terça-feira, 9 de dezembro de 2025

.: Entrevista: Jorge Uribe revela segredos do heterônimo enigmático de Pessoa


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com
Foto: divulgação

É profundamente irônico - ou simplesmente pessoano - reunir, em um único volume, a totalidade de um heterônimo que fez do paradoxo a sua verdadeira morada. Ricardo Reis, esse médico monárquico de inclinação pagã, esse clássico que chega ao século XX como quem desembarca de um tempo impossível, volta agora ao leitor brasileiro em edição que não promete ser definitiva, mas sim reveladora. A editora Tinta-da-China Brasil fecha a trilogia da Coleção Pessoa com um livro que devolve ao heterônimo a própria complexidade do autor: a poesia depurada que o consagrou, a prosa abundante que o surpreende, os inéditos que o deslocam, a grafia arcaizada que não é capricho filológico, mas assinatura identitária.

Ao falar sobre o processo de organização do volume, Jorge Uribe, em entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, descreve a experiência de editar Reis como uma participação ativa no jogo pessoano - esse teatro de múltiplas entradas onde cada manuscrito, variante e rasura devolve ao leitor o espanto de reencontrar o autor e a si mesmo. O trabalho com o espólio, realizado em parceria com Jerónimo Pizarro, revela uma escrita que contrapõe fluxo e contração, disciplina e excesso: um movimento orgânico cujo ritmo se mostra com mais clareza na prosa, onde o heterônimo experimenta ideias, desabafos e contradições que o poeta das odes mantinha à sombra da forma.

O resultado é um livro que, pela primeira vez, apresenta ao público de língua portuguesa a totalidade da poesia e da prosa de Ricardo Reis, em ordenação cronológica e em rigorosa conformidade com a grafia original utilizada por Pessoa. Não se trata de um detalhe: a ortografia arcaizada cria ecos gregos e latinos, moldando o estilo que hoje reconhecemos como próprio de Reis e acentuando a estranha modernidade dele - esse modo de existir entre dois mundos, duas épocas, dois impulsos. Compre o livro "Obra Completa de Ricardo Reis", edição de Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe, neste link.


Resenhando.com - “Vivem em nós inúmeros”, escreveu Ricardo Reis - e talvez também se pudesse dizer: “editam-nos inúmeros”. O que significa organizar a obra completa de um heterônimo cuja própria existência é feita de paradoxos e desdobramentos?
Jorge Uribe - Praticar a edição pessoana é participar do jogo que Pessoa, poeta, crítico e também editor, nos legou. É, no fundo, implicar-se, como leitor, na indeterminação da sua proposta criativa, que encontra na incompletude a sua força de adaptação ao tempo sempre vindouro. O paradoxo está na raiz do fascínio por Pessoa e é, sobretudo, uma atitude tática para lidar com a complexidade da vida e da literatura.


Resenhando.com - Entre todos os heterônimos de Pessoa, Ricardo Reis talvez seja o mais enigmático: monárquico e pagão, clássico e moderno, racional e melancólico. Como traduzir esse equilíbrio de contrários em um volume que pretende ser definitivo?
Jorge Uribe Definitivo, só a morte, como diz a sabedoria popular. Reis é como o deus Jano, uma cabeça com duas faces que olham simultaneamente para o passado e o presente. Sua firmeza é a do instante em que os fluxos se encontram.


Resenhando.com - A edição mantém a grafia original usada por Pessoa - uma escolha que parece mais filosófica do que apenas filológica. Por que era essencial preservar essa ortografia “arcaizada” de Reis? 
Jorge Uribe A ortografia de Ricardo Reis não obedece a nenhum acordo ortográfico aceito por Pessoa. Também não é a de Pessoa. A ortografia de Reis é um achado da sua escrita, que constrói uma identidade como efeito de leitura. Por isso, publicá-la não é um capricho antiquário, faz parte de Ricardo Reis. O estilo é o homem.


Resenhando.com - Há, neste livro, textos inéditos e variantes que reconfiguram o que sabíamos sobre Ricardo Reis. Que descobertas você destacaria? O que surpreendeu até mesmo os organizadores?
Jorge Uribe A escrita de Reis, ao contrário do que se poderia pensar, também é excessiva. À precisão das odes contrapõe-se a profusão, quase se poderia dizer a incontinência, da prosa. O prefácio a Alberto Caeiro é uma obra que parece impossível de formar, de tantos caminhos que tomou ao longo de mais de quinze anos de trabalho. São quase uma centena de páginas. Porém, por volta de 1929, Reis conseguiu disciplinar-se e escrever um prefácio de apenas duas folhas. Fluxo e contração são os movimentos peristálticos dessa máquina orgânica, que se revelam com maior clareza na prosa.


Resenhando.com - Pessoa dizia que “toda a arte é uma forma de literatura”. O que a prosa de Reis - menos conhecida do que as odes - revela sobre sua visão de mundo e sua relação com o próprio Pessoa?
Jorge Uribe Reis é, entre outras coisas, um dispositivo de desabafo emotivo por meio da técnica. A escrita regrada e a prosódia herdada são os prazeres do estilista virtuoso. Reis traz para Pessoa a liberação da autodeterminação, da regra autoimposta. Por outro lado, a prosa é uma ensaística da possibilidade. Pessoa permite-se jogar com ideias que também lhe pareciam descabeladas, como o apoio à Alemanha na Grande Guerra, ser monárquico mas anticatólico, e o desejo de ter nascido em outra época que não a que lhe coube viver.


Resenhando.com - Ao ler Ricardo Reis hoje, em 2025, o que ainda nos fala? Em um tempo tão convulsionado e impaciente, que lição ética ou estética se pode tirar da serenidade pagã e do ceticismo de Reis?
Jorge Uribe Não sei se por influência de Reis, mas penso que nem sempre se podem tirar boas lições da literatura. Contudo, gosto da sua convicção acerca do caráter lúdico da vida, um jogo em que se pode experimentar o gesto não automatizado, a resposta imprevisível, que também é libertadora: “Tudo o que é serio pouco nos importe, / O grave pouco pese, / O natural impulso dos instinctos / Que ceda ao inutil goso / (Sob a sombra tranquila do arvoredo) / De jogar um bom jogo.”


Resenhando.com - O livro encerra a trilogia da Coleção Pessoa, depois das obras completas de Caeiro e Campos. Que imagem do poeta - e do homem Fernando Pessoa - emerge dessa trilogia?
Jorge Uribe O que Fernando Pessoa escreveu não equivale a uma coleção de poemas e textos em prosa destinados a serem lidos separadamente. Como num anfiteatro de múltiplas entradas, todas convergem para o palco. Caeiro, Reis, Campos e ainda o próprio Pessoa ortônimo formam uma relação orgânica, um sistema vital de implicações mútuas, uma identidade autônoma e comunitária. Nenhum livro é uma ilha.


Resenhando.com - Ambos os organizadores têm trajetórias ligadas ao universo acadêmico e editorial, mas há também uma dimensão quase arqueológica em lidar com o espólio pessoano. O que mais fascina e o que mais exaure nesse trabalho de “abrir as arcas de Pessoa”?
Jorge Uribe O espólio é um jogo de espelhos. Nele, o pesquisador, que nada mais é do que um leitor entusiasmado que quer partilhar com outros aquilo que vê, encontra o reflexo do seu próprio empenho. Quanto mais empenho, mais se multiplica o salão, devolvendo imagens ora complacentes, ora temíveis. O cansaço provém, sobretudo, da dificuldade da transcrição, das lacunas e ilegíveis, que frequentemente criam uma relação tantalizante com a obra. Mas essa é também a indisponibilidade que mantém o fogo aceso.


Resenhando.com - Há uma certa ironia em lançar a obra completa de Ricardo Reis no Brasil - o país para onde ele teria se exilado. Essa coincidência tem para vocês algum sentido simbólico?
Jorge Uribe Não vejo ironia nisso. Reis volta à casa que não é sua casa, porque é um desterrado paradigmático. É possível que nunca tenha partido.


Resenhando.com - Se Ricardo Reis pudesse escrever uma ode sobre este lançamento, o que ele diria?
Jorge Uribe Não sei bem. Como disse antes, Ricardo Reis reivindica para si o direito de ser imprevisível. Mas talvez fizesse uma ode parecida com esta: “De novo traz as aparentes novas / Flores o verão novo, e novamente / Verdesce a cor antiga / Nas folhas redivivas...”

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