quarta-feira, 23 de julho de 2025

.: Novo estudo liga obra de Machado de Assis à origem da psicanálise


E se Freud fosse o segundo a chegar? Em novo livro, Adelmo Marcos Rossi revela que Machado de Assis pode ter fundado, pela literatura, uma psicologia conceitual antes de a psicanálise existir. Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação
 
Machado de Assis chegou antes. Antes de a psicanálise ser batizada por Freud, antes do narcisismo virar diagnóstico, antes mesmo de a ciência querer mapear os labirintos da alma humana, o "Bruxo do Cosme Velho" já desfiava, com ironia e precisão cirúrgica, as camadas do inconsciente coletivo - mesmo sem nomeá-lo assim. Em "O Imortal Machado de Assis - Autor de Si Mesmo", o engenheiro, psicólogo e filósofo Adelmo Marcos Rossi desmonta o altar europeu da teoria psicanalítica e aponta: o criador de "Dom Casmurro" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas" já operava, pela ficção, conceitos que Freud viria a descobrir décadas depois. Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, Adelmo discute narcisismo, escuta clínica, racismo estrutural no campo do saber e lança uma pergunta incômoda: será que estamos prontos para reconhecer que o maior psicanalista brasileiro morreu em 1908 - sem nunca ter ouvido falar de Viena? Compre o livro "O Imortal Machado de Assis - Autor de Si Mesmo" neste link.


Resenhando.com - Ao sugerir que Machado de Assis chegou a conceitos psicanalíticos antes de Freud, você está prestes a reescrever a história da psicanálise ou apenas dar um puxão de orelha no eurocentrismo acadêmico?
Adelmo Marcos Rossi - A pretensão é que Machado de Assis venha a ser lido como ele escreveu, e escreveu informando que no futuro, “cuido que por volta de 2222”, uma data qualquer, “um pequeno livro” seria publicado com sua “psicologia nova”. Quer dizer, a pretensão é que ele venha a ser lido como o criador de uma psicologia na qual “reúno em mim mesmo a teoria e a prática”. Escritor sutil, Machado não queria ser visto como cientista, propondo declaradamente uma psicologia nova, mas o fez por meio de personagens. Até teria sido perigoso que ele, literariamente, se mostrasse como estando conceituando os segredos que movem as relações humanas.


Resenhando.com - Machado de Assis, negro, epiléptico, pobre e autodidata, é muitas vezes reduzido a um “homem do século XIX” domesticado. A leitura dele propõe um autor que enxergou a alma humana mais fundo do que Freud. Por que ainda temos tanto medo de admitir a genialidade precoce dos nossos? 
Adelmo Marcos Rossi - O gênio não é facilmente reconhecível dentro do seu tempo, e menos reconhecível ainda quando ele, intencionalmente, esconde no subtexto as suas pretensões, ainda que informe que será encontrado. Também é comum afirmarem que o “eu lírico” não é o autor da obra, o disfarce em personagens não tem validade do ponto de vista científico. Resumindo: para fazer ciência, o pensador deve ser claro e reto, e não publicar uma nova ciência de modo escondido. Machado, também é importante dizer, não desejava ser visto como narcisista demais, vaidoso demais, pelo risco de ser severamente combatido. Sob esse aspecto, passar despercebido foi mais seguro para ele.


Resenhando.com - Você afirma que o narcisismo é estruturante na obra de Machado. A pergunta que não quer calar: Capitu amava Bentinho ou apenas amava ser amada?
Adelmo Marcos Rossi - Machado não deixou dúvida nenhuma, o leitor é quem não soube ler, basta ir à obra:
“Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:
— Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada”.
Ou seja, se Bento Santiago “acreditasse em Deus”, “a vontade de Deus explicaria tudo”, inclusive “a causalidade da semelhança”, e Capitu poderia ter quantos filhos quisesse, todos com as feições dos amigos, porque Deus explica tudo. Machado, aqui, estava fazendo uma brincadeira, empregando o recurso da Petalogia, o humor, tal como Alcides Maya notou em “Machados de Assis: Algumas Notas sobre o Humour” (1912).


Resenhando.com - Há quem diga que Brás Cubas é um morto mais lúcido do que muito vivo teórico. Se ele fosse seu paciente, que diagnóstico você arriscaria dar? Borderline? Narcisista perverso? Cínico funcional?
Adelmo Marcos Rossi - Machado era, até 1880, um escritor morto literariamente, um autor que já era defunto. Seus quatro livros anteriores, "Ressurreição", "A Mão e a Luva", "Helena" e "Iaiá Garcia", não teriam dado vida póstuma ao autor. Por isso, "Memórias Póstumas", e para isso ele tinha que criar algo espantoso, e criou a ideia de um "defunto autor", o autor que já era defunto virou defunto autor. Estando morto, poderia revelar os segredos sem ser condenado. Machado trouxe uma nota para Brás Cubas: “Capistrano de Abreu, noticiando a publicação do livro, perguntava: ‘As Memórias Póstumas de Brás Cubas são um romance?’”. Não podia ser, pois era um romance em que o amor era um adultério. Lobo Neves nunca aparece galanteando sua esposa Virgília, quem a namora é o amigo, ilustrando mais um conceito em Machado: Pílades e Orestes, do mito grego dos amigos inseparáveis. Em Freud, os “amigos inseparáveis” seria o par de confidentes, analisando e analista, pela confissão baseada no amor de transferência. Só que Freud se esqueceu de considerar o ódio de transferência: é comum o amor terminar em ódio, em traição, crime etc.


Resenhando.com - Em algum momento do seu mergulho nas obras machadianas você se sentiu espionado por ele? Como se o próprio Machado, com sua pena afiada, estivesse analisando você durante a leitura?
Adelmo Marcos Rossi - Quem reclamou disso foi o Mário de Andrade, no centenário de 1939: “Ele foi um homem que me desagrada e que eu não desejaria para o meu convívio”. Carlos Drummond de Andrade, em 1925, reclamou dizendo que Machado era “perverso, profundo e ardiloso”, sem informar o motivo. De fato, Machado revelou o lado perverso, profundo e ardiloso das relações humanas, e isso incomodou a muita gente que não o compreendeu.


Resenhando.com - Freud leu os clássicos gregos. Machado lia Shakespeare e Molière, mas também conversava com os delírios da alma carioca. O que o ambiente cultural brasileiro oferece à psicanálise que Viena talvez nunca ofereceu?
Adelmo Marcos Rossi - O ambiente cultural brasileiro sempre ofereceu a malandragem, a esperteza, a malícia, também tão criticada, e motivo da enorme diferença social entre os espertos e os malandros que vivem da malandragem se contentando com o carnaval e o futebol.


Resenhando.com - Você é engenheiro civil, virou psicólogo, filósofo e agora investiga as camadas mais profundas de um escritor morto há mais de um século. O que constrói mais: o concreto armado ou a literatura psicanalítica?
Adelmo Marcos Rossi - O concreto armado me permitiu ganhar dinheiro na vida prática, dando-me tempo suficiente para retornar para a universidade e cursar uma nova graduação, agora, em psicologia, além do acompanhamento psicanalítico, e assim, estudar as profundezas da alma humana. Esse caminho ajudou-me a evitar enlouquecer, cometer crimes, e compreender, primeiro, o erro do Narcisismo em Freud, que somente o descobriu em 1914, e, segundo, a descoberta dos conceitos psicológicos em Machado correspondentes aos conceitos depois criados por Freud atendendo doentes na clínica.


Resenhando.com - Há alguma ideia que você encontrou em Machado e que Freud nunca ousou formular? Algo que o "Bruxo do Cosme Velho" teria escrito com toda a sutileza e que escapou ao austero vienense?
Adelmo Marcos Rossi - Como Machado trabalha com a desconfiança no ser humano, ele era menos ingênuo, em acreditar nas relações, do que Freud. Ele empregou de modo repetido o conceito do cínico Diógenes, inexistente em Freud, Diógenes procurava um homem digno de confiança. Há no livro um capítulo, “Lanterna de Diógenes”, que trata dessa questão. A relação “Pílades e Orestes”, de confiança, entre Freud e Jung, terminou em ódio. O conceito de Espelho, “a palavra espelha a alma”, também a alma exterior que sustenta a alma interna, não existia em Freud, embora tivesse sido denotada por Jacques Lacan, tal como no artigo “O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu”.


Resenhando.com - O livro se chama "O Imortal Machado de Assis - Autor de Si Mesmo". Se Freud é o pai da psicanálise, Machado seria o quê? Um avô ilegítimo? Um irmão bastardo que nunca foi convidado para a foto de família?
Adelmo Marcos Rossi - Como Machado tinha consciência do que estava fazendo, quer dizer, não foi por acaso que ele deixou os conceitos, que foram encontrados, então, pode-se dizer que, se depois não tivesse aparecido Freud, que ele não sabia que surgiria, então, Machado teria sido o primeiro e único a ter inventado o que José Miguel Wisnik intitulou como “Machado Psicanalista Avant la Lettre”, em 25 de outubro de 2019. Machado nunca poderia imaginar que surgiria um médico literato disposto a escutar as intimidades da alma para localizar nelas a fonte das doenças, e fazer isso citando os grandes pensadores. Devo acrescentar que somente descobri que em Machado existem conceitos correlatos aos de Freud naturalmente após tê-los estudado em Freud. Sem o estudo de Freud, eu jamais os teria visto.


Resenhando.com - Em um mundo dominado por algoritmos, pressa e diagnósticos de 15 minutos, o que os leitores de hoje têm a ganhar com a escuta literária e clínica de um autor que ainda escreve para a alma de quem não tem pressa?
Adelmo Marcos Rossi - Segundo informou uma gerente da Livraria Leitura, está havendo uma intensa procura pela obra de Machado, porém, a menos que estudem “O Imortal Machado de Assis - Autor de Si Mesmo”, creio que continuarão a ler Machado como sempre foi lido por leitores comuns, e incluindo especialistas, ou seja, sem descobrir a “psicologia nova” que Machado escondeu por entre as linhas. Ler a obra de Machado tendo em mente os conceitos Pílades e Orestes, Travessia do Rubicon, Prometeu no Cáucaso, Similia similibus curantur, Caiporismo, o tema central da Vaidade, modifica completamente o modo de lê-lo. É como você ver um filme depois de ter visto os comentários do diretor. Uma “análise”, na verdade, é isso: tirar do tumulto os conceitos ocultos que o regem. Todos nós vivemos a experiência, sem saber que nela se escondem os conceitos do psiquismo apresentados por Machado e depois por Freud.


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