Plínio Marcos era um homem de palavras inteiras - nunca foi de meias palavras. Cuspia verdades, chutava convenções e transformava a precariedade em cenas poéticas. Mais de duas décadas após a morte dele, o autor que os censores temiam e que os palcos reverenciam completaria 90 anos em 2025. Para celebrar a data, São Paulo recebe um grande encontro que une teatro, samba e literatura, sob a batuta de Kiko Barros, filho do dramaturgo.
Kiko não apenas preserva a memória do pai: ele a expõe, sem nenhum tipo de maquiagem. Nesta entrevista, ele fala sobre a intimidade de conviver com o homem que foi, ao mesmo tempo, mito e pai, sobre o risco de transformar Plínio Marcos em relíquia domesticada e sobre a atualidade cortante de uma obra marcada pela censura, pela rebeldia e pela devoção à voz dos esquecidos que insiste em incomodar e resistir. Compre os livros de Plínio Marcos neste link.
Resenhando.com - Plínio Marcos dizia que era “repórter de um tempo mau”. Se ele vivesse em 2025, em meio a redes sociais, fake news e cultura do cancelamento, que reportagem maldita ele escreveria?
Kiko Barros - O título "repórter de um tempo mau" que ele mesmo se deu, veio da maneira profunda que escrevia seus textos puxando do âmago, e muito em função do descontentamento diante das situações que retratava. Isso acontecia quando escrevia as peças teatrais e também quando escrevia nos jornais e revistas a partir de 1968, em meio à ditadura e à censura que sofreu. Hoje, se estivesse adaptado às redes e internet, não faltaria assunto. Já naquela época ele dizia sobre o perigo dos poderosos controlando a cultura, do risco de artistas ficarem reféns de subsídios de governos inescrupulosos. Acredito que escreveria os mesmos textos, as mesmas crônicas, e tentaria com esses textos todos despertar o ser humano. Certamente tentaria subverter o ser humano para se desapegar de bens materiais chamando atenção aos problemas do homem, denunciando a opressão e as injustiças. Faria de seu teatro e de suas crônicas palco para discutir profundamente os problemas do homem, como dizia: "o Teatro só faz sentido se for uma tribuna livre para se discutir os problemas do homem".
Resenhando.com - Há quem considere o teatro de Plínio brutal e pessimista. Outros o enxergam como um retrato amoroso da miséria humana. Na intimidade, seu pai era mais próximo do carrasco ou do poeta?
Kiko Barros - Meu pai era um artista genial, muito sensível e muito generoso, ficava incomodado com as injustiças sociais e instigava o ser humano para buscar sua vocação e se libertar. Muitas vezes, brigou por suas ideias. Acredito que ele era próximo do poeta, do ator, do artista. Ele admirava profundamente atores e atrizes e toda a magia que levam. Teatro é uma magia, você aprende , mas ninguém te ensina. Mas esteve muitas vezes em frente ao carrasco e sempre pronto para debater, para argumentar e para subverter e libertar aqueles que se permitissem ser abraçados pela arte e pela vocação.
Resenhando.com - Você cresceu convivendo com o homem por trás do mito. Que lembrança doméstica, aparentemente banal, revela melhor quem era Plínio Marcos?
Kiko Barros - A simplicidade no dia a dia, a capacidade que ele tinha de se comunicar, com pessoas de todas as classes, e também de brigar com essas mesmas pessoas. Uma pessoa generosa que não tinha medo de errar e usava a força da sua vocação para seguir seu caminho com alegria, com coragem e muita coerência.
Resenhando.com - Como filho, você se sente guardião de um legado ou cúmplice de uma obra que ainda incomoda porque cutuca feridas abertas da sociedade?
Kiko Barros - Hoje sinto sim que tenho um legado de extremo valor. Desde o início do ano, com maior intensidade, estou catalogando e iniciando a digitalização do acervo. Além das obras teatrais que já foram publicadas, temos mais de 1500 contos e crônicas que foram publicados a partir de 1968, diversas colaborações e colunas até 1999, quando ele morreu. Textos sobre futebol, samba, sobre teatro, sobre cotidiano, política, ainda muito atuais com humor e que pretendemos disponibilizar em publicações diversas.
Resenhando.com - Muitos dramaturgos acabam domesticados pela academia ou pelo mercado. O que impediria Plínio de ser transformado, hoje, em peça de vitrine para intelectuais higienizados?
Kiko Barros - O próprio Plínio, seus ideais... As mesmas coisas que impediram no passado. Plínio estudou até a quarta série do primário, esse tipo de intelectual higienizado não se interessa pela obra do Plínio. Chama de maldito, e tal... Eles querem esconder, apagar. A discussão proposta por Plínio nos seus textos não agrada os poderosos, basta ver que não temos nenhum apoio ou patrocínio para esta celebração do maior dramaturgo de seu tempo.
Resenhando.com - Seu pai foi censurado, perseguido e muitas vezes tratado como marginal. Se pudesse escolher: preferiria que Plínio fosse lembrado como gênio do teatro brasileiro ou como subversivo incorrigível?
Kiko Barros - Preferiria que fosse reconhecido como gênio do teatro que foi, e ainda é, e também como contador de histórias, mas sabendo o período complicado que ele viveu. Eu me orgulho muito da fibra que ele sempre teve ao lutar pela liberdade, na tentativa de despertar o ser humano das garras do poder opressor. O genial escritor é subversivo e ainda nos encanta e desperta.
Resenhando.com - Você também é ator. Já se pegou disputando espaço com a sombra do sobrenome “Marcos”? Qual é o preço de carregar o peso dessa herança?
Kiko Barros - Já fui ator. Tive oportunidade de trabalhar com grandes artistas além da minha família, mas era muito jovem, durante dois ou três anos eu trabalhei com diversos artistas, inclusive meu pai. Agora, eu fico a frente da obra dele com muita alegria. Não tem preço, é um processo necessário e de grande aprendizado. Nesta segunda-feira, estarei no palco do teatro de Arena Eugênio Kusnet para celebrar a obra e os 90 anos do Plínio, estão todos convidados para esta festa.
Resenhando.com - O evento dos 90 anos mistura samba, teatro e literatura. Se tivesse de resumir Plínio em um gênero musical, ele seria mais samba de raiz, punk rock ou rap de periferia?
Kiko Barros - Nosso evento apresenta estas três vertentes, com teatro em algumas cenas, leituras de textos, com lançamento da nona edição "Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos", livro que reúne cinco contos e, com o Samba do Kolombolo, mostrando as raízes do samba paulista. Sim, Plínio seria samba, seria manifestação cultural tradicional, seria resistência cultural. Mesmo não sendo músico, Plínio escreveu muitos sambas e fez grandes parceiros no samba, foi o maior divulgador e incentivador do samba paulista, fundador da maior banda de carnaval de São Paulo nos anos 70 fazendo shows e gravando dois discos, um deles, o disco mais importante do samba paulista.
Resenhando.com - Há quem diga que Plínio Marcos sempre escreveu contra o poder, fosse ele político, econômico ou moral. Que poder, em 2025, ele mais adoraria afrontar?
Kiko Barros - Todos. Qualquer poder é embrutecedor e covarde. Ele se dizia anarquista, mas a maneira dele ia muito além de um rótulo, sabia bem a força transformadora de uma poesia, e percebia como ninguém essa força. Muitos acham que seus textos eram pornográficos, subversivos. Ele sempre soube a poesia contida nos seus textos, e mesmo muitas vezes sendo bruto, nunca perdeu a doçura da poesia.
Resenhando.com - Qual pergunta você gostaria que fizessem a Plínio Marcos hoje - e que resposta imagina que ele daria, sem papas na língua?
Kiko Barros - Em determinado momento da vida ao visitar presídios, fazendo palestras e debates, pediram para Plínio dar um conselho para os detentos.... ele disse: "Fujam!!".
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