terça-feira, 22 de julho de 2025

.: Giancarlo Giannelli e a urgência de fotografar o que está desaparecendo


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação

Entre a floresta e o esquecimento, um clique. Foi assim que o fotógrafo e jornalista Giancarlo Giannelli escolheu contrariar o silêncio que recobre os rios da Amazônia como uma névoa de abandono. No livro "Amazônia - Rio Tapajós", não há apenas retratos. Ele se envolve e se contradiz para se entregar ao ritmo de uma realidade que a maioria dos brasileiros jamais ousou encarar de perto.

O que surgiu como um projeto de saúde itinerante virou poesia visual, crítica social e uma espécie de elegia à resistência dos povos ribeirinhos e indígenas. Giannelli, que já circulou por bastidores de shows, convenções corporativas e corredores do poder, agora finca os pés na lama - e revela o Brasil que escorre pelas bordas. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, o fotógrafo encara perguntas que vão da ética do olhar à política do esquecimento. O resultado é um retrato em palavras: ora nítido, ora borrado, mas sempre urgente.


Resenhando.com - "Amazônia - Rio Tapajós" nasce da urgência de documentar uma Amazônia que está mudando rápido demais. O que mais mudou em você depois de encarar o silêncio profundo da floresta e o barulho ensurdecedor do abandono estatal?
Giancarlo Giannelli - 
Minhas interpretações têm mudado muito desde os 40 anos de idade, o que já soma 14 anos... Encaro o homem como parte do universo, e não o contrário. Logo, a urgência é algo humano, mas não universal. Como alguém que pensa, penso que seja natural aceitar a emergência desses fatos ativados pela ação humana e procurar, mediante uma razoabilidade, manter o status quo original do meio ambiente, digamos que algo de um milênio atrás. Alimentar a vida é também parte do homem, e parece-me que ele tem conseguido criar fome até mesmo ao meio ambiente, que passou a se alimentar de águas poluídas, materiais radioativos dispersos por aí, afora a utilização de águas profundas, que não serão refeitas tão cedo, pelo agrobusiness, que ocasionalmente servem somente ao propósito enriquecedor de um grupo, mas que não garante o sustento de milhares de outros. O silêncio, então, é só uma resposta espontânea daqueles que o homem calou única e exclusivamente por meios que se desenvolveram principalmente a partir do século XX, mas que foram sendo construídos intelectualmente nos séculos anteriores, dentro do pensamento dominantemente higienista. O abandono estatal não deixa de ser também uma ação humana, que, ao invés de servir ao povo, serve ao controle financeiro de uma elite que emprega políticos para trabalharem em benefício desses grupos financeiros, onde os fins justificam os meios... A classe política não é mais uma classe, deixou de ser. Passou a ser somente um meio pelo qual a elite controla o poder e, a este meio, sem nome ou CPF, recai a culpa e a responsabilidade. Nada vai mudar enquanto não houver nome e CPF atribuídos aos mandantes. Os CNPJs parecem ser sérios, mas são somente um subterfúgio dos verdadeiros nomes e CPFs na hierarquia da responsabilização.

Resenhando.com - Ao fotografar comunidades que vivem do rio e da floresta, você se deparou com um Brasil que muitos preferem ignorar. Em algum momento você sentiu vergonha de ser brasileiro?
Giancarlo Giannelli - 
Eu me deparei com povoados que, infelizmente, não possuem acesso à informação, mas, além disso, não possuem sequer o que possuem. Os locais onde estão garantindo a sobrevivência própria não garantem a eles a posse do local, senão até o momento que a tecnologia consiga alcançar aquele espaço e retirá-los, impiedosamente, de lá, sem qualquer pudor. Por enquanto, eles estão garantidos porque a classe política ainda não conseguiu viabilizar estruturas de exploração, como estradas, navegação, escolas e saúde pública. Se, por acaso, a estrutura começar a chegar, acontecerá dessas pessoas terem de sair ou virarem escravos de uma vida quase sem sentido, somente de trabalho para a rentabilidade de alguém que pode até nunca pisar ali. Curiosamente, eu não sinto vergonha de ser brasileiro, pois prefiro ser quem é explorado do que ser quem explora. Não obstante esse pensamento, sei que a minha pele tornou minha vida muito mais fácil que mais de 70% da população. Tenho orgulho do povo brasileiro e de ser brasileiro, porque, antes de ser um criminoso, é necessário saber o que é um crime, por meio de uma educação consensual, alimentação e conscientização de que a sobrevivência tem seu preço. Tenho vergonha é da elite brasileira, que tem uma difícil missão de criar um projeto de país há mais de 200 anos e, simplesmente, vendem esse projeto à exploração dos impérios, admirados primeiro por eles próprios e depois pela educação da mídia que eles financiam publicamente, para depois ser absorvida forçosamente por esse povo maltratado em sua própria casa. Educar dá trabalho e exige estrutura. É mais fácil, para eles, venderem então os recursos que, pela mão deles, passam, sem, no entanto, nunca terem tido merecimento para isso, senão a força hereditária.


Resenhando.com - O projeto Barco da Saúde levou assistência, mas também levou câmeras e olhares externos. Como equilibrar a beleza da imagem com o risco de folclorizar a miséria?
Giancarlo Giannelli - 
De fato, esse é um cuidado que tenho pessoalmente. O tempo todo, reconheço minha hereditariedade a fim de promover mudanças no conceito do que se trata, de fato, o merecimento, palavra tão desgastada e insensata nos últimos tempos. A importância de se haver um olhar externo é compartilhar histórias e condições reais, profundas e, principalmente, muito relevantes no contexto social. Não escondo de ninguém, e acho isso muito importante, que vou onde vou porque me interessa, porque me faz bem, porque é relevante para mim e entendo que, principalmente, para a minha profissão. Dentro do panorama de benfeitorias à minha carreira, sei que é um tipo de comunicação que pode reverberar socialmente a favor de um despertar social para a sociedade. Não tenho, todavia, a ilusão de que o recurso chegará para eles antes do que para mim. Evito, na prática, aproveitar-me de cenas brutas, da miséria alheia. Acho isso desnecessário, pois isso é sabido até por quem não vê essas imagens. Procuro a beleza nos mínimos detalhes da miséria como um fio de esperança e como uma poesia à solidez de caráter, alegria e fé de um povo para lá de esquecido. Penso que essa poesia tem a sutil função de quebrar paredes cardíacas normais e mais resistentes à sensibilidade, e promover o debate e a mudança ao longo do tempo por meio da arte. Fazer da minha vida uma riqueza por meio do uso da imagem da pobreza - aquela social e não financeira - não está em meus planos e acho que nunca estará.

Resenhando.com - Há uma tarja amarela na capa do livro, símbolo solar e brasileiro, segundo você. Mas e se essa cor também sugerisse um alerta? O que há de luminoso - e de perigoso - nesse amarelo?
Giancarlo Giannelli - 
Sim, uma tarja que pode chamar atenção por vários significados absorvidos na natureza, onde o amarelo e preto quase sempre significa perigo. Claro que não podemos nos ater a um significado somente, o mesmo sol que traz alegria traz também a violência, e o azul do frio traz tristeza, mas também calmaria. Vivemos em um mundo cada dia mais semiótico e, prioritariamente, o amarelo é a flora, é a alegria, é o sol, é a natureza de um país vibrante, mas que, ao mesmo tempo, pode vibrar com o mesmo poder para o lado contrário. Devemos estar atentos, sempre!

Resenhando.com - Você viveu entre os dois extremos: o glamur dos grandes eventos corporativos e o chão de terra batida das comunidades do Tapajós. Qual Giannelli te parece mais verdadeiro hoje?
Giancarlo Giannelli - 
Infelizmente, o que vemos de glamouroso nos eventos corporativos é uma construção social daquilo que querem que seja glamouroso, sem contudo o ser naturalmente. Estão todos já com essa semiótica absorvida, e o conjunto das pessoas ali, disponíveis, confere poder aos estereótipos, ratificando-os sem terem dito sim. Mas acabei de voltar da Amazônia, e lá entreguei um exemplar do meu livro ao senhor Adelmo Pimentel Cruz, cuja amizade começou a partir dele, que veio me perguntar a respeito desse trabalho social que todos ali realizavam, e como ele respeitava isso e admirava. Batemos um papo por um tempo, fiz fotos dele sendo atendido nas especialidades e tirei uma foto com ele e sua esposa segurando o livro. O valor disso é um lastro de sinceridade que tem um valor difícil de encontrar em grandes eventos, onde tudo está produzido sem a possibilidade de “falhas”, ou um realismo que deixou de existir fora do eixo íntimo familiar. É bom participar de eventos grandes, corporativos, porque todo o tempo tento resgatar conversas sinceras e mais profundas, ainda que dentro desse cenário. Mas o set de vida real de uma Amazônia nos expõe à vida verdadeira, onde se sente dor, fome, calor, mas, ao mesmo tempo, alegria intensa, prazer em ouvir pássaros e respeitá-los livremente, fora das gaiolas - porque a gaiola deles é muito maior que a nossa... O desequilíbrio produz esse resultado da separação daquilo que importa. Nós estamos presos dentro, e eles estão presos fora, assim como a cena final do filme A igualdade é branca, de Krzysztof Kieslowski. A sociedade adoecida separa e aprisiona as relações sociais, dividindo-as apenas em direita e esquerda. Nós somos muito mais que apenas isso. Mas, obviamente, não é possível dialogar com quem decidiu-se por argumentos que não ultrapassam a infantilidade.


Resenhando.com - Ao se debruçar sobre rostos anônimos, você capturou histórias que talvez nunca sejam contadas em palavras. Já pensou em abandonar o texto e deixar que a imagem diga tudo?
Giancarlo Giannelli - 
Comecei por isso, o que é o padrão dos livros fotográficos, e mesclei recentemente com o meu pensamento, porque, antes de ser uma obra universal, é uma obra minha. A partir de mim, a pessoa que interagir com a fotografia pode optar por aquilo que lhe convém. A imagem é algo que não se pode ignorar, mesmo que seja esse o desejo. O texto, sim. A partir do texto, pode haver um aprofundamento entre eu e o espectador. A proposta de manter-se no clássico livro com fotos é optar por uma figura geométrica como o quadrado, num mundo rico em formas e curvas. Já perdemos os grãos de prata redondos quando a fotografia se tornou descrita por pixels de formato quadrado. Basta! Precisamos recuperar as curvas.


Resenhando.com - A floresta, como você viu, é viva, complexa e politizada. Se a Amazônia fosse uma personagem, que adjetivos ela teria - e que tipo de governo ela elegeria?
Giancarlo Giannelli - 
O homem, em suas ações, não se sente integrante da natureza; entretanto, o é! Ainda que maltrate o meio-ambiente com todo o requinte de crueldade, o processador ambiental tratará de liquidificar e responder a seu tempo, que é bem diferente do nosso. Se será mais inóspito daqui algumas eras, outras eras tratarão de limpar o dano e reequilibrar o sistema. Pode ser que o sistema já não integre mais o homem, mas daí não nos interessa numa matéria humana. A eleição da natureza provavelmente emposse a liberdade. É muito provável que a multiplicidade de espécies não se aceite sem ressalvas, o que naturalmente nos leve aos desentendimentos, como, por exemplo, utilizar-se do peixe para lazer, de bichos selvagens para desfiles ornamentais que eles sequer compreendem, ou mesmo construir atrações motorizadas que só servem ao prazer de alguns poucos. No fundo, no fundo, se tornou muito simples avaliar a sociedade dominante: é muita falta do que fazer daqueles que nada fazem e ordenam fazerem tudo por eles...

Resenhando.com - Em tempos de redes sociais saturadas por selfies e filtros, lançar um livro de fotografia autoral é quase um ato de resistência. Ainda vale imprimir o invisível?
Giancarlo Giannelli - 
Eu creio que é mais simples que isso. É só uma natureza que não consigo controlar. Se serve a esse propósito, espero que o cumpra com qualidades boas, energizantes e, quem sabe, conscientizadoras. Uma coisa é a minha vida que acontece. A partir dela, é natural o acontecimento dela interferir numa parcela pequena de pessoas relativas a mim, dentre os quais muitos refutarão minha visão, outros irão apenas ignorar, e outros irão dialogar comigo mesmo sem me conhecer. Assim como imprimir o invisível, o diálogo no vácuo pode reverberar numa esfera social pouco atomizada.


Resenhando.com - Você se diz impactado pela forma como aquelas comunidades vivem. Mas o que mais o assustou: o que falta para eles ou o que sobra para nós?
Giancarlo Giannelli - 
Diferentemente de indígenas sem contato com a natureza, eles começam a degustar o sabor da desilusão social ao experimentarem uma vida que não é a deles, cada dia mais digital, até mesmo nesses locais mal urbanizados. As soluções artísticas tratam de filmes de ficção, em romances que não fazem sentido, em troféus que envergonham, em crenças que tiram o toque da mão na realidade e transformam o virtual em pura realidade. A criação da imagem de super-homens ilude, de forma massificada, a sociedade que deveria se preocupar mais com a obscenidade da fome que da pornografia, como disse certa vez José Saramago. Damos nossos lastros à elite em troca de vida virtual, likes. Ou seja, sobra para eles ainda um lastro de vida que, em breve, também lhes será tomado em troca de likes... Na prática, o que acontece é que saúde e educação não chegam para eles. Tomam água do rio, onde a correnteza limpa um pouco as sujeiras, mas nas margens, cheias de motores de barcos eliminando diesel neste momento, ainda com toda a sujeira dos bichos ali dividindo o espaço.


Resenhando.com - Se fosse possível colocar uma única imagem deste livro em todos os painéis de LED do Brasil por um dia, qual seria - e que legenda ela teria?
Giancarlo Giannelli - Creio que esse livro não tem uma grande foto que sintetize o todo. Penso que, de certa maneira, uma fotografia apoia a fluidez da outra e, assim, sucessivamente a cada página. É mais ou menos o caminho da floresta, os pássaros, os rios, os lagos, a água na pele, os sulcos das águas na floresta, o que fica sob a sombra da copa da árvore iluminada pelo sol. Assim sendo, se tivesse de eleger, como me propôs, eu elegeria a fotografia da página 32, na comunidade Enseada do Amorim, onde o senhor Raimundo Alves é exposto com toda essa síntese no rosto: a mata, a alegria, o sol, a noite, a procriação, o vento, a água, os costumes, os afluentes, as estrelas e tudo mais. Para a legenda, eu manteria o meu padrão poético, que mistura a visão da imagem ditada pelas letras sob uma atmosfera onírica, algo como segue na legenda da foto: “Aqui jaz a memória de um momento em que o rio encontrou o oceano, alimentou os seres, fez crescer a mata, enrugou o homem após conhecer o amor, escureceu a pele, mas, infelizmente foi criado, morto e sepultado ao oitavo dia por falta de informação, fraternidade e compaixão".

Postagem mais antiga → Página inicial

0 comments:

Postar um comentário

Deixe-nos uma mensagem.

Tecnologia do Blogger.