Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Tais Oliveira
Premiada com o livro de contos "Ruínas", a escritora Lúcia Nascimento estreia no romance com "Aqui, Ontem", publicado pela editora 7Letras, uma narrativa que se move entre a dor e a delicadeza, entre o vazio e a tentativa de preenchê-lo pela palavra. Descrito pelo poeta Wilson Alves-Bezerra como um “romance-pergunta”, o livro acompanha Alice, uma mulher que enfrenta o luto pela morte da mãe adotiva e, em meio a memórias, tenta reconstruir a própria história e a si mesma pela escrita.
Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhhando.com, a autora fala sobre a escrita como gesto de sobrevivência, o risco de transformar dor em estética, a influência da pesquisa acadêmica sobre a ficção e a tênue fronteira entre o abandono e o amor. Com sensibilidade e lucidez, ela reflete sobre o que resta de nós quando o outro parte, e sobre o poder da ficção em adiar, ainda que por instantes, o fim das coisas. Compre o livro "Aqui, Ontem", de Lúcia Nascimento, neste link.
Resenhando.com - Seu romance é descrito como um “romance-pergunta”. O que mais lhe interessa: tentar respondê-las ou deixar o leitor preso à vertigem de nunca ter respostas?
Lúcia Nascimento - Quando formulamos respostas, o final está dado. Não há mais para onde ir. Quando pensamos em perguntas, quando tudo está em aberto, contemplamos possibilidades. E é isso o que me interessa: esse é meu modo de entender o mundo, de criar esteticamente, de escrever literatura. No romance “Aqui, Ontem”, que está sendo lançado pela Editora 7Letras, tento trazer os leitores e leitoras para dentro da experiência da protagonista: ela vive o luto pela perda da mãe adotiva, está imersa nas repetições que um momento como esse causa, e é nesse cenário que ela se questiona sobre tudo que nunca chegará a saber sobre a própria vida. Meu desejo é que, mesmo quem nunca viveu uma perda dessa magnitude, consiga se conectar com o que é vivenciado, experimentado e sentido pela protagonista. A ficção, assim, não deixa de ser uma tentativa de resposta, uma tentativa de preencher os vazios que ela no fundo sabe serem impossíveis de preencher.
Resenhando.com - Alice, sua protagonista, mergulha no luto e na escrita ao mesmo tempo. Para você, escrever é um modo de sobreviver ou um jeito sofisticado de se afogar com mais consciência?
Lúcia Nascimento - Eu costumo brincar que minha versão escrita é a minha melhor versão. Sempre gostei de escrever, e desde pequena arrisquei a criação de ficções. E, sem dúvida, escrever é o meu modo preferido de refletir e de interagir com o mundo. Mas, quando me proponho a escrever um romance, a escrita como sobrevivência, aquela que faço em diários e anotações pela casa, perde espaço para um processo muito mais rigoroso de criação. Talvez minha escrita venha não de um modo sofisticado de me afogar com mais consciência, mas de pegar quem lê pela mão, com o convite para nos afogarmos juntos, porque, ao tocarmos o chão, teremos mais forças para dar um impulso e voltar à superfície. Já Alice, a protagonista de “Aqui, Ontem”, escreve como uma tentativa de ficcionalizar os vazios sobre a própria história, como tentativa de preencher com histórias aquilo que nunca vai saber.
Resenhando.com - O luto costuma ser tratado como silêncio. No seu livro, ele se transforma em linguagem. Há um risco de transformar dor em estética?
Lúcia Nascimento - Nossa sociedade tende a silenciar processos que deveriam ser vividos coletivamente e em público. Se nos calamos sobre o que sentimos e vivemos, nos fragilizamos: é o oposto do que tendemos a imaginar, já que chorar escondido nos vulnerabiliza muito mais do que contar nossas histórias e receber o apoio de outras pessoas. Quando minha mãe morreu, percebi o quão importante era dialogar com pessoas que já tinham passado pela mesma situação, porque os sentimentos experimentados são muito semelhantes, tantas vezes. A escrita do romance “Aqui, Ontem” começou bem antes da morte da minha mãe, antes de eu descobrir que ela estava doente, mas essa experiência mudou radicalmente a escrita: a sensação é de que só depois dessa vivência eu consegui encontrar uma forma que não fosse artificial para narrar o luto da minha protagonista. Então o luto real me ajudou a encontrar a forma do livro. Mas, se a escrita do luto for apenas uma tentativa de elaborar a dor, e não uma experimentação que passa pela estética da obra, há um risco grande de a escrita se tornar frágil.
Resenhando.com - Em "Aqui, Ontem", Alice procura a mãe biológica. Se você tivesse acesso a uma única história não contada da sua própria família, qual seria a pergunta que faria?
Lúcia Nascimento - Eu nunca me contentaria com uma única história (risos). E talvez venha daí boa parte do meu desejo pela escrita: minha família nunca foi de contar muitas histórias, e várias delas eu realmente nunca vou chegar a conhecer.
Resenhando.com - Na sua concepção, há também um “romance-ferida”, além do "romance-pergunta"? Qual é a cicatriz que você preferiu deixar exposta?
Lúcia Nascimento - Para responder a essa pergunta preciso primeiro avisar que ela virá com um spoiler. Porque, ao final da narrativa, a Alice vai concluir que ela precisava escrever aquilo que escreve para imobilizar a mãe, já morta, em suas palavras. Se o luto a impede de seguir em frente, de recuperar o movimento e a voz, é a escrita o que devolverá a ela o movimento. Que, no entanto, só é possível porque a escrita é também parte do processamento do luto, e o luto não deixa de ser o processo de enterrar de verdade aqueles que já se foram. Então, nesse sentido, acredito que a escrita da Alice, ao longo da narrativa, poderia se aproximar do que você chama de “romance-ferida”.
Resenhando.com - A personagem se chama Alice. É inevitável lembrar de Lewis Carroll. Sua Alice caiu na toca do coelho da vida adulta. O que há de mais assustador nesse “país das maravilhas” que é envelhecer?
Lúcia Nascimento - Minha Alice e a Alice do Lewis Carroll se aproximam porque as duas, de certo modo, questionam tudo o que viveram até o momento em que “caem na toca do coelho”. No texto clássico, a Alice questiona suas vivências anteriores ao ser confrontada com o absurdo de suas aventuras. A Alice de “Aqui, Ontem” questiona quem ela mesma era, antes das perdas, e quem ela pode ser, depois de tudo. Não se trata de pensar o envelhecimento, mas de refletir sobre os momentos em que a vida se transforma radicalmente, e apenas seguir em frente não faz mais sentido.
Resenhando.com - O romance é atravessado por memórias que morrem junto com quem se vai. Você acredita que escrever é também uma forma de ressuscitar quem não volta?
Lúcia Nascimento - A escrita ficcional pode ser uma ferramenta para adiar o final, porque ela possibilita a criação de novas cenas para histórias que não existem mais ou que nunca chegaram a existir. Em “Aqui, Ontem”, a escrita da Alice pretende recuperar histórias da mãe que ela não conhece, e gosto de imaginar algumas dessas cenas como aquelas que aparecem após os créditos de um filme. Minha fixação pelas histórias que morrem junto com cada pessoa é um desejo de ficcionalização, uma ode à nossa possibilidade de reimaginar a vida.
Resenhando.com - Sua formação em teoria literária parece dialogar com cada frase do livro. Não há perigo de a pesquisadora sabotar a romancista?
Lúcia Nascimento - O risco sempre existe. Na minha experiência, o processo de pesquisa foi fundamental para a escrita do romance. No meu mestrado, estudei a obra da Elvira Vigna. A obra dela é complexa, e adentrar aquela escrita me fez entender os meandros da construção de um romance, as possibilidades de tratar o tempo e o espaço de modos pouco convencionais, de criar personagens que não vão viver grandes aventuras, mas lidar com a angústia do dia a dia. Não tenho dúvidas de que, sem a experiência como pesquisadora, meu romance teria camadas a menos. E, para mim, essas camadas de construção e interpretação são o que mais gosto naquilo que leio e escrevo.
Resenhando.com - No livro, Alice encara a traição. Para você, a infidelidade amorosa dói mais do que a morte - ou é apenas outra forma de desaparecimento?
Lúcia Nascimento - Alice é casada com Pedro e, pouco antes da morte da mãe adotiva, ela descobre que havia sido traída pelo marido. Com medo do vazio, e sem forças para mais uma despedida, ela se mantém nessa relação que, aos poucos, vai se reconstruindo. Mas eu e a protagonista de “Aqui, Ontem” somos bastante diferentes nesse sentido: ela escolhe ficar por medo de mais mudanças, por estar esgotada e não se imaginar vivendo mais um abandono. Para ela, a infidelidade do marido se associa ao abandono, que ela viveu com a mãe biológica e também, de algum modo, com a morte da mãe adotiva.
Resenhando.com - Seu primeiro livro se chamou "Ruínas". Agora você lança "Aqui, Ontem". Há em seus títulos uma fixação no que já se perdeu. Quando virá o livro sobre o que ainda resta em pé?
Lúcia Nascimento - Apesar de abordarem temas bem diferentes, os dois livros têm uma ligação bastante especial, aquilo que une praticamente tudo o que escrevo: em ambos, a ficção se apresenta como possibilidade de reconstruir tudo de novos jeitos. Em “Ruínas”, meu livro de contos que foi vencedor do Prêmio Ufes de Literatura, falo de laços familiares e vidas interrompidas, a partir de situações de violência. Já no romance “Aqui, Ontem”, as perdas estão associados ao luto e ao abandono. Se tudo está em ruínas ou se estamos nos afogando em meio ao luto, é a ficção que talvez guarde em si alguma esperança.
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