Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Foto: arquivo pessoal do artista
Sozinho em cena, Adelino Costa faz de "Não Tem Meu Nome" um território em que memória, denúncia e pertencimento colidem. O monólogo escrito, dirigido e interpretado por ele segue em cartaz no Teatro Arthur Azevedo até 26 de outubro, com sessões às sextas, sábados e domingos. A partir de lembranças da infância e adolescência em Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre, o ator constrói uma dramaturgia que mistura ficção e realidade para tratar do silenciamento das periferias e da falsa ideia de universalidade que apaga vozes dissidentes.
Nitidamente inspirado por obras de Jeferson Tenório, bell hooks, Conceição Evaristo e Itamar Vieira Júnior, o ator propõe uma encenação minimalista, mas intensa, em que corpo, voz e luz se tornam extensões da própria experiência. O resultado é um depoimento pessoal sobre identidade e resistência, que convida o público a refletir sobre o lugar social da arte e o poder de transformar dor em discurso. Em entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com. Adelino Costa fala sobre o processo criativo, as referências literárias e o desafio de transformar a própria história em matéria cênica.
Resenhando.com - Você transforma suas memórias de infância em arte no palco. Até que ponto revisitar essas experiências foi libertador ou, pelo contrário, traumático?
Adelino Costa - A proposta deste espetáculo é analisar como indivíduos de comunidades subalternizadas sacrificam características de sua identidade para se encaixar e sobreviver em um mundo repleto de padrões. Minha abordagem para explorar essa proposta foi o resgate das memórias da minha infância. Mergulhar nessas lembranças me ofereceu um reencontro pessoal crucial, que me permitiu entender melhor quem sou hoje e as relações com as pessoas ao meu redor. Neste aspecto, em particular, foi uma experiência libertadora.
Resenhando.com - O título "Não Tem Meu Nome" sugere invisibilidade. A sensação de ser “não nomeado” permeia sua vida pessoal ou apenas a narrativa da periferia que você retrata?
Adelino Costa - A dramaturgia possui múltiplas camadas, e tentei propor essa complexidade também em seu título. A narrativa proposta é indissociável de minha vida pessoal, especialmente das experiências que forjam minha identidade: homem cisgênero, pardo, periférico e heterossexual. O espetáculo aborda os silenciamentos e apagamentos sofridos por ser um homem pardo de origem periférica. Nesse contexto, utilizo meu nome incomum, neste tempo e espaço que vivo, para simbolizar o isolamento e a diferença. Essa singularidade provoca uma reflexão sobre a produção em série da sociedade capitalista, que impõe um padrão rígido a tudo que é produzido e, por extensão, a quem não se enquadra. Contudo, para tratar dessas questões e contextualizar as demais comunidades subalternizadas, foi essencial reconhecer os privilégios inerentes aos recortes de ser homem cisgênero e hétero em determinados contextos. Essa clareza sobre meu lugar de fala foi fundamental para universalizar as questões tratadas no espetáculo. Acredito que a obra propõe uma reflexão profunda sobre nossas relações – não apenas sociais, mas sobretudo humanas. É uma homenagem à diversidade e uma proposta de recontar a história, incluindo aqueles que foram apagados dos livros.
Resenhando.com - Sua obra questiona a “suposta universalidade” da experiência humana. Você acredita que o teatro brasileiro ainda trata a periferia como um adereço, e não como protagonista?
Adelino Costa - A minha proposta com esse espetáculo vai além dessa questão, acredito. Me interessa, nesse momento, falar sobre quem está na periferia: quais seus traumas herdados dos seus antepassados, quais personagens e histórias que foram apagadas ao longo dos tempos. É preciso resgatar essas narrativas e figuras para que possamos entender a nossa diversidade e que, embora tenha sido apagada dos livros, esta parte da história constitui nossa história real. A diretora Eliana Monteiro, em depoimento sobre o espetáculo, comenta que eu não estou vencendo a periferia, mas, sim, trazendo ela para a burguesia. Acredito que esta fala sintetiza perfeitamente a minha proposta com este espetáculo. Como fala Cida Bento em "O Pacto da Branquitude", precisamos não só falar da herança dos escravizados, mas também da dos escravocratas. Como ela mesma sugere, se tivéssemos real conhecimento da nossa história recente, quem deveria ter vergonha dos seus ancestrais seriam os brancos descendentes de escravocratas.
Resenhando.com - Ao fundir ator e personagem, você rompe com a separação tradicional entre interpretação e vivência. Isso é resistência estética ou necessidade íntima?
Adelino Costa - Por se tratar de uma bioficção, o depoimento pessoal é uma característica inevitável da obra. Essa junção de fatos e personagens reais com elementos ficcionais obviamente se refletiu na escolha estética do espetáculo. Ao utilizar elementos narrativos em cena, busco engajar o público na construção desta história. Para as reflexões e a formação de sentido iniciadas pela atuação, é fundamental evocar o repertório de mundo da plateia.
Resenhando.com - Em sua pesquisa, você dialoga com autores como bell hooks e Frantz Fanon. Como essas leituras moldaram a dramaturgia sem transformar o espetáculo em aula de sociologia?
Adelino Costa - Ao identificar que o tema central do espetáculo era identidade e pertencimento, o aprofundamento teórico tornou-se indispensável. As reflexões de Frantz Fanon em "Pele Negra, Máscaras Brancas" validaram o argumento de que a resolução das injustiças sociais globais passa, obrigatoriamente, pela solução da questão racial. Essa perspectiva, que utilizei para fundamentar a proposta da dramaturgia, ganhou clareza a partir de uma observação pessoal: conforme eu me distanciava da Cohab - meu local de origem –, a paleta de cores das pessoas ao meu redor mudava. Essa mudança me impulsionou a alterar minha própria identidade em busca de pertencimento a essa nova realidade. Foi a partir daí que investiguei como o racismo estrutural interfere na construção identitária ao longo da vida. De forma complementar, bell hooks, em "Pertencimento: uma Cultura do Lugar", oferece crônicas que refletem sobre seu distanciamento e retorno à cidade natal após viver anos em Nova Iorque. A autora aborda o racismo e o machismo no contexto pós-'apartheid' dos EUA, o que me permitiu traçar paralelos significativos com a realidade da pessoa periférica no Brasil atual. Essas leituras foram fundamentais para que eu conseguisse tratar de assuntos tão complexos com leveza e profundidade em cena.
Resenhando.com - Você fala de periferia entrando na burguesia. Até que ponto isso significa conquista simbólica e quando se transforma em concessão ao poder dominante?
Adelino Costa - A afirmação da Eliana, como mencionei, remete à necessidade de ocupar os espaços que são nossos também, incluindo os físicos. Refiro-me a teatros, universidades, Avenida Paulista e instituições como a Pinacoteca e o MASP, por exemplo. O "imperialismo cultural simbólico", conceito abordado por bell hooks, faz com que não nos sintamos legitimados a ocupar cargos e lugares públicos. A própria nomeação 'periferia' carrega um esforço para que fiquemos à margem, sem direito à mesa, pois, na visão da elite, alguém precisa estar na cozinha.
Resenhando.com - Minimalismo, luz, objetos e trilha sonora constroem seu palco. A escolha estética é política ou estética? Ou ambas, inseparáveis?
Adelino Costa - Trata-se de uma questão de estética e, simultaneamente, política. A própria produção do espetáculo, realizada sem qualquer subsídio e dependendo de um investimento financeiro mínimo próprio, já é um reflexo desse posicionamento. O minimalismo em cena reforça a habilidade do indivíduo periférico de criar e sobreviver com poucos recursos.
Resenhando.com - Muitos dos seus colegas permanecem no anonimato mesmo com talento. O que você acha que impede que vozes periféricas se afirmem no teatro além de reconhecimentos individuais como o seu?
Adelino Costa - Esta reflexão é, inclusive, verbalizada no espetáculo. É essencial questionar: anonimato sob qual ponto de vista? Anonimato para o público dos Jardins, em São Paulo, ou da Zona Sul do Rio de Janeiro? Muitos artistas já possuem seu reconhecimento devido dentro de suas comunidades. A pergunta que lanço na peça e que reitero aqui é: se você pudesse ser o que quisesse, por que ter que deixar sua comunidade para realizar?
Resenhando.com - Se "Não Tem Meu Nome" pudesse ser encenado para além do palco tradicional - na rua, em favelas, em escolas -, que efeito você espera que tenha sobre a noção de pertencimento?
Adelino Costa - Eu prefiro inverter a questão: E se o público que você infere que eu só encontraria na rua, na favela e em escolas, fosse ao Teatro Arthur Azevedo (um equipamento público administrado pela Prefeitura de São Paulo) assistir a uma história que os representa, contada por um deles? Certamente, sairiam com a sensação de que aquele espaço nos pertence e de que não estamos sós.
Resenhando.com - Ao revisitar a periferia, você enfrenta o “saboteador” interno que Eliana Monteiro menciona. Essa batalha é mais pessoal ou coletiva, e até que ponto ela continua após o espetáculo terminar?
Adelino Costa - A partir das reflexões anteriores, fica clara a natureza social da obra. O silenciamento gradativo da nossa identidade e voz provoca reações individuais distintas em cada indivíduo. Foi necessário, após 23 anos de carreira, que eu escrevesse, dirigisse e atuasse neste espetáculo para resolver questões que me são inerentes. Contudo, a arte possui o poder do compartilhamento: o teatro é feito de pessoas para pessoas. Acredito que tenha conseguido transformar questões pessoais em universais. Assim, eu saio de cada sessão levando um pouco de cada um, e o público, um pouco de mim.
Serviço
Monólogo "Não Tem Meu Nome"
Até 26 de outubro, com sessões às sextas e sábados, às 20h00, e aos domingos, às 18h00
Teatro Arthur Azevedo - Av. Paes de Barros, 955 - Mooca/São Paulo
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