Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com.
Quando Zuenir Ventura lançou "Cidade Partida" em 1994, o Brasil ainda não havia cicatrizado as feridas da chacina da Candelária e do massacre em Vigário Geral. O que o jornalista fez não foi apenas reportar: foi desvelar, palavra que, aliás, aparece com frequência nos depoimentos que compõem esta nova edição-homenagem, organizada por Elisa Ventura, Isabella Rosado Nunes e Mauro Ventura. Trinta anos depois, a expressão que Zuenir criou virou clichê e, pior, realidade permanente.
"Cidade Partida - 30 Anos Depois", publicado pela Pallas Editora, não é uma simples reedição com nova capa ou posfácio requentado. É um mergulho coletivo na ferida aberta por um dos livros-reportagem mais contundentes da história recente. É também um tributo ao ofício do jornalismo que ainda ousa ouvir vozes silenciadas, ao poder da escuta como gesto político e, sobretudo, a um homem de 93 anos que ainda sonha com uma cidade unida.
Com uma entrevista inédita de Zuenir realizada em 2024, e reflexões assinadas por nomes como Luiz Eduardo Soares, Tainá de Paula, Silvia Ramos e Eliana Sousa Silva, o livro atualiza a pergunta que jamais deveria ter sido esquecida: quantas cidades cabem dentro do Rio de Janeiro? Zuenir relata, com a simplicidade que só os grandes dominam, a incursão de dez meses em Vigário Geral após a chacina de 1993.
Como um homem branco da Zona Sul que ousou atravessar os túneis - físicos e simbólicos - que separam o “asfalto” da favela, ele oferece ao leitor, ainda hoje, uma lição de desconforto. Não o desconforto do medo, mas o do espanto ético: como pode um país suportar tanta desigualdade e ainda fingir normalidade? A crítica que se fazia em 1994 é dolorosamente atual.
Se antes se falava de uma “cidade partida”, hoje Zuenir admite: existe uma cidade “tripartida”, tomada por narcomilícias, milícias, Estado paralelo e um poder público ausente - ou, pior, conivente. Os textos que acompanham esta edição especial ampliam a obra original. São vozes que vivem e pensam o Rio de Janeiro das múltiplas violências e resistência e questionam o rótulo de “cidade partida” como um reducionismo perigoso.
Eliana Sousa Silva, por exemplo, afirma que não se trata de uma cidade cortada ao meio, mas de uma cidade estruturalmente desigual, onde o racismo, a exclusão e a hierarquização da vida moldam o espaço urbano. O livro acerta ao propor um contraponto geracional, ao mesclar especialistas, ativistas, artistas, educadores e moradores de favelas. A entrevista com DJ Marlboro - ao lado de Juju Rude e Anderson Sá - mostra que o funk, há décadas demonizado, foi e ainda é uma das linguagens que mais conecta as margens ao centro, embora siga sendo desmerecido por isso.
"Cidade Partida - 30 Anos Depois" é um livro necessário e que exige um posicionamento ético. Quem ainda se emociona com a beleza do Rio de Janeiro precisa, antes, encarar a feiura social. Quem sonha com um Brasil mais justo, deve ouvir os ecos entre os muros que separam os ricos dos pobres. O livro-reportagem virou um conceito, uma lente através da qual o Brasil passou a enxergar o Rio de Janeiro - e, por extensão, as próprias contradições.
O que se encontra neste volume é um testemunho coletivo sobre o espanto que persiste. O susto de perceber que a realidade pouco mudou desde as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, eventos que motivaram Zuenir a mergulhar por dez meses na favela de Vigário, acompanhado pelo sociólogo Caio Ferraz, na tentativa de entender o que há por trás da violência, da exclusão e da indiferença.
Mais do que denunciar, o livro propôs escuta. A nova edição reflete sobre os avanços, os retrocessos e as permanências da desigualdade urbana. A obra reúne também entrevistas com personagens emblemáticos como Rubem César Fernandes, Manoel Ribeiro, José Junior e João Roberto Ripper. A crítica social que antes soava como alerta agora ecoa como a crônica de uma tragédia anunciada, diante do fortalecimento de milícias e da ausência efetiva do Estado em territórios inteiros.
O mérito maior da publicação está em reconectar o jornalismo literário de Zuenir Ventura à realidade presente, sem perder de vista a complexidade da cidade. O relato do jornalista ao entrevistar o traficante Flávio Negão - com quem conversa tentando entender não apenas os crimes, mas as motivações, a lógica de sobrevivência e o senso de humanidade - continua sendo um dos pontos mais polêmicos e valiosos da obra. Não por glamurizar o criminoso, mas por se recusar a desumanizá-lo.
Trata-se de uma edição que também atualiza o debate sobre representatividade, políticas públicas, cultura periférica, direito à cidade e racismo estrutural. "Cidade Partida - 30 Anos Depois" é, portanto, um documento vivo, provocador e necessário. É o Brasil que se vê dividido e precisa, mais do que nunca, reagir. Talvez o momento mais comovente da obra esteja na voz do próprio autor.
Quando ele diz, com certa frustração, que ainda não conseguiu escrever o livro sobre a “cidade unida” que tanto sonhou, não se ouve a resignação de um jornalista veterano, mas a persistência de um ideal: o de que narrar o abismo é também uma forma de construir pontes. Compre o livro "Cidade Partida - 30 Anos Depois" neste link.
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