sábado, 13 de setembro de 2025

.: Editora Janela Amarela recoloca Julia Lopes de Almeida no mapa da literatura


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com.

Julia Lopes de Almeida nasceu em 1862 e atravessou o fim do século XIX e o início do XX como uma das escritoras mais ativas e influentes do Brasil. Jornalista, romancista, dramaturga, cronista e defensora do voto feminino, foi voz incômoda em uma sociedade marcada pelo patriarcado - e, ainda assim, acabou relegada ao esquecimento por décadas. Em 2025, 163 anos após ter nascido, a força da obra dessa artista retorna às mãos dos leitores graças ao trabalho da Janela Amarela Editora, comandada por Carol Engel e Ana Maria Leite Barbosa, que acaba de completar um feito inédito: reunir em catálogo todos os romances publicados em vida por Julia, além de novelas e livros infantis.

Mais do que reeditar, as editoras assumem uma missão: devolver Julia ao lugar de destaque que sempre lhe coube, sem que o gesto se limite a uma homenagem pontual ou simbólica. Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, Carol Engel fala sobre apagamento literário, silenciamento de vozes femininas, as escolhas editoriais que tornam a leitura de Julia acessível ao público contemporâneo e a atualidade inquietante de uma autora que, em 1902, já denunciava as falências morais e econômicas que ainda rondam o Brasil de 2025.


Resenhando.com - Julia Lopes de Almeida foi preterida na fundação da Academia Brasileira de Letras por ser mulher. Hoje, quando vemos homenagens tardias, você acha que estamos celebrando Julia ou apenas limpando a imagem de uma instituição que historicamente excluiu mulheres?
Carol Engel - Ao fazer esse tipo de análise, é importante levarmos em consideração o contexto, o local, a época. A sociedade brasileira de 1897 era marcada pelo patriarcalismo e pela exclusão da mulher da vida política, elas eram relegadas exclusivamente a vida doméstica. Partindo desse conhecimento, não é de estranhar que uma instituição criada naquele período seguisse os mesmos padrões sociais. Foi a sociedade que historicamente excluiu as mulheres, a ABL apenas espelhou o comportamento da época. Homenagens, sejam elas tardias ou não, são sempre válidas, principalmente quando usadas para demonstrar de admiração e respeito. É uma oportunidade de dar destaque a um nome/ uma personalidade que merece reconhecimento, fazer este nome, e seus feitos, conhecido por novas gerações. Qualquer homenagem que se faça à Julia Lopes de Almeida, que dê destaque ao seu trabalho e reverbere seu nome, é válido, desde que não seja um ação pontual, simbólica, mas uma ação contínua de perpetuação de seu nome, seu trabalho e sua arte.


Resenhando.com - O resgate de Julia passa pelo gesto editorial de atualizar ortografia e contextualizar termos. Mas até que ponto “modernizar” a autora não corre o risco de domesticar sua força original e a rebeldia de sua escrita?
Carol Engel - Há uma diferença entre modernizar a leitura e atualizar a ortografia. Modernizar seria trazer termos atuais para o texto, não trabalhamos desta forma, mantemos o texto original, integral. O que fazemos é atualizar a ortografia. A língua portuguesa mudou muito, não podemos publicar livros com “bibliotheca", “commentou", como eram escritos na época. Essa atualização não enfraquece a força da criação literária, mas garante uma leitura mais acessível. O mesmo trabalho já é feito em autores clássicos consagrados como Machado de Assis e José de Alencar, por exemplo. As notas de roda pé foram pensadas nos leitores contemporâneos menos habituados a leitura de textos clássicos, cujo vocabulário pode, muitas vezes, criar um distanciamento. Servem para contextualizar e enriquecer a experiência de leitura, para que o leitor mantenha o interesse no texto, mesmo que se depare com algum termo ou palavra que desconheça.


Resenhando.com - O esquecimento de Julia e de tantas autoras brasileiras não foi acidental. Quem lucrou com esse apagamento literário, e quem perde quando suas vozes voltam a circular?
Carol Engel - Adoraria descobrir essa resposta. Espero que o trabalho de resgate literário que temos feito estimule pesquisadores a desvendar esse mistério e descobrir os motivos deste apagamento. De maneira bastante simplista podemos verificar uma consolidação de um mercado editorial calcado em vozes exclusivamente masculinas. O que certo, é que podemos é definir quem perdeu com esse apagamento: perderam os leitores, privados desta diversidade de vozes; perderam as mulheres, que não viam retratada na literatura, modelos e referencias escritos por outras mulheres, e perdeu também a proporia história da literatura brasileira, que ficou empobrecida sem estes registros.


Resenhando.com - Julia defendia voto feminino, acesso popular à cultura, educação para mulheres e ainda escrevia crônicas sobre jardinagem. O que isso revela sobre a multiplicidade da escritora e a nossa mania de reduzir autoras a uma única faceta?
Carol Engel - A tendência reducionista não é “privilégio” da literatura, abarca muitos setores e ainda hoje lutamos contra ele. Julia, com sua multiplicidade dialogava com diferentes públicos, sem esforço, mostrava que não precisava ser apenas “OU”, era mulher E escritora E jornalista E esposa E mãe. Que nos inspiremos em Julia e aceitemos as diferentes facetas, nossas e dos outros. Não precisamos ser apenas um, mas precisamos respeitar os múltiplos que podemos ser.


Resenhando.com - Ao reeditar todos os romances de Julia, a Janela Amarela realizou um feito inédito. Mas qual foi o momento mais surpreendente do processo: descobrir a força da obra ou perceber o abismo da indiferença cultural que a engoliu por décadas?
Carol Engel - Cada nova obra de Julia que trabalhamos foi uma surpresa. Por variados motivos: A dificuldade de acesso de determinados títulos. A variedade de temas. A composição das personagens e suas complexidades, e mesclado a tudo isso, o inacreditável apagamento do nome da autora da história, da história literária brasileira.


Resenhando.com - Quando se fala em “resgate literário”, muitas vezes pensamos em arqueologia. Mas Julia não parece uma autora morta: as personagens femininas dela e as críticas sociais ainda respiram no texto da autora. Você diria que Julia foi “apagada” ou que ela sempre esteve à espreita, esperando ser relida?
Carol Engel - Essa pergunta é curiosa e mostra, do ponto de vista literário, como a bagagem do leitor influência na recepção da mensagem. Quando falamos de “resgate literário” focamos mais na ideia de recuperação e liberdade, mas é interessante perceber que outros percebem pelo viés arqueológico... curioso, né!? Acredito que o desejo de todo o escritor é ser lido, e com Julia não pode ser diferente. Ainda que tenha sido “temporariamente apagada” a força de sua escrita manteve-se latente e agora pode ser redescoberta.


Resenhando.com - A comparação com Jane Austen e George Sand é recorrente. Mas será que não é uma violência comparar Julia apenas pelo viés europeu, em vez de inseri-la numa tradição afro-latino-americana de escritoras invisibilizadas?
Carol Engel - Não diria compara, mas equiparar, em qualidade, talento e produção. Infelizmente, precisamos dar como referência nomes europeus para exemplificar os talentos importantes de nossa literatura que foram esquecidos e silenciados. O ideal, e assim espero, é que, num futuro breve, possamos dar como referência nomes como o de Julia como exemplo referencial literário. Será maravilhoso ouvir: “o texto dela é marcante como os da Julia Lopes de Almeida...”, “o perfil deste personagem lembra muito os da Chrysanthème...” ou ainda “segue um estilo da Ignez Sabino...” mas para isso estas escritoras precisam voltar a ser conhecidas e reconhecidas por suas criações. Este é o trabalho que está acontecendo agora, com o resgate e relançamento destas obras e destas autoras.


Resenhando.com - Se Julia fosse publicada hoje, em pleno século XXI, com redes sociais, podcasts e clubes de leitura feministas, você acredita que ela seria uma estrela literária ou ainda assim encontraria os mesmos muros de silenciamento?
Carol Engel - Como sonhar é de graça, às vezes me pego imaginando como cada uma das autoras que redescobrimos seria se vivessem nos tempos atuais. É um exercício curioso... No caso de Julia, acho que ela seria uma estrela literária, sim, mas adaptada aos novos formatos, não ia se limitar apenas a publicação de livros, as redes sociais permitiriam uma interação estreita com seus leitores. Teria uma newsletter, onde ia publicar crônicas, e um podcast, para debater com convidados sobre temas da atualidade. Continuaria falando sem medo, batalhando pelas pautas que defendia... até por isso, às vezes, seria cancelada, mas sem medo continuaria defendendo suas ideias.


Resenhando.com - Há quem diga que reeditar Julia é um ato de reparação histórica. Mas reparação para quem? Para Julia, que já não está aqui, ou para os leitores que foram privados de conhecê-la?
Carol Engel - Para Julia é uma reparação simbólica, à sua memória. Em vida, como escritora, ela teve reconhecimento, o silenciamento de sua obra aconteceu depois de sua morte. É, portanto, uma reparação à nossa história da literária e aos leitores que podem, agora, ter acesso a este conteúdo.


Resenhando.com - Julia falava de falência econômica e moral em 1902. O Brasil de 2025, atolado em crises sucessivas, ainda não saiu da mesma encruzilhada? O que a leitura dela nos diz sobre o eterno retorno das nossas ruínas sociais?
Carol Engel - Romances, ainda que sejam histórias ficcionais, são um retrato de nossa sociedade e registros como os que Julia Lopes de Almeida faz em seus livros, servem como uma ferramenta crítica, nos lembra o quanto ainda temos que mudar, melhorar. Muitos dos problemas de outrora seguem nos assombrando, muito ainda precisa ser feito. Se as crises econômicas mudam, as questões morais parecem apenas se ajustar aos novos tempos. As obras de Julia podem ser vistas como uma sinal de alerta, será que 100 anos não foram suficientes para corrigir velhas falhas e entender com ser ou fazer melhor?

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