sábado, 11 de fevereiro de 2023

.: Crítica: "Consentimento" ultrapassa as barreiras do palco ao falar de abusos


Espetáculo "Consentimento", com direção de Camila Turim e Hugo Possola, uma tragicomédia divertida no riso nervoso de quem vê diante do espelho suas contradições e fissuras, no Sesc Santos. Com texto da premiada autora inglesa, Nina Raine, espetáculo é contemporâneo e impactante, uma peça que consegue ser contundente, dolorosa e afiada. Foto: Priscila Prade


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com. 

Você finge que é algo e os outros fingem que acreditam. Assim se mantém a paz entre os relacionamentos - de amigos, amantes e familiares - na vida real. Qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência quando se é colocado diante de um espetáculo do porte de "Consentimento", que ecoa por horas após ser apresentado. É forte, visceral, polêmico e conta com atores que têm gabarito para defender personagens tão contundentes. Ou seja, um espetáculo perfeito.

"Consentimento" vai além do que se espera de uma peça teatral: assistir, entender a mensagem e ir embora para a casa. Para os que vão em busca de dar umas risadas e abstrair a vida, um aviso importante: não é isso que acontece. O espetáculo incomoda e faz valer a máxima de que a arte, muitas vezes, deixa de ser mero entretenimento. Ninguém é anjo no espetáculo da autora inglesa Nina Raine - ainda bem - porque a partir de personagens tão inquietantes - e muitas vezes insuportáveis - surgem discussões e questionamentos que ultrapassam as barreiras do palco.

As situações ocorridas na peça podem conduzir o espectador, pelo menos, a ter um olhar mais crítico e manifestar um pouco mais de empatia por quem passa por situações de abuso. O sistema judicial, que muitas vezes coloca a culpa nas vítimas de violência sexual, é colocado no centro da questão a partir das histórias de cinco amigos que não escondem contradições e expõe maledicências deles próprios e dos outros sem papas na língua.

É na superficialidade dos encontros casuais e festivos que as camadas mais profundas desse quinteto começa a aparecer. Basta uma "brincadeirinha" aqui e um jogo da verdade acolá para as mágoas mais profundas serem colocadas à tona e os personagens tirarem as máscaras. A versão brasileira é dirigida e idealizada por Camila Turim, com co-direção de Hugo Possolo.

Ela também está no elenco com a personagem Kitty, que é a personificação de uma panela de pressão. Sabe-se que ela irá explodir a qualquer momento, mas não se imagina tanto. Essa pólvora, que é a personagem de Camila Turim, é feita sob medida para o talento da atriz, que faz boas trocas com todo o elenco, mas quando o confronto é com Ed, defendido por Flavio Tolezani, o espetáculo chega ao ápice e à catarse: personagens cheios de empáfia sendo destruídos por outros que foram subjugados é de um prazer sobrenatural. Como a bela que derrotou a fera em "King Kong", como a luta de classes na novela "Avenida Brasil" e no romance "O Primo Basílio", de Eça de Queiroz. 

Com a confusão generalizada que se estabelece, o público fica inquieto e, ao mesmo tempo, fascinado. "Consentimento" oferece de bandeja aquelas brigas que só personagens e personalidades de classe-média alta são capazes de proporcionar. No final das contas, vale ressaltar, as vítimas sempre têm razão. "Consentimento" só ressalta que aqueles que estão envolvidos nessa alegoria de situações são somente a representação de um sistema de injustiças em que vítimas e algozes são naturalizados no cotidiano de todos.

No papel de uma vítima de estupro, Lisi Andrade toma para si todas as dores de uma personagem dificílima de ser construída e, depois, reaparece em outro papel mais leve e transforma-se completamente. Helô Cintra Castilho, como Raquel, também mostra todo o seu carisma em uma personagem que sofre nas mãos de um homem e fica do lado de um deles quando a amiga, que a apoiou no passado, passa por uma situação traumática. 

Mas não é somente com assuntos espinhosos que "Consentimento" agarra o espectador. Anna Cecilia Junqueira, como Zara, atriz em ascensão, é uma personagem vibrante e repleta de sonhos. Ela está em busca de ter um filho e é em Tim, interpretado por Gui Calzavarra, que a princípio rejeita, que o espetáculo tem um pouco de cor. Calvazarra, em seu papel, leva o público a testemunhar uma revanche. De alguém que é ironizado por todos, torna-se interesse romântico e estabelece um quadrilátero amoroso que só uma construção sólida, como a que ele fez, para tornar o personagem crível. 

Transitando por todos os personagens, Jake, interpretado por Sidney Santiago Kuanza, é o que parece mais real. No princípio, o público detesta o personagem que normaliza infidelidades. Depois, ele passa por uma redenção ao ficar do lado da mulher do melhor amigo em uma situação grave. Ele é a chave da virada do espetáculo e também o ponto de partida para entender que todos podem mudar - e melhorar como pessoas. Kuanza tem feito uma grande carreira e é um dos nomes a se prestar atenção no teatro brasileiro. 

Nos diálogos ácidos dos personagens é que todos se formam entre acertos e contradições. Os personagens não têm razão e, ao mesmo tempo, têm. Os homens da peça, em sua maioria, têm péssimo caráter e precisam repensar a vida urgentemente. As mulheres - todas - precisam de ajuda. No meio disso tudo, entre personagens que são desprezíveis em boa parte do tempo, "Consentimento" surpreende ao falar de empatia. A empatia que nasce do "olho por olho, dente por dente", mas que direciona um olhar mais real para coisas que não são ditas e precisam de conserto. Recomenda-se assistir "Consentimento" com sentimento de libertação.

O espetáculo foi assistido no palco do Sesc Santos na última sexta-feira, dia 10 de fevereiro. O espetáculo será apresentado também neste sábado, às 20h, no Sesc.

Ficha técnica
Texto: 
Nina Raine
Tradução: Clara Carvalho
Direção: Camila Turim e Hugo Possolo
Elenco: Ed (Flavio Tolezani), Kitty (Camila Turim), Raquel (Helô Cintra Castilho), Jake (Sidney Santiago Kuanza), Tim (Gui Calzavara), Zara (Anna Cecília Junqueira) Gayle e Laura (Lisi Andrade).
Assistente de direção: Tadeu Pinheiro
Cenografia: Bruno Anselmo
Trilha sonora: Dan Maia
Desenho de luz: Miló Martins
Figurinos: Anne Cerutti
Assistente de figurino: Luiza Spolti De Menezes
Colagens: Isabel Wilker
Fotos: Priscila Prade
Visagismo: Carolina Pinsdorf e Sulamita Dancuart
Designer gráfico: Werner Schulz
Vídeos: Cassandra Mello
Assessoria de imprensa e mídia social: Pombo Correio
Operador de luz: PH Moreira
Operador de som: Monique Carvalho
Coordenação de produção: Maurício Inafre
Administração: Erika Horn
Assistente de produção: Regilson Feliciano


Serviço
"Consentimento" – direção de Camila Turim e Hugo Possolo
Dias 10 e 11 de fevereiro, sexta e sábado, às 20h
Teatro do Sesc Santos
Ingresso - R$ 40 (inteira). R$ 20 (meia-entrada). R$ 12 (credencial plena)
Classificação: 16 anos 

Sesc Santos 
Rua Conselheiro Ribas, 136, Aparecida
(13) 3278-9800
www.sescsp.org.br/santos 

Orientação para acesso à unidade
Obrigatório o uso de máscara em lugares fechados.

Bilheteria Sesc Santos - Funcionamento
Terça a sexta, das 9h às 21h30 | Sábado, domingo e feriado, das 10h às 18h30 

Estacionamento em espetáculos (valor promocional – mediante apresentação de ingresso): R$ 6 (Credencial plena); R$ 11 (visitantes). Para ter o desconto, é imprescindível apresentar no caixa a credencial plena atualizada. 

Bicicletário: gratuito. Uso exclusivo para credenciados no Sesc. É necessária a apresentação da credencial plena atualizada e uso de corrente e cadeado por bicicleta. 100 vagas.  

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