Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: João Caldas F.°
Em tempos de efemeridades, é sempre curioso - e necessário - quando uma atriz decide parar tudo para escavar o tempo. Luciana Carnieli escreveu e interpreta "Uma Rapsódia para Sarah Bernhardt", mais vai além disso: revive, em carne, voz e memória, o legado da mulher que, ao redefinir o que era ser atriz no século XIX, ainda incomoda o século XXI.
Com direção de Elias Andreato e trilha sonora que reverbera compositoras esquecidas pela história, o espetáculo colocou em cena duas mulheres: Sarah Bernhardt, a lendária, e uma atriz brasileira contemporânea que se reconhece nela. Entre uma e outra, o tempo se dobra e o palco vira algo sagrado. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, Luciana Carnieli fala sobre teatro, envelhecimento, criação, fantasmas e a insistência corajosa de não se calar quando o pano cai.
Resenhando.com - Ao dar voz a Sarah Bernhardt no Brasil de 2025, você acredita estar
dialogando com o espírito da atriz francesa - ou exorcizando
fantasmas seus?
Luciana Carnieli - Acredito estar dialogando com o público sobre o Teatro e a trajetória
histórica das mulheres nessa arte. E meu ponto de partida é a vida de Sarah
Bernhardt.
Resenhando.com - Sarah Bernhardt perdeu uma perna. A atriz brasileira perde o quê,
hoje, para continuar de pé no palco?
Luciana Carnieli - Sarah teve um problema de saúde bastante sério e lutou bravamente por
manter-se ativa no palco, mesmo após a perda da perna. Mais do
que pensar propriamente em “perdas”, o paralelo que uma atriz brasileira
contemporânea pode fazer com esse fato da vida de Sarah está na
resistência e na força pra superação das dificuldades, quaisquer que sejam.
Resenhando.com - A peça fala de etarismo. Você sente que o teatro também passou a
exigir das atrizes uma “eterna juventude” instagramável, ou ainda
há espaço para rugas e profundidade? Por quê?
Luciana Carnieli - O etarismo existe, sim. A eterna juventude é extremamente
bem-vinda. Mas o Teatro é como a vida: o efêmero é inevitável... as rugas
são inevitáveis... E você pode escolher ter “profundidade” ou não.
Resenhando.com - Como autora e intérprete, qual foi o momento em que Sarah
Bernhardt deixou de ser personagem e virou espelho?
Luciana Carnieli - Sarah é sempre uma personagem para mim. Aliás, uma personagem
maravilhosa! Mas acredito que todos os atores e atrizes são um pouco
“Sarah Bernhardt” quando enfrentam o medo. Medo do público, das
limitações, da vaidade e da falta de oportunidades pra continuar no
caminho da arte.
Resenhando.com - Você já interpretou Cacilda Becker em “Meu Abajur de Injeção” e
agora encarna Sarah Bernhardt. O que a atrai tanto em atrizes que já
partiram?
Luciana Carnieli - Tanto Cacilda como Sarah foram admiráveis, marcaram época e fizeram
história na arte do Teatro. Impossível não se apaixonar por essas mulheres
e querer dialogar teatralmente com o público sobre elas.
Resenhando.com - Sarah foi irreverente, escandalosa, revolucionária. Se ela surgisse
hoje, você acredita que seria cancelada ou idolatrada?
Luciana Carnieli - Sarah foi extremamente inteligente pra lidar com a parte “celebridade”
de sua vida. Acredito que poderia encarar muito bem tudo que envolve ser
uma celebridade de hoje, pois foi muito autêntica em suas escolhas, até
mesmo quando errava. Aposto que continuaria sendo idolatrada.
Resenhando.com - Em uma era de algoritmos e inteligência artificial, que lugar ainda
ocupa uma atriz que se expõe em cena?
Luciana Carnieli - Ocupa o lugar da arte que privilegia o contato humano, a troca
direta entre palco e plateia. Pode ser que um dia isso acabe, mas ainda tem
muita gente que adora! Gente que gosta de estar no palco e gente que
gosta de estar na plateia, frente ao ator, à atriz. E esse encontro é muito
valioso e prazeroso.
Resenhando.com - Você já brilhou em musicais, dramas clássicos e comédias. Criar um
solo sobre Sarah Bernhardt foi um grito de liberdade artística... ou
um ato de sobrevivência?
Luciana Carnieli - Criar, para mim, é sempre um ato de liberdade e também, de
sobrevivência, pois vivo do meu ofício. Mas essa criação nasceu para além
disso. Veio sem querer, a partir de uma pesquisa que foi se tornando
fascinante. E foi do aprofundamento dessa pesquisa, fazendo paralelos com
nosso tempo, que revolvi criar um espetáculo sobre Sarah. Uma leitura
subjetiva de quem foi Sarah. Por isso chamo o espetáculo de “Rapsódia”.
São recortes, impressões, sobre uma personalidade histórica. E o encontro
com o diretor Elias Andreato foi fundamental pra essa criação tomar a
forma poética da cena. Elias trouxe um olhar muito importante pra nossa
criação. E tudo foi sendo construído com harmonia e cumplicidade.
Resenhando.com - A trilha sonora do espetáculo traz compositoras como Lili Boulanger
e Cécile Chaminade. Foi um aceno sonoro àquelas mulheres que,
como Sarah, compunham em surdina?
Luciana Carnieli - Tanto Chaminade, quanto Boulanger não foram artistas que viveram “nas
sombras” em seu tempo. Tiveram seu espaço, embora Boulanger tivesse
uma vida bastante curta. A ideia do maestro João Maurício Galindo de
trazê-las para essa peça veio justamente por serem mulheres
contemporâneas de Sarah e, também, grandes artistas, com criações
belíssimas. A trilha foi muito importante para mim durante a criação do
espetáculo. E entrelaça uma sonoridade perfeita à narrativa.
Resenhando.com - Se Sarah Bernhardt assistisse à sua peça, o que você pensa que ela
diria... e o que você teria coragem de responder?
Luciana Carnieli - Jamais poderia imaginar o que ela diria... Mas, se eu a encontrasse, faria
uma reverência. E assim agradeceria a oportunidade. De tanto...!
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