terça-feira, 17 de novembro de 2020

.: Entrevista: Cesar Bravo, o escritor e as verdadeiras histórias de sangue


Por Helder Moraes Miranda e Mary Ellen Farias dos Santos, editores do Resenhando.

Não há melhor entusiasta da literatura de horror no Brasil que Cesar Bravo. Ele também está entre os melhores de gênero na atualidade. Autor do romance "VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue" e organizador da “Antologia Dark”, em que vários autores fazem contos que homenageiam Stephen King, ambos lançados pela Darkside Books. Em cada trabalho, este escritor coloca em palavras todo o respeito que tem a esse gênero literário. 

Com uma bonita trajetória na literatura contemporânea, Cesar Bravo nasceu em 1977, em Monte Alto, São Paulo. Bravo publicou suas primeiras obras de forma independente e em pouco tempo ganhou reconhecimento dos leitores e da imprensa especializada. É autor e coautor de contos, romances, enredos, roteiros e blogs. Transitando por diferentes estilos, possui uma escrita afiada, que ilumina os becos mais escuros da psique humana. 

Suas linhas, recheadas de suspense, exploram o bem e o mal em suas formas mais intensas, se tornando verdadeiros atalhos para os piores pesadelos humanos. Pela DarkSide®, o autor já publicou "Ultra Carnem""VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue", e a tradução de "The Dark Man", de Stephen King. Cesar ainda aluga fitas VHS na videolocadora "Fire Star" em um município próximo. Nesta entrevista exclusiva, Cesar Bravo fala sobre horror, literatura, cinema Stephen King e até memória afetiva.

Resenhando - A que você atribui o sucesso permanente da obra de Stephen King que, de geração em geração, continua vivo e conquistando cada vez mais leitores?
Cesar Bravo -
King ainda guarda alguns segredos que não conta para ninguém (e eu não duvidaria nada se nem mesmo o rei soubesse defini-los). O que conseguimos notar é sua notável disciplina na escrita, sua dedicação ao horror, e a exploração e conhecimento profundo de praticamente todos os elementos do gênero. Voltando no tempo, Stephen King escreveu "Carrie" enquanto lecionava. King é um exímio observador da vida real, ele conhecia seus alunos. Já nesse primeiro trabalho, ele se tornou familiar aos adolescentes, tocando em pontos muito particulares de suas vidas. Acredito que o fato de sempre manter essa proximidade com a vida real em seus textos contribua para revigorar e renovar sua legião de fãs. E agora, o mais importante: Stephen King sempre escreveu ótimos livros.


Resenhando - Como surgiu a ideia de lançar a “Antologia Dark” e quais as motivações?
Cesar Bravo -
O que todos fazem quando têm um professor preferido? O chamam para ser paraninfo na formatura, possivelmente (risos). Na escolha de um nome como Stephen King, levamos em conta o conjunto da obra, o próprio autor e o valor afetivo dessa combinação para os leitores. King botou o horror na cara do mundo, inundou os cinemas com suas ideias, pavimentou o caminho de centenas de escritores talentosos e está, desde 1974, mantendo sua produção em um ritmo impressionante. Quando começamos a imaginar uma antologia, seu nome saltou à frente como um neon sujo de sangue.

Resenhando - Quais são os desafios de lançar uma obra cujos contos são de terror em plena pandemia, em que parte das pessoas estão pessimistas?
Cesar Bravo -
Lançar livros no Brasil é sempre um desafio, com ou sem uma pandemia nos assolando. Falando especificamente desse período delicado, minha principal dúvida era se o número discreto de leitores que se interessam pelo horror no Brasil ainda teria a literatura como prioridade. Estávamos (e estamos) lidando com desemprego, com uma situação de doença contagiosa galopante, em alguns momentos me questionei se a carga emocional e financeira não tornaria tudo mais difícil. A resposta veio nas vendas e na recepção especial de Antologia Dark. As pessoas estavam machucadas, assustadas, mas seu amor pelos livros, pela Darkside e por Stephen King continuou blindado. Nesse período percebemos com uma clareza ainda maior o poder transformador, até mesmo consolador da literatura. Escrevemos uma série de histórias de horror, mas elas estavam no lugar certo, dentro das páginas. O que deixava nossos leitores exaustos era outra coisa, era a vida real. 


Resenhando - Como foi feita a seleção dos autores que participam do livro?
Cesar Bravo - Decidimos mesclar talentos de diferentes áreas, que tinham Stephen King como fator em comum em suas inspirações. Em “Antologia Dark”, encontramos autores exclusivamente literais, produtores e diretores de cinema, roteiristas, rappers, jornalistas, criminalistas e entusiastas do gênero. Acima de tudo, o leitor visitará profissionais que estão nesse exato momento construindo um mercado de entretenimento nacional muito mais interessante e promissor para os próximos anos. Que eu me lembre, todos ficaram muito empolgados com a oportunidade de participar, mesmo os autores e criadores que não se dedicavam exclusivamente ao gênero. A convocação foi outra missão prazerosa. Com a chegada do livro e o retorno dos leitores, essa assertividade ficou ainda mais clara.


Resenhando - O que as ilustrações de Hokama Souza contribuem com os textos e com a recriação do universo do autor homenageado?
Cesar Bravo -
A Darkside Books sempre trata seus livros como uma experiência sensorial. Podemos notar isso na textura da capa, na diagramação, no meu livro "VHS", por exemplo, temos o formato de uma fita de videocassete, em meu novo livro "DVD: Devoção Total a D." seguimos essa mesma linha, e o livro se assemelha a um DVD. As ilustrações de “Antologia Dark” ficaram por conta de Hokama Souza, que também emprestou seu traço a outros trabalhos da DarkSide, como "Edgar Allan Poe, vol. 2". A profundidade e fidelidade que Hokama alcançou nesses dois trabalhos realmente nos impressionou muito, é quase uma síntese, uma legenda do que virá a seguir. A direção de arte da DarkSide é sempre uma declaração de amor aos livros, a escolha de cada ilustração é tratada de forma única, sempre buscando uma maneira de se comunicar ou até mesmo espelhar a parte textual vinculada a ela.

Resenhando - Das obras de Stephen King, qual é a sua favorita?
Cesar Bravo - Gosto de quase tudo de King, mas a mais fundamental para mim é a série "A Torre Negra". Nesses livros King costura e recostura seus universos, visita outros livros, outros mundos, cria personagens que jamais sairão de nossas mentes. Em "A Torre Negra", Stephen nos mostrou o tecido fino que separa a realidade da imaginação. Essa mensagem mudou a forma como eu escrevia até então.

Resenhando - Qual a característica do texto e das obras de Stephen King que o diferenciam dos outros autores do mesmo segmento?
Cesar Bravo -
Stephen King é verdadeiro, é real. Em todos os livros, você sente que ele conhece nossos dilemas mais sombrios, que ele é tão próximo que poderia morar na casa ao lado. A fluidez de King é lendária, a maneira como ele nos enreda em suas tramas, os personagens notadamente humanos. Ninguém é verdadeiramente mau ou bom em seus livros, não existe mocinho perfeito ou vilão longe do alcance da redenção. Assim como nós, humanos, os personagens de King se comportam segundo motivações momentâneas, podendo ser terrivelmente canalhas em alguns momentos e perfeitos salvadores em outros.


Resenhando - O que você diria para convencer leitores que têm preconceito com Stephen King a lê-lo pela primeira vez?
Cesar Bravo -
Diria que eles estão perdendo tempo em não ler um autor tão competente, e fazendo uma pirraça infantil. Seguindo nessa analogia: ninguém está apto a criticar o que não experimentou.


Resenhando - Qual o livro você indicaria para começar e por quê?
Cesar Bravo - "Carrie" ainda é um clássico. É ágil, rápido, e é um livro mais curto e dinâmico que os outros volumes da enciclopédia King. Eu o indicaria como romance de abertura. Para um primeiro leitor um pouquinho mais ansioso, recomendo "Sombras da Noite", coletânea com textos curtos e incríveis. O livro traz um King diferente, ainda iniciante e totalmente natural na escrita.


Resenhando - Qual foi o seu primeiro contato com as histórias de terror?  
Cesar Bravo -
Minhas primeiras memórias de infância já traziam essa vontade de consumir horror. Eu me lembro claramente de novelas com lobisomens, naves espaciais e conversas com espíritos. Depois, me lembro de alguns filmes que eu não podia assistir em minha casa, porque ainda era muito jovem. Como nunca fui bom em obedecer a regras, eu saía às escondidas e assistia filmes de horror na casa de amigos. Claro que as noites eram difíceis, ainda mais com minha imaginação fértil. Apesar das imagens horríveis que minha mente projetava no quarto, a insônia assustada só servia para me impulsionar ainda mais, eu queria saber o que existia ali, o que era capaz de embutir tanto medo. A literatura veio mais tarde, e chegou a mim com a mesma potência. Atraído pelo que via nos filmes, eu queria ir mais fundo. Quando conheci Stephen King, minha bússola mudou irreversivelmente, e passei a devorar tudo o que era exotérico ou assustador, de Clive Barker a discos do Black Sabbath, de livros de magia cigana a H. P. Lovecraft. Que eu me lembre li "O Iluminado" primeiro, ou "A Zona Morta", não sei exatamente qual foi.


Resenhando - Como a literatura entrou em sua vida?
Cesar Bravo -
Pelas letras de músicas de rock. Eu era daqueles garotos que ficavam horas lendo letras de bandas de heavy metal; Black Sabbath, Iron Maiden, Dio e Blue Öyster Cult, procurando por traduções do The Doors, ouvindo Guns and Roses, Motörhead e Ac/Dc no talo. Fui abduzido pela literatura formal mais tarde, por volta dos 11-12 anos. Nessa fase, meu mundo começou a ficar bagunçado pela adolescência, e a literatura me deu energia e entendimento para seguir em frente. Desde então os livros são meus melhores amigos e conselheiros.

Resenhando - De quem maneira literatura e cinema se complementam? 
Cesar Bravo - São experiências diferentes. No livro, a nossa imaginação tem uma chance maior de se expressar, então cabe a nós a construção de alguns cenários, de personagens, até mesmo do clima e da temperatura — quando o autor não nos ambienta. No cinema, a experiência me parece um pouco mais relaxada, já que tudo nos é entregue de maneira mais imediata, e não precisamos nos preocupar com nada que não seja antecipar a próxima cena ou o final do filme. Por outro lado, o cinema (sobretudo o cinema mainstream atual) é uma peneira, cheio de buracos de trama e com sérios problemas de motivação de personagens. Em títulos mais antigos, eu certamente equilibraria cinema e leitura. Com os filmes de hoje em dia eu prefiro muitas vezes deixar a TV desligada e me divertir com um livro.

Resenhando - Como o autor de "VHS" vê o cinema brasileiro hoje?
Cesar Bravo - Vejo com um olhar esperançoso. Existem ótimos títulos, o problema é que eles não chegam no grande público, não têm a publicidade que merecem. Publicidade não é só propaganda de “em cartaz no cinema”, mas uma ação maior que indique ao espectador que ele encontrará a qualidade e o encantamento que procura. Tenho alguns títulos aqui pra citar. “Estômago” é absolutamente brilhante, “Memórias de Um Liquidificador” é incrível, “Morto Não Fala” é uma obra de arte. Isso sem citar nosso gênio maior, José Mojica Marins, que nos deixou recentemente. Temos mais, muito mais, embora seja preciso um bom garimpo para encontrar, uma vez que boa parte dos veículos de comunicação não se importa em nos indicar o caminho. Atualmente, também temos a Netflix e a Amazon investindo nas produções nacionais, o que é uma boa notícia. Em contrapartida, temos um governo infantil que decidiu “enforcar” a ANCINE, grande mola propulsora da arte no Brasil, para executar mais uma pirraça eleitoreira. Enfim, precisamos ter um olhar apurado e otimista para seguirmos em frente.


Resenhando - Em 
"VHS" há uma videolocadora entre os espaços retratados na história. O que fez você ambientar o livro e inserir uma videolocadora?
Cesar Bravo -
As fitas em VHS são uma memória coletiva, e as locadoras são a melhor maneira de resgatá-la em sua essência. De alguma forma, minha narrativa, meus padrões conceituais, tudo o que produzo ainda se relaciona com a melhor década de todos os tempos, onde as locadoras tinham a mesma importância dos bancos e das igrejas. Quando a ideia inicial de "VHS" nasceu, pensávamos muito no que teria esse poder de consolidação sobre os meus textos, um lugar comum a todas as diferentes formas de horror que eu pretendia abordar. Acabamos voltando nossos olhos para os anos 1980, VHSs e para as videolocadoras onde a inventividade e a variedade de temas eram extremas.

Resenhando - Neste livro, você apresenta para uma nova geração, coisas que já não existem mais - como a própria fita VHS e as videolocadoras. O passado, para você, é algo que deve ser reverenciado? Por quê?
Cesar Bravo -
O passado existe para ser observado, contemplado e analisado, uma vez que não podemos resgatá-lo ou modificá-lo. Na minha opinião de homem de quarenta e tantos anos, o mundo de hoje tem facilidades que destroem muito da magia do passado. Hoje temos acesso rápido a tudo e pouquíssimas coisas nos parecem importantes ou dignas de uma memória afetiva. Eu não cultuo o passado, mas gosto de me divertir com ele. É como rever aquele baú de família, rir das roupas, mas ficar com um nó na garganta, porque os tempos não são mais tão leves e divertidos quanto costumavam ser.

Resenhando - O que há de autobiográfico nos textos que escreve?
Cesar Bravo -
Bem pouco hoje em dia. O que faço como autor é resgatar alguns fragmentos que podem participar das histórias, sempre mantenho uma distância segura da vida real. A vida dos outros sempre desperta curiosidade e parece incrível e impressionante, mas no fundo é uma chatice. As emoções e sensações, eu coleciono e guardo em diferentes gavetas. Na hora certa, elas ganham o mundo, no contexto certo, para deixar todo mundo aterrorizado.

Resenhando - Escrever histórias de terror é uma maneira de enfrentar os próprios medos? Cesar Bravo - Acredito que sim. Não só de enfrentar, como de se entender com eles. A escrita e a leitura nos permitem experimentar o pior em um ambiente seguro, e de certa forma nos prepararam para esses momentos mais pesados e obscuros que vez ou outra nos alcançam. Eu não diria que um livro nos faça sofrer a dor de uma morte na família, por exemplo, mas ele talvez nos dê ferramentas para lidar de uma forma menos drástica e destrutiva com esse fardo. Falamos há pouco de Stephen King. Para qualquer leitor de King, o apocalipse viral não é segredo ou novidade. Nós não queríamos ver o que aconteceu, claro que não, mas já não considerávamos completamente impossível. Isso nos deu forças para seguir em frente e esperar que a chuva fosse embora. Infelizmente, ela ainda está ali, machucando as pessoas, mas King e outros grandes mestres da escrita também nos ensinaram que não pode chover para sempre.




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