Entre o épico medieval de Ferrabrás, os cordéis de Leandro Gomes de Barros e as panelas fumegantes da avó dele, Dagmar, no Ceará, o poeta compõe um caleidoscópio em que o feminino não é metáfora distante, mas presença íntima. A cada resposta, ele mostra que a “destemida” não nasceu apenas da imaginação, mas do sangue, do suor e da cabidela feita no alpendre.
Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, Daniel Perroni Ratto fala sobre amadurecimento, erros reconhecidos, a arrogância masculina que precisa ser desarmada, e a poesia como possível antídoto - ainda que microscópico - contra a violência de gênero. Com a coragem de quem sabe que a palavra nunca basta, mas sempre insiste, Ratto transforma lembrança em verso e transforma verso em corpo.
Daniel Perroni Ratto - Na verdade, se reparar, nunca disse que “Destemida Ferrabraz” traz à tona. A poeta e produtora cultural Marta Pinheiro, no posfácio e quarta capa, a escritora, poeta finalista do Jabuti, Íris Cavalcante e o icônico professor da UFC e jornalista, Ronaldo Salgado, tiveram a mesma leitura em seus textos, pois o livro assim se apresenta, creio. Sobre calar a própria voz, a gente aprende na lida, na vida, na família. A capa do livro, linda pintura da escritora e artista plástica, Deborah Dornellas, representa as matriarcas da minha família, do lado paterno, lá no Ceará. Então, desde pequeno, o respeito e a reverência. Também aprendemos a olhar para nossos próprios erros, a reconhecê-los e não querer mais fazê-los, pois o machismo é estrutural, é milenar. Esse processo é um aprendizado de toda uma vida, até pegar aquela carona para além-mar.
Resenhando.com - “Ferrabraz” é nome de cavalo bravo, de serra do Sul, de personagem mitológico. Em que medida essa destemida figura feminina do título é uma invenção poética e em que medida ela é autobiográfica?
Resenhando.com - Em tempos em que o termo “lugar de fala” gera ruído e medo entre escritores homens, você decidiu mergulhar de cabeça numa poética feminina. Em algum momento pensou: “isso pode dar ruim”?
Daniel Perroni Ratto - Nunca pensei se podia dar errado. O que seria do poeta ou de qualquer artista se não pudéssemos sentir a poesia no outro, no mundo, no universo?
Daniel Perroni Ratto - "Destemida Ferrabraz" representa o corpo do etéreo, da matéria escura, dos átomos, da poesia.
Daniel Perroni Ratto - Sim, pode ser, também, reverência, já dita em outra resposta. Insubordinação sim, ao status quo milenar de dominância do macho-alfa. Por que você acha que as mulheres se irritariam com o livro?
Daniel Perroni Ratto - Aconteceu aquela coisa de amadurecer, saca? Tudo tem sua hora, não é mesmo? O sentimento e a intuição vão fluindo do subconsciente (há quem diga que não existe), ao mesmo tempo em que a cognição se expande. Alguns livros que li durante a adolescência e não entendi porra nenhuma, quando adulto, os li novamente e, entendi, compreendi e senti.
Daniel Perroni Ratto - Acredito sim. Mesmo que em nanoescala. Um grão de areia. Claro que entre os pares, a literatura ainda é muito machista. Lembro de estar numa mesa de boteco, há uns dez anos, com a poeta Alice Ruiz e o poeta Lau Siqueira, em São Paulo. Conversávamos exatamente sobre isso e eu comentei que o termo “poetisa” foi criado no século XIX por homens poetas, com uma conotação depreciativa ou condescendente. Falei do poema de Cecília Meireles, “Motivo”, onde ela se afirma poeta: “Eu canto porque o instante existe/e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste:/sou poeta”. Nessa hora, a Alice falou que era isso mesmo, a palavra poeta já era uma palavra feminina e o homem, se quiser, que seja poeto.
Daniel Perroni Ratto - Se a Destemida Ferrabraz que deu nome ao livro, minha avó Dagmar Ferreira, lá do fogão a lenha do alpendre do sítio, cozinhando uma galinha a cabidela, diria: “Niel, pegue o sangue que deixei ali e um mói de coentro no terreiro”. Galinha a cabidela sem sangue e sem coentro inexiste, saca?
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