sábado, 2 de agosto de 2025

.: Pinóquio é trans? Edição da Maralto mostra o que você não viu na Disney


Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com.

Em italiano toscano, a palavra "pinocchio" significa “pinhão”. De acordo com o estudioso Gérard Génot, há algo nessa simbologia: o pinhão é a carne escondida dentro da madeira, a semente dura que precisa ser arrancada antes que a pinha seja jogada ao fogo. Pinóquio, então, é a promessa de carne dentro da madeira. Uma alma tentando nascer dentro de uma casca. Por isso, a verdadeira jornada de Pinóquio não é moral, mas existencial e por isso, talvez o personagem de Carlo Collodi, seja o primeiro trans da literatura universal. 

Pinóquio é, antes de tudo, um símbolo legítimo de metamorfose - madeira tentando virar carne e osso, como alguém que espreme a alma em um corpo a que não pertence. Ele é um boneco de madeira, mas se sente um menino. E é exatamente esse lado visceral, poético e inquietante que reaparece e agora pode ser observado mais atentamente na edição luxuosa de "As Aventuras de Pinóquio", lançada pela Maralto Edições. 

Pode parecer uma heresia vincular essa teoria a uma figura tão consagrada no imaginário infantil. Mas é um personagem que, aos olhares atentos, oferece diversas interpretações. Não se engane: Pinóquio nunca foi feito para agradar ou para mudar a personalidade de crianças desobedientes - pelo contrário: talvez até incentivasse a rebeldia. Tampouco surgiu para ser mascote de estúdio de animação, ícone da cultura pop e das lojas de brinquedo, ou estampa de camiseta descolada, como acabou se tornando ao longo de gerações. 

Visualmente, o livro é uma pequena obra de arte em formato narrativo. Com projeto editorial assinado por Raquel Matsushita, tradução primorosa de Vanessa C. Rodrigues, e ilustrações da argentina Juliana Bollini, essa edição é um clássico apresentado com o cuidado gráfico meticulosamente pensada para ser um objeto de desejo. Nascida em Buenos Aires e radicada em São Paulo, a ilustradora da obra transforma lixo em milagre. No ateliê que mantém desde os 24 anos, cria personagens a partir de papel, tecido, madeira, brinquedos quebrados, garrafas pet e toda sorte de material que carregue histórias e texturas esquecidas. 

Nessa obra, cada personagem foi literalmente construído. Mais que meros enfeites de uma edição bonita e bem cuidada, as imagens do livro são esculturas fotografadas, teatralizadas e vibrantes. O tubarão, por exemplo, foi feito com um pedaço de madeira trazido pelo mar. Há, nessa materialidade, um lúdico coerente com a história que vem sendo contada. É o clássico tratado com muito respeito e reverência que merece.

Isso faz todo o sentido, porque a obra italiana, publicada originalmente em 1883, não é a história suavizada que muitos conhecem pela animação da Disney. Trata-se de um folhetim áspero e filosófico escrito por Carlo Collodi (pseudônimo de Carlo Lorenzini, jornalista e crítico teatral envolvido nos movimentos de unificação da Itália), que criou um herói insuportável: egoísta, mentiroso, impulsivo, teimoso e inconsequente que só quer ser amado por quem quer que seja. 

A tradução de Vanessa C. Rodrigues não suaviza essa crudelidade da vida perante o personagem. Pelo contrário, ao manter a ironia madrasta do texto original, a tradutora devolve ao leitor a complexidade de um texto que se recusa a ser apenas uma “fábula da moralidade”. Quando a Maralto Edições publica esse clássico - à venda no e-commerce da Maralto Edições e em livrarias parceiras - com tanta força, respeito e beleza, ela faz mais do que um resgate editorial. Seja adulto ou jovem, quem lê esse livro sai diferente. É um clássico e, talvez, um livro infantil. Pinóquio, mesmo quando mente, obriga o leitor a encarar verdades. A luta por pertencimento - o mais moderno dos desejos - faz com que Pinóquio tente ser alguém melhor do que é. Isso é lindo. 

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