domingo, 5 de outubro de 2025

.: Kikito na mochila e boletos na bolsa: Isabel Guéron fala sobre as entressafras



Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.comFoto: Manuel Águas

Atriz e escritora, Isabel Guéron volta aos palcos com o monólogo "Entressafra", uma comédia de sutilezas e dores, construída a partir do livro homônimo escrito por ela. No palco do Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, ao longo das quatro quartas-feiras de outubro, 8, 15, 22 e 29, sempre às 20h00, ela transforma o que há de mais comum - boletos, maternidade, reuniões de pais, ônibus lotados e silêncios - em arte.

Com humor e delicadeza, Isabel expõe a rotina sem filtro de uma mulher-atriz de mais de 40 anos, desafiando o estereótipo do glamur e colocando o público diante do avesso do ofício. A conversa a seguir, exclusiva para o portal Resenhando.com, revela bastidores da peça, o equilíbrio entre a artista e a mãe, a parceria familiar em cena e as cicatrizes das “entressafras” da vida. Um diálogo sobre arte, sobrevivência e o riso como forma de resistência.

Resenhando.com - "Entressafra" mostra a vida sem filtro de uma atriz com mais de 40 anos. Qual foi a situação mais “glamurosa” da sua vida que, por dentro, era puro caos e boleto atrasado?
Isabel Guéron -
Quando ganhei em Gramado, foi uma surpresa. Eu não ia ao festival, estava há duas semanas de uma estreia no teatro, Depois da Chuva, que eu fiz com direção do Thierry Tremouroux, com ensaios a todo vapor. Mas a produção do filme me convenceu a ficar só dois dias, eu pedi dispensa dos ensaios e fui. Cheguei no dia da exibição do "Buffo Spallanzani", o filme que eu fiz, e no dia seguinte já era a premiação! Eu não tinha visto os filmes concorrentes, estava totalmente sem expectativa. Aí, de repente, meu nome foi anunciado! Tomei um susto! No caminho da minha cadeira até o palco eu só pensava que não tinha preparado nada pra dizer. Quem me entregou o prêmio foi o Othon Bastos! Foi uma emoção sem fim, noite de gala, fotos, festa de cinema. No dia seguinte voltei correndo pro Rio. Fui do aeroporto pro ensaio com o Kikito na mochila (risos). Aí fiz a graça de no meio do ensaio tirar um Kikito da mochila, assim como quem não quer nada; foi uma alegria!


Resenhando.com - No palco você ri de si mesma e do ordinário. Mas e quando o cotidiano não tem graça nenhuma? Como você segura a atriz que mora dentro de você para não transformar tudo em espetáculo?
Isabel Guéron - 
Eu rio de mim mesma no palco e fora do palco. A peça fala sobre isso também: a graça das coisas que aparentemente são banais, a beleza por trás dos acontecimentos banais. E ser atriz, assim como escrever, me joga muito nesse lugar, de observadora. Uma vez, quando trabalhamos juntos, o Tony Ramos me disse que aceitou fazer o personagem quando leu uma cena singela, onde o detetive (personagem em questão) guardava um bolinho num envelope e punha na gaveta, pra lanchar depois. Ele enxergou a profundidade do personagem aí, nesse momento singelo e sem importância. Achei isso tão bonito, tão particular. A vida é assim: se revela nos detalhes. Eu vou vivendo e sendo atriz, é tudo junto. Às vezes é mesmo um espetáculo, mas na maioria do tempo a gente tá ensaiando. 


Resenhando.com - Você já ganhou um Kikito em Gramado, mas também já contou que enfrentou períodos de vazio profissional. Qual dos dois momentos foi mais difícil de encarar: o auge ou a ausência?
Isabel Guéron - 
O elogio e a crítica não podem ser levados muito a sério. É claro que o reconhecimento é uma alegria, e a entressafra pode ser muito dura. Mas eu não tenho outra opção senão continuar.


Resenhando.com - No espetáculo, a reunião de pais aparece como cena. Na vida real, já aconteceu de uma mãe ou pai te reconhecer ali como “a atriz da novela” e você ter que responder ao boletim escolar com a mesma seriedade de uma protagonista de Nelson Rodrigues?
Isabel Guéron - 
(Risos) Não, nunca aconteceu. Imagina uma personagem rodrigueana numa reunião de pais! Eu sou uma mãe mais leve... (risos).


Resenhando.com - A peça fala do ordinário, mas sua trajetória cruza com gente como Walter Lima Jr. e Maria Ribeiro. O que essas pessoas já disseram de você que não caberia num release, mas que ficou gravado na sua memória?
Isabel Guéron - 
Tenho a felicidade de ter amigos muito especiais e eles me dizem o tempo todo coisas importantes. Maria é minha parceira, amiga que eu amo, ficamos grávidas juntas as duas vezes, criamos um podcast juntas, o Isso não é Noronha foi um barato. Estamos amadurecendo juntas e temos uma relação familiar. O Walter é amigo que admiro muito, tenho profundo afeto. Já fui dirigido por ele algumas vezes e sempre tenho algo a aprender. Certa vez ele viu uma peça minha e me chamou pra um café e me disse Bel, você precisa, sua rapidez de raciocínio, sair do texto se for preciso. Ele estava reclamando do meu jeito CDF, de não querer errar e com isso me enrijecer. Tem anos isso, e eu nunca mais abri mão desse conselho. Ontem mesmo nos encontramos no caixa do mercado. Somos vizinhos!


Resenhando.com - A autoficção pode apresentar um reflexo perigoso: o que você descobriu sobre a Isabel Guerón que preferia não ter revelado ao público - mas que o palco a obrigou a escancarar?
Isabel Guéron - 
Descobri muito sobre mim escrevendo o texto. Na hora de adaptar e ensaiar eu atravessei muitos momentos. Chorei sozinha no ensaio algumas vezes e no processo de criação apresentei um esboço da peça em alguns lugares. Escola noturna, universidade, grupo de alunos de teatro. Foi importante entender o que gerava identificação nas pessoas mais diversas, escolher o que era extrapolação do âmbito pessoal. Eu não queria que fosse uma peça sobre mim, e acho que não é. Sou uma desculpa, um pretexto pra falar o que queria dizer.


Resenhando.com - Seu marido está na trilha sonora, seu filho opera o som. Família no teatro é mais companhia ou mais exposição? Alguma vez você já quis “desescalá-los” do processo criativo?
Isabel Guéron - 
Meu marido está na trilha sonora porque ele é um músico genial, sou muito fã do trabalho dele, e eu tenho essa sorte de ser casada com meu trilheiro oficial. Já trabalhar com o Joaquim é uma experiência nova. Quando a gente vê os filhos cresceram, né? E o Joca além de escrever suas músicas, está estudando teatro. Então, achei que seria uma oportunidade interessante para ele, estar dentro da equipe, encarar uma temporada. E ele estava doido pra trabalhar! Foi lindo de ver a dedicação e seriedade dele. Além da sensibilidade e companhia deliciosa! Eles sempre estiveram próximos. Quando eu fazia turnê com eles pequenos, de vez em quando, levava um filho comigo. Eu gosto dessa onda família de circo. E gosto também de viajar sozinha, de sair de casa, de ficar fora um tempo.


Resenhando.com - 
Você vive a entressafra como estado natural da existência. Mas, sinceramente: qual foi a entressafra mais dolorida, aquela que fez você cogitar largar tudo?
Isabel Guéron - 
Depois do meu primeiro filho fiquei assustada. Eu fiquei um ano e meio cuidando dele e depois foi difícil voltar. Porque não é só voltar a trabalhar, é se reencontrar depois da maternidade e ter estrutura pra deixar a criança. Aí fui fazer aulas, oficinas e fui voltando. Outro momento difícil foi a pandemia. Foi pânico total. Eu e Rodrigo somos artistas, ele trabalha com Carnaval, tudo parado. Nós, profissionais da cultura, fomos os primeiros a parar e os últimos a voltar. Eu montei estúdio caseiro e gravei um audiolivro atrás do outro pra fazer algum dinheiro, Rodrigo fazia show e aula on-line, as crianças tendo aula em casa, aquele cenário desolador no país com Bolsonaro, foi um momento que eu pensei: Acabou! Não vamos mais conseguir viver disso que a gente sabe fazer. Mas passou porque tudo passa. A gente ainda se sente meio reconstruindo, mas acho que isso é inerente.


Resenhando.com - A desigualdade social atravessa sua narrativa, do ônibus ao palco. Como atriz e cidadã, você sente que a arte que faz consegue tocar essa ferida ou, no fundo, ainda se fala para uma bolha privilegiada?
Isabel Guéron - 
Eu sou uma mulher ligada em política de modo geral. Meus pais eram professores universitários, de esquerda. Meus três irmãos trabalham com educação. Na minha casa sempre se discutiu política na mesa de jantar, todo mundo sempre tinha uma opinião sobre as coisas. É da minha natureza que as questões sociais atravessem minha vida e consequentemente meu trabalho. Mas eu tenho consciência da bolha em que vivo, e, por isso, meu esforço na dramaturgia da peça foi escapar da bolha. Talvez não escapar, porque é difícil. Mas o que reverbera aqui na minha bolha é que também pode reverberar em outros lugares? Ainda não sai do Rio com a peça. Mas o que eu mais gosto é de viajar com teatro e chegar em lugares diferentes. Jamais vou esquecer quando fui fazer uma peça com Silvio Guindane e Ângelo Paes Leme em Juazeiro, no Ceará, e a fila do teatro dava a volta na Praça. É lindo demais quando a gente consegue isso!


Resenhando.com - Se "Entressafra" fosse adaptado para a televisão - essa máquina de glamour e ilusão -, qual cena você faria questão de manter crua, sem maquiagem, para que ninguém dissesse depois: “a vida real não é assim”?
Isabel Guéron - 
Eu quero adaptar para TV! Já estou até pensando nas parcerias. Adoro a cena em que eu vou registrar minha casa no cartório. Foi uma situação tão inusitada, beirando o absurdo, que não poderia deixar de fora. Agora quem quiser ver a cena tem que ir assistir a peça no Teatro Glaucio Gill, dias 8, 15, 22 e 29 de outubro, quartas-feira. Em curtíssima temporada!

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