Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foro: divulgação
Doutor em Sociologia, professor e pesquisador do curso de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Lindomar Wessler Boneti é uma voz de referência quando o assunto é cidadania, políticas públicas e convivência democrática. Agora, como um dos organizadores do livro "Uma Pedagogia para o Viver em Comum - Direitos e Deveres dos Seres Humanos e das Comunidades", lançado pela PUCPRESS, ele propõe — junto a especialistas nacionais e internacionais — um olhar crítico e inovador sobre como educar para a vida em sociedades fragmentadas, articulando direitos e deveres como dimensões inseparáveis do viver em comum. Nesta entrevista, Boneti reflete sobre os desafios contemporâneos da democracia, a urgência de uma educação cidadã e os limites do individualismo em tempos de polarização e desigualdade. "Compre o livro "Uma Pedagogia para o Viver em Comum - Direitos e Deveres dos Seres Humanos e das Comunidades" neste link.
Resenhando.com - Em um cenário global onde direitos humanos parecem cada vez mais contestados, como “Uma Pedagogia para o Viver em Comum” desafia a dicotomia entre direitos e deveres sem cair no risco de restringir liberdades individuais?
Lindomar Wessler Boneti - "Uma Pedagogia para o Viver em Comum" propõe uma superação da dicotomia entre direitos e deveres ao deslocar o foco da individualidade isolada para o sujeito inserido em um tecido social, histórico e ético. Em vez de tratar direitos e deveres como polos opostos ou negociações formais entre o Estado e a pessoa cidadã, essa pedagogia os entende como dimensões interdependentes da convivência humana. Ela desafia a ideia de que o exercício de direitos precisa ser condicionado ao cumprimento de deveres, propondo, ao contrário, que ambos se sustentam na lógica da corresponsabilidade e da amorosidade. Ao promover uma ética do cuidado, do reconhecimento mútuo e da interdependência, essa pedagogia evita o risco de restringir liberdades individuais. Em vez de impor deveres como formas de controle, ela convida à participação ativa, consciente e solidária na vida coletiva. Isso significa que a liberdade individual não é negada, mas ressignificada: ela não se exerce à revelia da outra pessoa, mas no encontro de ambos, no entendimento de que o meu existir está condicionado ao existir da outra pessoa.
Resenhando.com - A obra propõe superar o individualismo liberal e os particularismos identitários - é possível criar uma convivência comum sem diluir as identidades culturais e políticas que definem grupos minoritários?
Lindomar Wessler Boneti - Sim, é possível criar uma convivência comum sem diluir as identidades culturais e políticas de grupos minoritários. A chave está em construir um espaço ético-político de reconhecimento mútuo, onde a diferença não seja vista como ameaça, mas como componente da própria tessitura do comum. A proposta é pensar o “viver em comum” não como uniformidade, mas como convivência solidária e dialogada, uma pedagogia da escuta, do cuidado e da coabitação respeitosa. Assim, faz-se necessário a superação tanto do individualismo liberal, que absolutiza a liberdade desvinculada da outra pessoa, quanto dos particularismos identitários, que podem cristalizar diferenças e dificultar o diálogo. A convivência comum exige o reconhecimento recíproco das vulnerabilidades, dos direitos e das potências de cada grupo, sem que isso signifique apagamento de suas singularidades. Portanto, é na valorização da pluralidade, mediada por uma ética da alteridade, que se constrói um comum inclusivo e justo.
Resenhando.com - Em que medida a educação formal no Brasil está preparada - ou não - para assumir o papel central de formar cidadãos para o viver em comum, especialmente diante da fragmentação social crescente e da banalização da intolerância?
Lindomar Wessler Boneti - A educação formal no Brasil ainda não está plenamente preparada para assumir o papel central de formar cidadãos para o viver em comum, especialmente diante da fragmentação social e da banalização da intolerância. Isso se deve a alguns fatores estruturais e culturais: Currículo centrado no conteúdo e no rendimento individual: a lógica escolar ainda valoriza fortemente o desempenho técnico e a competição, em detrimento da formação ética, da empatia e da convivência democrática; Ausência de uma pedagogia crítica e dialógica: embora exista uma base legal que promova os direitos humanos e a cidadania, como a BNCC, a prática pedagógica muitas vezes não incorpora de fato metodologias voltadas ao diálogo, à escuta ativa e à valorização da diversidade; Falta de formação docente contínua: faz-se necessário intensificar a formação docente para lidar com conflitos sociais, discursos de ódio ou questões identitárias de maneira construtiva, isto na perspectiva do enfrentamento da intolerância e da exclusão dentro do ambiente escolar; Desigualdade estrutural: a educação ainda reproduz as desigualdades sociais. Escolas em contextos vulneráveis enfrentam dificuldades básicas que dificultam qualquer proposta de convivência ética e democrática. Portanto, apesar de haver potencial e diretrizes legais para que a educação contribua com o viver em comum, a prática cotidiana ainda está distante dessa proposta. Para que isso se concretize, é necessário investir em uma educação humanizadora, voltada à formação de sujeitos ético-políticos capazes de conviver com o diferente e agir no coletivo.
Resenhando.com - O livro aponta riscos de uma pedagogia estatal que pode se transformar em controle social. Como distinguir uma educação emancipadora de uma pedagógica autoritária em tempos de polarização política?
Lindomar Wessler Boneti - Uma educação emancipadora se distingue de uma pedagogia autoritária, especialmente em tempos de polarização política, por sua capacidade de promover autonomia crítica, diálogo e reconhecimento da pluralidade, enquanto a autoritária impõe valores únicos silenciando as pessoas. A educação emancipadora parte do reconhecimento da dignidade de cada sujeito e da complexidade do tecido social. Ela não instrumentaliza a formação para servir a um projeto político-partidário, mas estimula a construção coletiva de sentidos, o respeito às diferenças e o compromisso com os direitos humanos. Por outro lado, uma pedagogia autoritária, mesmo travestida de projeto nacional ou moral, tende a reduzir a diversidade ao consenso forçado, usando a escola como aparelho de controle e uniformização. Em contextos de polarização, o risco aumenta: o Estado pode usar a educação como ferramenta ideológica, suprimindo o pensamento crítico sob o pretexto da ordem ou da tradição. Portanto, a chave da distinção está na finalidade: se a educação visa formar sujeitos críticos, participativos e conscientes de seu papel na democracia, é emancipadora; se busca formar obedientes e homogêneos, é autoritária. O "por quê" está na própria essência da democracia: ela exige cidadãos, não apenas súditos. É o caso, por exemplo, da distinção entre o ensinar pensar e o ensinar fazer a partir do pensamento de Paulo Freire. No Brasil se faz presente, muito mais neste momento histórico, uma defesa explícita pelas elites econômicas na perspectiva de uma política educacional voltada ao ensinar fazer mais que o pensar, interferindo em algo essencial dos direitos humanos, a autonomia pessoal.
Resenhando.com - Como o senhor avalia o papel das políticas públicas na promoção de uma cidadania ativa e solidária? Elas têm sido eficazes em romper com a exclusão estrutural ou apenas reproduzem velhas desigualdades?
Lindomar Wessler Boneti - As políticas públicas têm um papel fundamental na promoção de uma cidadania ativa e solidária, na medida em que podem criar condições concretas para o exercício de direitos, a participação social e a construção de vínculos coletivos. No entanto, sua eficácia em romper com a exclusão estrutural ainda é limitada. Em muitos casos, elas acabam por reproduzir desigualdades históricas ao priorizar interesses de grupos hegemônicos, manter práticas burocráticas excludentes ou adotar abordagens meramente compensatórias. Faz-se necessário levar em consideração que as políticas públicas não se constituem de uma outorga do Estado à sociedade civil simplesmente a partir do preceito do direito, mas resultam de uma correlação de forças sociais carregando diferentes projetos a partir de diferentes segmentos sociais. Neste caso, são concebidas de forma verticalizada, desconectadas da realidade vivida pelos grupos sociais com maior necessidade. Porém, quando formuladas a partir de processos democráticos, com participação de diferentes segmentos sociais, com escuta ativa das comunidades e foco na justiça social, podem de fato promover a transformação social necessária. Portanto, para que sejam instrumentos de emancipação e solidariedade, as políticas públicas precisam ser pautadas por princípios de equidade, participação cidadã e reconhecimento das diversidades. Isso exige uma ação deliberada contra os mecanismos de exclusão e uma redefinição contínua do próprio sentido de cidadania.
Resenhando.com - Diante do enfraquecimento dos marcos normativos universais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, qual o papel das comunidades locais e da educação para fortalecer esses princípios?
Lindomar Wessler Boneti - Diante do enfraquecimento dos marcos normativos universais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as comunidades locais e a educação assumem um papel estratégico na resistência e revitalização desses princípios. Em contextos marcados por retrocessos democráticos, intolerância e relativização dos direitos, são os espaços locais – escolas, movimentos sociais, associações comunitárias – que se tornam guardiões vivos da dignidade humana. A educação, nesse cenário, deve ir além da instrução técnica para o simples exercício do fazer, ou da transmissão de conteúdos neutros. Ela precisa cultivar uma pedagogia crítica, ética e dialógica, que forme individualidades capazes de reconhecer a dignidade da outra pessoa, agir com solidariedade e se comprometer com a justiça social. Faz-se essencial promover uma pedagogia para o viver em comum, que una o respeito às diferenças com a busca de valores universais, como liberdade, igualdade e fraternidade. Por outro lado, as comunidades locais, enraizadas em realidades concretas, podem traduzir os princípios abstratos dos direitos humanos em práticas cotidianas, mobilizando saberes populares e vínculos de solidariedade. Elas têm o potencial de reconstruir o sentido dos direitos a partir da base, tornando-os mais acessíveis, contextualizados e legítimos. Portanto, em tempos de tamanha destruição dos consensos globais, é na articulação entre educação transformadora e mobilização comunitária que reside a esperança do reencanto e da defesa dos direitos humanos.
Resenhando.com - A obra trata também das questões de gênero como eixo estruturante da convivência democrática. Como a pedagogia para o viver em comum pode lidar com os conservadorismos e retrocessos no debate sobre gênero no Brasil?
Lindomar Wessler Boneti - A pedagogia para o viver em comum entende que as questões de gênero constituem temáticas centrais na discussão com a perspectiva da construção de uma convivência verdadeiramente democrática. Isto por entender que tais questões dizem respeito diretamente à justiça, à igualdade e ao reconhecimento da diversidade humana. Diante do conservadorismo e do retrocesso no debate sobre gênero no Brasil, essa pedagogia propõe um caminho baseado no diálogo, no respeito às diferenças e na formação ética dos sujeitos. Em vez de impor verdades absolutas, ela busca criar espaços educativos onde as desigualdades de gênero possam ser problematizadas de forma crítica, mas também sensível, com a perspectiva do acolhimento em sua pluralidade. Essa abordagem é fundamental porque o conservadorismo tende a reforçar hierarquias e estigmas, enquanto a pedagogia para o viver em comum aposta na emancipação e na convivência solidária. Lidar com retrocessos, portanto, exige uma educação que não apenas informe, mas forme sujeitos capazes de reconhecer e transformar realidades excludentes.
Resenhando.com - Na sua experiência, que práticas pedagógicas concretas conseguem transformar a educação cidadã em uma experiência genuína de reconhecimento e cuidado com o outro?
Lindomar Wessler Boneti - Na minha experiência, práticas pedagógicas que promovem a educação cidadã como uma experiência genuína de reconhecimento e cuidado com a outra pessoa envolvem, especialmente: 1. Dialogicidade e escuta ativa: criar espaços onde as crianças possam expressar suas vivências, ouvir os (as) colegas e refletir coletivamente. Isso fortalece o respeito às diferenças e o reconhecimento da outra pessoa como sujeito; 2. Aprendizagem colaborativa, com atividades em grupo que exigem cooperação e responsabilidade compartilhada estimulam o cuidado mútuo e a solidariedade; 3. Projetos de intervenção social, envolvendo estudantes em ações concretas na comunidade com a perspectiva de despertar o senso de pertencimento e compromisso ético, aproximando o ambiente escolar com a prática da vida; 4. Educação envolvendo subjetividades, emoções e empatia, trabalhar o reconhecimento dos próprios sentimentos das outras pessoas ajuda a construir relações baseadas no respeito e na compreensão. Essas práticas são importantes porque reforçam o sentimento do ser social assim como o do ser cidadão, cidadã, não entendendo a cidadania como um conceito abstrato, mas com fortalecimento de vínculos entre as individualidades e a comunidade. O processo educativo deixa de ser uma simples transmissão de conteúdos para se tornar uma experiência transformadora, de convivência e de solidariedade.
Resenhando.com - Com tantos especialistas nacionais e internacionais colaborando, quais foram os principais desafios de articular uma visão interdisciplinar para enfrentar crises tão complexas como as de identidade, democracia e justiça social?
Lindomar Wessler Boneti - Os principais desafios de articular uma visão interdisciplinar para enfrentar crises complexas como as de identidade, democracia e justiça social residem, sobretudo, na diversidade de perspectivas, metodologias e linguagens próprias de cada área do conhecimento. Especialistas nacionais e internacionais trazem saberes distintos que, muitas vezes, partem de pressupostos técnicos, teóricos e valores diversos, dificultando a construção de um diálogo fluido e integrado. Além disso, essas crises são multifacetadas e interligadas, identidades envolvendo aspectos culturais, psicológicos e sociais. Mas a democracia perpassa as dimensões políticas, históricas e econômicas e a justiça social exige entendimento jurídico, ético e econômico. Por isso, articular um olhar interdisciplinar exige não apenas conhecimento técnico, mas também sensibilidade para reconhecer as interdependências e evitar reducionismos. Outro desafio importante é o contexto sociopolítico, marcado por polarizações e tensões que dificultam consensos e a formulação de estratégias conjuntas. Nesse sentido, a interdisciplinaridade precisa também incorporar a dimensão ética e política da escuta e do respeito às diferenças para promover respostas efetivas e democráticas. Por essas razões, construir uma visão interdisciplinar não é apenas um exercício acadêmico, mas um processo dinâmico de mediação e diálogo que busca integrar saberes e práticas para enfrentar crises que, por sua complexidade, não podem ser resolvidas isoladamente.
Resenhando.com - Como o senhor vislumbra o futuro da sociologia da educação e dos direitos humanos diante do avanço das tecnologias digitais que, ao mesmo tempo que aproximam, também podem aprofundar a fragmentação social?
Lindomar Wessler Boneti - O futuro da sociologia da educação e dos direitos humanos, diante do avanço das tecnologias digitais, apresenta-se como um campo de grandes desafios e ao mesmo tempo de oportunidades. As tecnologias digitais têm o potencial de ampliar o acesso ao conhecimento, criar novas formas de comunicação e fortalecer redes de solidariedade, aproximando pessoas de diferentes contextos sociais e culturais. Contudo, esse mesmo avanço pode aprofundar a fragmentação social ao intensificar desigualdades no acesso às tecnologias, reforçar bolhas informacionais e facilitar a disseminação de discursos de ódio e de intolerância. Além disso, algo mais grave vislumbra-se com o avanço das tecnologias digitais, a invasão da essência do ser humano, o ato do pensar. Nesse cenário, a sociologia da educação precisa ampliar seu olhar para compreender essas novas dinâmicas, investigando como a educação pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento crítico e da cidadania digital. A mediação pedagógica deve promover o uso consciente e ético das tecnologias, combatendo as desigualdades estruturais e incentivando a construção de espaços democráticos de diálogo. Os direitos humanos, por outro lado, enfrentam o desafio de se reafirmar em ambientes digitais, onde a privacidade, a liberdade de expressão e o combate à discriminação se tornam temas centrais. É fundamental que políticas públicas e práticas educativas dialoguem para garantir que as tecnologias não sejam instrumentos de exclusão, mas sim de inclusão e fortalecimento dos direitos fundamentais. Portanto, o futuro desses campos depende de uma ação interdisciplinar e crítica, capaz de aproveitar o potencial das tecnologias digitais para promover uma educação emancipadora, uma sociedade mais justa e solidária e a autonomia humana.
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