente, que eu conheço e entendo melhor que qualquer outro povo.
Resenhando.com - Seu livro fala sobre “quem parte e quem escolhe ficar”. Se pudesse revisitar os roteiros da sua própria vida, de quais personagens você teria partido antes, e para quais teria ficado mais tempo?
Andrea Jundi - No geral sou bem resolvida com as minhas escolhas. Gosto de me relacionar com as pessoas, aprofundar amizades, criar bases seguras. Tenho tendência a ser da turma que escolhe ficar e prefiro pensar que fiz o meu melhor antes de partir. Têm amizades e parceiros de trabalho que ficaram pelo caminho e sei que foi melhor assim porque não somavam na minha vida, mas conforme vou mudando de estação sempre dou um jeito de arrastar uns comigo. Sou apegada (risos). E se for para ficar, tem que fazer valer a pena.
Resenhando.com - Há um momento em que Romeo pergunta a Carlos sobre as cargas que ele escolhe levar. Qual foi a carga mais pesada que você precisou transformar em literatura para que não te esmagasse na vida real?
Andrea Jundi - Qualquer coisa que relacione criança à dor me machuca em um lugar profundo. No Brasil, mais de 5,5 milhões de crianças não têm pai na certidão de nascimento e outros tantos só tem o nome do pai na certidão, mas não os tem na vida real. Milhares de casas são lideradas por mulheres, mas numa sociedade que não olha por elas com o respeito e cuidado necessários. Na ponta final, quem sofre de muitos tipos de abandonos, são as crianças. O Estado vira a cara para essas crianças toda vez que não cuida de suas mães, toda vez que cerceia a liberdade às mulheres sobre seus próprios corpos e que as pune por crimes cometidos pelos homens. Acho que o tom afetivo do livro é o meu próprio afeto querendo gritar mais alto do que a raiva que sinto desse abandono imposto.