sexta-feira, 8 de agosto de 2014

.: Crônica: A TPM da Lotação, por Juliana de Souza

Por Juliana de Souza


Dia desses, ao entrar no ônibus 17, na linha que sai de Canoa e vai até Remos, deparei-me com um casal que estava sentado próximo à porta de saída, junto ao cobrador, falavam alto, gesticulavam, interrompiam o discurso um do outro, um espetáculo circense que dava inveja a muito artista de rua. Sim, eles estavam discutindo a relação.

Tratei de olhar para os dois lados em busca de uma rota de fuga para escapar daquele momento íntimo, tão “celebrado” em público e que começava a ganhar olhares de reprovação da plateia, digo, dos passageiros. Mas, para minha infelicidade, não havia rota de fuga, e o pior, o único lugar disponível era no banco logo atrás do casal. O jeito foi sentar ali mesmo e tentar ficar invisível, ser mais uma espectadora involuntária daquela situação inevitável na vida de todo casal.

A discussão se prolonga e em certo momento todos os passageiros, além de partilharem da mesma angústia, já se tornaram conhecedores do motivo que leva a moça a querer, praticamente, esfolar o namorado em praça pública. A situação é esta, o rapaz está tentando convencer a namorada de que no dia em que bebeu demais na casa do Zé Araújo foi por conta do Palmeiras ter perdido, ele não sabia que naquela ocasião a Soraia, sua ex-namorada, iria aparecer por lá.

A moça, muito revoltada e sofrendo daquele gestual típico italiano, bate no ombro do rapaz ameaçando-o a todo o momento interrompendo a explicação do pobre coitado que já não sabia mais como se defender daquela paranoia toda e principalmente tentando encontrar a tacada final para aquele drama todo.  Eu não tinha dúvidas, o rapaz iria apanhar ali mesmo, na frente de todo mundo. Penso em intervir, mas àquela altura do conflito, corria o risco de a moça pensar que a Soraia era eu.

O rapaz tenta se explicar, diz que não aconteceu nada, que nem a tinha cumprimentado, Soraia estava lá porque é amiga da namorada de Zé Araújo, justifica. Já sem paciência por tanto sofrer com aquele achincalhamento, o rapaz - cheio de “sensibilidade”  - dispara uma pergunta , como quem tenta o último golpe numa luta em que está sendo surrado , "o que há com você, está menstruada?".


Se existe mesmo um silêncio antes da explosão, certamente é parecido com o que se ouviu naquele coletivo. Eu tinha certeza de que o homem havia, com aquela frase, assinado sua sentença de morte. O motorista reduz a velocidade para deixar um passageiro no próximo ponto de ônibus. A moça, cujo silêncio só não era maior que a fúria contida, aproveitou o sinal de parada e praticamente atropelou o pobre coitado que dava o passo para pisar no primeiro degrau da porta de saída. O rapaz, que mesmo sem ter feito nada demais na festa do Zé Araújo, levanta-se do banco e desce do ônibus gritando desesperadamente, “desculpa, desculpa, desculpa!”.

Sobre a autora
Juliana de Souza é um paradoxo. O olhar de ressaca, tal qual a personagem machadiana, às vezes inquisitivo, o tom de voz rouco e os cabelos cor de mel fazem com que ela passe uma imagem que talvez não seja condizente com quem ela é, mas ela é. É e não é ao mesmo tempo, porque quando você a lê, o paradigma Juliana demonstra ser completamente outro. É como se ela oferecesse várias de si enquanto é, como gente, e quando escreve. Quando você a lê, descobre uma mulher sensível, observadora e poética em sua feminilidade. Não se sabe se é mulher, ou é menina, embora toda mulher seja uma menina eterna, mesmo que não queira transparecer. É linda a vida ditada por uma mulher com vistas de uma menina, ou de uma menina vivida com os olhos da mulher que intui, que percebe e sabe que dita as regras, afinal, o mundo é de cada uma delas. Quem pensa ao contrário, não percebe. Mais sobre Juliana no blog:
http://reinodechulemeuzin.blogspot.com.br/
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