Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação
Premiado roteirista, jornalista e mestre em Teoria Literária, Antonio Arruda estreia na literatura com "O Corte que Desafia a Lâmina", publicado pela Editora Cachalote. O livro, que cruza autobiografia e ficção, nasce do confronto entre dor e linguagem. A obra mergulha nas zonas de tensão entre vida e morte, fé e erotismo, desejo e repressão, revelando um autor que transforma o trauma em matéria poética.
Essa relação entre ferida e palavra também atravessa sua trajetória no audiovisual - da série "Cidade Invisível" (Netflix) ao infantil "Era Uma Vez no Quintal" (TV Cultura). Com formação em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, Arruda propõe o que chama de “estética da cicatriz”: um modo de lidar com o real a partir da dor, mas sem vitimização.
Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, ele fala sobre a voz do pai que ecoa em sua escrita, o perigo e a beleza de escrever a partir da lâmina e o corpo como território de revelação e enfrentamento - quando cada texto é uma tentativa de lidar com o que fere, mas também com o que cura. Compre o livro "O Corte que Desafia a Lâmina", de Antonio Arruda, neste link.
Resenhando.com - O seu livro começa a ser elaborado a partir da ausência da voz do pai. Você acredita que toda obra literária é uma tentativa de devolver a voz a alguém, mesmo que esse alguém seja um fantasma dentro de nós?
Antonio Arruda - Creio que o primeiro movimento seja o de ouvir essa voz. Seja ela interna, pessoal, ou de outros. Uma voz individual ou coletiva, social, política, existencial. Uma voz que tem algo a dizer. Que necessita ora gritar, ora sussurrar o não dito. E o escritor é aquele que se abre à escuta dessa voz. No meu caso, voltar ao trauma vivido quando tinha 12, 13, 14 anos e presenciei o adoecimento e a morte de meu pai, vítima de um câncer que lhe extirpou alguns órgãos e, consequentemente, a fala, me abriu um rasgo na realidade.E eu olhei através dele. Nesse sentido, a partir da não voz do pai, como eu digo no livro, nasceu a voz poética do filho. Então, sim, de certo modo eu dei voz a um fantasma que me assombrou durante muitos anos. Porque quando visitei meu pai no hospital e ele, já mudo, me entregou um pedaço de papel onde estava escrito: “está tudo bem, meu filho”, eu passei muito tempo refletindo sobre esse “está tudo bem”. Hoje, entendo que meu pai não se referia a ele - que obviamente não estava bem -, mas a mim, ao que ele desejava para mim, como se dissesse: “está tudo bem você ser feliz, apesar de; está tudo bem você viver a sua sexualidade, apesar de; está tudo bem você seguir o caminho que quiser em sua vida, apesar de este momento de perda ser muito doloroso”. Eu transformei o trauma em linguagem e ressignifiquei meus fantasmas internos.E, a partir daí, comecei a acessar dores, violências e traumas, como eu disse, existenciais, coletivos. Esse processo, creio, pode ser lido como uma forma de devolver a voz a alguém, de se apropriar do real em sua terrível crueza e, ao tentar perceber e sentir o que esse real pode revelar, valer-se da matéria-prima da escrita, que é a palavra, a linguagem, para verbalizar o que está nas entranhas, nos escombros desse real.
Resenhando.com - Em algum momento, escrever o salvou da própria lâmina, ou apenas ensinou você a manuseá-la melhor?
Antonio Arruda - Se eu me salvasse da lâmina, não haveria escrita. Talvez tenha me ensinado, ou, melhor dizendo, me convocado a enfrentar a lâmina da realidade e transformá-la em lâmina-palavra. Ao assumir a palavra como lâmina que corta o corpo-livro e dá vida a ele, me vi mergulhado em um tensionamento constante entre experiência de vida e experiência literária. Não consigo conceber uma literatura que não nasça da experiência, seja ela, como eu mencionei, pessoal ou coletiva, histórica. Um dos meus livros de cabeceira é “O Arco e a Lira”, de Octávio Paz. Há um trecho do qual eu gosto muito: “A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são a nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade”. Escrever, nesse sentido, é testemunhar a realidade - no caso do meu livro, cortante, violenta, dilaceradora - para, assim, conferir-lhe um sentido outro, construído por meio de símbolos, metáforas, imagens poéticas, criando um espaço-tempo que passa a ser o literário, não mais o da vida, ainda que tão vivo e pulsante quanto ela própria.
Resenhando.com - No livro, o corpo é texto e o texto é corpo. Se a sua escrita tivesse um cheiro, uma textura e uma temperatura, como ela seria?
Antonio Arruda - Teria o cheiro de um corpo que sangra, mas que também goza; o cheiro do suor que exala no momento do estertor, mas que também irrompe da pele no instante do orgasmo; o cheiro da natureza, muito presente no meu livro, a floresta, o mar, a terra, a brisa, que ora leva o leitor a sentir o terrível e o cruel, ora o epifânico, o etéreo, o impalpável espectral.Teria a textura do ferimento em carne viva e da cicatriz que o constitui como memória nesse corpo atravessado pela experiência da dor e de sua possível transmutação. Teria a temperatura quente, quase escaldante do sol que assola o velho do conto “O Devir”, por exemplo, e também o frio do cadáver do adolescente do conto “A Queda da Estrela”; ou, ainda, a temperatura morna e úmida dos musgos da árvore sobre os quais o personagem do conto “Nu” se senta e vive sua experiência de desejo e temor. Teria esses cheiros, essas texturas e essas temperaturas pois minha escrita nasce da ambivalência, das contradições, do tensionamento constante e inevitável entre pulsão de vida e de morte.
Resenhando.com - Você vem de uma trajetória sólida no audiovisual, na televisão, na Netflix. O que a literatura o permitiu dizer que a câmera jamais permitiria captar?
Antonio Arruda - Vou responder seguindo por outro caminho: o que a literatura me permitiu fazer, que é, fundamentalmente, o trabalho, a experimentação com a linguagem. Por mais que na escrita de um roteiro a descrição dos cenários, o tom das cenas, a criação das falas dos personagens passem, obviamente, pela escolha das palavras, com a literatura é diferente. A literatura permite uma elaboração mais complexa. A busca pela palavra que melhor diz, que melhor revela o sentimento do personagem, a atmosfera desejada. A literatura possibilita - não que o audiovisual também não o faça, mas em outra medida, de outra maneira - a sugestão, o mistério que habita as entrelinhas do texto, e que só será revelado - e ressignificado - pelo leitor. Cabe a ele, e apenas a ele, no fim das contas, experienciar o que o livro expressa. E talvez seja essa a grande beleza do fazer literário.
Resenhando.com - A obra é atravessada por erotismo, dor, fé e homoafetividade, temas muitas vezes tratados como “demais” por uma sociedade ainda careta. Quando você escreve, sente que está exorcizando o medo alheio ou desnudando o seu?
Antonio Arruda - As duas coisas, e não somente elas, e sem que haja uma distinção pragmática entre o que é meu e o que é alheio a mim. Interessa-me mais o borrão, a mancha que atravessa escritor e leitor. O quanto meu livro pode também desnudá-lo de seus medos? O quanto eu posso exorcizar os meus? O quanto, ainda, para além de um possível exorcismo, se faz necessária a convivência com os demônios, olhá-los de frente, tê-los ao lado? No livro, erotismo, dor, fé e homoafetividade estão emaranhados, são temas que se entrecruzam. Então, acredito, ou pelo menos desejo, que o livro gere no leitor mais encruzilhadas do que estradas retas.
Resenhando.com - A estética da cicatriz que você propõe tem algo de ritual. O que há de oferenda e o que há de profanação no ato de escrever?
Antonio Arruda - Você tocou em um ponto bem importante, foi bem agudo em sua colocação. Há, de fato, algo de ritual. Ofertar-se à escrita é o ofício do escritor. Entregar-se ao texto. Como diz a poeta Isadora Krieger, “escrever é desaparecer no texto”. Nesse sentido, há muito de oferenda no processo de escrita. É uma doação intensa, um sacrifício, há algo de litúrgico, mítico, místico. Algo se desvela e se descortina quando escrevo, algo muitas vezes maior do que eu, que existe para além de mim. Ao mesmo tempo, meu processo de escrita e meu texto neste livro carregam uma corporeidade densa. “O Corte que Desafia a Lâmina” trabalha o tempo todo com a dualidade entre sagrado e profano. Profanar a carne para ofertá-la em sacrifício ao espírito. Acessar o espírito para que ele unja a carne e seus cortes, suas feridas. É esse o paradoxo que me interessa. E a minha proposta com a estética da cicatriz é justamente essa: criar um livro-corpo que, ao ser atravessado pela lâmina-palavra, inevitavelmente faça da escrita uma forma de ritualizar as experiências - de vida e literária.
Resenhando.com - No livro, há um homem que carrega uma carcaça de tartaruga até o mar e afunda com ela. Qual seria a sua carcaça hoje, e o que ainda o impede de soltá-la?
Antonio Arruda - Vou pensar sobre essa pergunta e levá-la para a minha próxima sessão de análise para elaborar uma possível resposta (risos). Talvez a gente passe a vida toda acessando carcaças que acreditamos já ter soltado. Mergulhar nas dores e nos traumas me parece ser um exercício constante. Não sei especificar qual a carcaça de hoje com a qual ainda não me afoguei no mar. Mas, fazendo uma ligação com a pergunta anterior, talvez seja esse o ritual que mais me constitui como sujeito inquieto e complexo: tatear o inconsceano (para utilizar um dos neologismos do livro) e, assim, quem sabe, acessar as profundezas de ser.
Antonio Arruda - Vou pensar sobre essa pergunta e levá-la para a minha próxima sessão de análise para elaborar uma possível resposta (risos). Talvez a gente passe a vida toda acessando carcaças que acreditamos já ter soltado. Mergulhar nas dores e nos traumas me parece ser um exercício constante. Não sei especificar qual a carcaça de hoje com a qual ainda não me afoguei no mar. Mas, fazendo uma ligação com a pergunta anterior, talvez seja esse o ritual que mais me constitui como sujeito inquieto e complexo: tatear o inconsceano (para utilizar um dos neologismos do livro) e, assim, quem sabe, acessar as profundezas de ser.
Resenhando.com - Você é roteirista, professor, pesquisador, sacerdote e agora escritor publicado. Qual dessas vozes mais o contradiz, e qual delas você tenta silenciar quando escreve?
Antonio Arruda - Talvez a mais contraditória delas seja a do escritor. Justamente por abarcar as demais? Não sei. Respondo em forma de pergunta, pois a assertividade, aqui, mataria, justamente, a contradição. Nunca tinha parado para pensar sobre isso. Mas sinto que a voz do professor, por ser carregada de um inevitável didatismo, seja aquela que, ainda que inconscientemente, eu tente silenciar. Minha escrita é altamente simbólica, imagética, alegórica. Acredito que não haja nela espaço para didatismos.
Antonio Arruda - Talvez a mais contraditória delas seja a do escritor. Justamente por abarcar as demais? Não sei. Respondo em forma de pergunta, pois a assertividade, aqui, mataria, justamente, a contradição. Nunca tinha parado para pensar sobre isso. Mas sinto que a voz do professor, por ser carregada de um inevitável didatismo, seja aquela que, ainda que inconscientemente, eu tente silenciar. Minha escrita é altamente simbólica, imagética, alegórica. Acredito que não haja nela espaço para didatismos.
Resenhando.com - A dor é matéria-prima da arte, mas também um mercado. Você teme que o leitor leia suas feridas como espetáculo, e não como identificação?
Antonio Arruda - Não. A dor como espetáculo está na mídia, nas notícias que transformam corpos violentados, agredidos, estraçalhados em números, em estatística. Está nas redes sociais. Está, infelizmente e cada vez mais, nos algoritmos. Sua pergunta me fez pensar que talvez o leitor não leia minhas feridas (que já nem são mais minhas, na verdade, uma vez que, depois de terem sido matéria-prima para a escrita, viraram ficção; são, portanto, as feridas dos narradores, dos personagens, do livro-corpo) como espetáculo, mas, se não como identificação, talvez como estranhamento, repulsa? Acredito que a literatura, ao se valer de elementos que atravessam, transgridem, subvertem o real, leva os leitores a processos complexos de investigação sobre si. Pelo menos é o que desejo que eles sintam ao acessar os cortes e as cicatrizes que eu transformei em experimentação estética.
Antonio Arruda - Não. A dor como espetáculo está na mídia, nas notícias que transformam corpos violentados, agredidos, estraçalhados em números, em estatística. Está nas redes sociais. Está, infelizmente e cada vez mais, nos algoritmos. Sua pergunta me fez pensar que talvez o leitor não leia minhas feridas (que já nem são mais minhas, na verdade, uma vez que, depois de terem sido matéria-prima para a escrita, viraram ficção; são, portanto, as feridas dos narradores, dos personagens, do livro-corpo) como espetáculo, mas, se não como identificação, talvez como estranhamento, repulsa? Acredito que a literatura, ao se valer de elementos que atravessam, transgridem, subvertem o real, leva os leitores a processos complexos de investigação sobre si. Pelo menos é o que desejo que eles sintam ao acessar os cortes e as cicatrizes que eu transformei em experimentação estética.
Resenhando.com - Se o corte é inevitável, o que você ainda não teve coragem de transformar em lâmina?
Antonio Arruda - Não sei… Às vezes eu sinto um pouco de medo da falta de medo que eu sinto (risos). Talvez quando descobrir qual a carcaça de hoje que ainda não carreguei para o mar eu consiga responder a essa pergunta. Como algumas pessoas que leram meu livro enquanto eu o escrevia e antes de enviá-lo à editora me disseram: “seu livro é fruto de muita coragem”. E eu senti mesmo isso ao escrevê-lo. Foi muito intenso e profundo mergulhar nas dores, nos traumas, nos cortes. E foi libertador. E estou disposto a continuar encarando as lâminas, a fazer delas o elemento mefistofélico que me aguilhoa a existência.
Antonio Arruda - Não sei… Às vezes eu sinto um pouco de medo da falta de medo que eu sinto (risos). Talvez quando descobrir qual a carcaça de hoje que ainda não carreguei para o mar eu consiga responder a essa pergunta. Como algumas pessoas que leram meu livro enquanto eu o escrevia e antes de enviá-lo à editora me disseram: “seu livro é fruto de muita coragem”. E eu senti mesmo isso ao escrevê-lo. Foi muito intenso e profundo mergulhar nas dores, nos traumas, nos cortes. E foi libertador. E estou disposto a continuar encarando as lâminas, a fazer delas o elemento mefistofélico que me aguilhoa a existência.










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