Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Adriano Doria
Alguns musicais nascem de uma ideia; outros, do fogo. “Ney Matogrosso - Homem com H” é dos que ardem e iluminam. A montagem da Paris Cultural, em cartaz no Teatro Porto até dia 7 de dezembro, não apenas homenageia um artista: celebra uma entidade em vida. Ney é invocado. O palco vira altar e arena, corpo e ferida, em um ritual em que o sagrado e o profano se misturam até perderem fronteira. Entre biografia musicada, liturgia do escândalo e exorcismo contra a caretice, o espetáculo vem lotando plateias e reafirmando o poder de quem transforma a própria existência em arte.
No palco, Renan Mattos é um corpo em combustão, em que arte, dor, prazer e liberdade se confundem. Nesse papel, ele está em estado de graça: o Ney Matogrosso que renasce em cena não é cópia, mas epifania. Há algo de místico no modo como o ator acende o palco - cada nota entoada por ele soa como oração pagã e os gestos dele se impõem como sacramento profano. Nesse espetáculo, o corpo do protagonista torna-se instrumento de fé e transgressão, a serviço de uma história que emerge da coragem de existir. É raro ver entrega assim, tão absoluta que parece abolir o limite entre ator e personagem, carne e mito.
Renan Mattos canaliza o espírito de Ney Matogrosso como quem ergue um orixá: com respeito, intensidade e vertigem. Do menino tímido de Mato Grosso ao ícone que enfrentou a ditadura com o corpo nu e a voz em brasa; do amante que amou outro homem ao artista que reinventou o amor pelo pai e pela mãe; da sombra da Aids, quando tantos se apagaram, à luz de Cazuza, que começa como amante e termina como companheiro de fé. O espetáculo agrega tudo isso e faz da memória um espaço de comunhão. Cada canção é uma oferenda - não ao passado, mas ao que sobrevive dele, e também ao que restará de todos nós.
A encenação de Marilia Toledo e Fernanda Chamma é de uma inteligência cênica que não se rende ao deslumbramento. É grandiosa, mas não se perde na pirotecnia; é teatral, mas sem afetação. As diretoras compreendem que Ney é, por natureza, uma missa herética - e o espetáculo se estrutura como tal. O público assiste às transformações de figurino e maquiagem em cena como quem testemunha um milagre. Há algo de rito iniciático em ver o ator se pintar, despir-se, erguer-se e se reerguer diante de tantas camadas de si mesmo.
O texto costura vida e mito com ecos de Eduardo Galeano, autor de “As Veias Abertas da América Latina”. O Ney de “Homem com H”, intérprete de “Sangue Latino”, canta sem pudores e sem reservas as veias expostas, as cicatrizes que não cicatrizam e o erotismo que resiste à moral. A trilha musical, conduzida por Daniel Rocha, é outro acerto. As canções - de “Pro Dia Nascer Feliz” a “Poema”, redescoberta no TikTok - reacendem o fogo de uma época que tentou ser silenciada e acabou virando mito.
O musical entende que Ney nunca foi um sobrevivente, mas um transfigurador contrário à cultura do mais fácil. O figurino, as luzes e o uso do corpo coletivo do elenco convergem para um estado de celebração. “Homem com H” não se contenta em ser um retrato de uma biografia bem-sucedida: é uma experiência. Ney é o santo laico de uma geração que aprendeu que resistir também é um gesto estético. O espetáculo entende isso com devoção e insolência. É um musical que poderia se acomodar na reverência, mas prefere o risco de despertar a vontade de viver, mesmo quando o mundo insiste em morrer aos poucos. E é por isso que não é triste, mas profundamente vivo. "Homem com H" celebra um homem que caiu muitas vezes e, em todas elas, levantou-se maquiado, luminoso, inteiro, selvagem, livre e humano.
Musical "Ney Matogrosso - Homem com H"
Ficha técnica
Texto: Marilia Toledo e Emílio Boechat
Direção: Fernanda Chamma e Marilia Toledo
Coreografia: Fernanda Chamma
Direção musical: Daniel Rocha
Cenografia: Carmem Guerra
Figurinos: Michelly X
Visagismo: Edgar Cardoso
Desenho de som: Eduardo Pinheiro
Desenho de luz: Fran Barros & Tulio Pezzoni
Preparação vocal: Andréia Vitfer
Realização: Paris Cultural
Patrocínio: Porto Seguro
Produção geral: Paris Cultural
Elenco
Renan Mattos - Ney
Bruno Boer - Ney Cover
Vinícius Loyola e Pedro Arrais - Cazuza, Tonho, Cláudio Tovar e Romildo
Giselle Lima - Beíta, Renate Beija-Flor e Sandra Pera
Hellen de Castro - Rita Lee, Sylvia Orthof, Gilda e Yara Neiva
Enrico Verta - Gerson Conrad, Eugênio, André Midani e Frejat
Abner Debret - Vicente Pereira e Vitor Martins
Matheus Paiva - João Ricardo, Nilton Travesso e Marco de Maria
Dante Paccola - Ney Jovem, Mazzola e Paulnho Mendonça
Maria Clara Manesco - Luli, Lidoka e Fã
Tatiana Toyota - Elvira, Rosinha de Valença
Léo Rommano - Titinho, Moracy do Val, Luiz Fernando Guimarães e Arthur Moreira Lima
Ju Romano - Lena, Regina Chaves
Maurício Reducino – Ensemble
Valffred Souza - Ensemble
Vitor Vieira – Matogrosso e Guilherme Araújo
Oscar Fabião – Dódi e Grey
Banda
Teclado 1 e Regência - Rodrigo Bartsch
Teclado 2 e sub de Regência - Renan Achar
Bateria e percussão - Kiko Andrioli
Trombone, trompete, flugel - Renato Farias
Baixo elétrico, acústico e violão - Eduardo Brasil
Reed (sax tenor, clarinete, clarone, flauta) - Tico Marcio
Serviço
Temporada: 19 de setembro a 7 de dezembro de 2025
Sessões: sextas e sábados às 20h e domingos às 17h.
Duração do espetáculo: 3h (com 15 minutos de intervalo)
Ingressos
Plateia R$ 250,00
Balcão e frisa R$ 200,00
Preço Popular*: 50,00 *Obs. O ingresso PREÇO POPULAR é válido para todos os clientes e segue o plano de democratização da Lei Rouanet e está sujeito à cota estabelecida por Lei para este valor. O comprovante para compras ao valor de meia entrada é obrigatório e deverá ser apresentado na entrada do espetáculo.
Teatro Porto
Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elíseos – São Paulo.
Telefone (11) 3366.8700
Capacidade: 508 lugares.
Acessibilidade: 10 lugares para cadeirantes e 5 cadeiras para obesos.
Estacionamento no local: Gratuito para clientes do Teatro Porto.
O Teatro Porto oferece a seus clientes uma van gratuita partindo da Estação da Luz em direção ao prédio do teatro. O local de partida é na saída da estação, na Rua José Paulino/Praça da Luz. No trajeto de volta, a circulação é de até 30 minutos após o término da apresentação. E possui estacionamento gratuito para clientes do teatro.













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