terça-feira, 30 de setembro de 2025

.: Antes do “pix” e da fatura do cartão, havia uma ovelha e Marcelo Viana conta


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com.

Antes de existir “pix”, senha de cartão ou aplicativo bancário, havia uma ovelha. Ou duas. Ou 20. E alguém precisava ter certeza de que nenhuma delas se perderia pelo caminho. Foi nesse instante primitivo, diante da fome e da urgência de sobreviver, que a humanidade inventou o gesto de contar. Não havia equações nem fórmulas, apenas riscos em ossos, marcas em pedras, pedaços de madeira talhados como lembretes desesperados. Cada risco não era apenas um número: era a garantia de que haveria alimento, de que a vida não se perderia no esquecimento.

É dessa cena inaugural - quase uma fábula de sobrevivência - que parte Marcelo Viana em "A Descoberta dos Números", livro lançado pela editora Tinta da China Brasil. O diretor do IMPA não se contenta em revisitar a matemática como disciplina escolar: ele a apresenta como epopeia humana, como uma invenção tão decisiva quanto o fogo ou a linguagem. A narrativa de Viana é a de que os números nasceram antes como necessidade visceral do que como abstração genial. Não havia “teorema” antes de haver fome; não havia “axioma” antes de haver inimigos a serem medidos.

E é essa perspectiva que torna o livro explosivo. Ao longo das páginas, o leitor é arrastado para uma viagem em que a matemática deixa de ser trauma escolar e passa a ser sangue correndo na veia da civilização. Se hoje é possível digitar um valor no aplicativo do banco e receber uma notificação instantânea, é porque em um dia remoto alguém, diante de um rebanho, decidiu criar uma técnica para não se perder. O “pix” que se usa em segundos carrega na origem as mesmas marcas rudimentares feitas por povos que precisavam controlar colheitas, dividir territórios ou organizar trocas.

Ousado, rigoroso e ao mesmo tempo acessível, "A Descoberta dos Números" desmonta a ideia ingênua de que a matemática é fria, neutra e sem drama. Muito pelo contrário: ela é uma narrativa de poder, de imaginação e de ousadia. Os números permitiram que impérios se erguessem, que guerras fossem planejadas, que religiões calculassem calendários sagrados. Contar não foi um gesto inocente, mas um ato político, cultural e até filosófico. Quem dominou os números sempre dominou mais do que cálculos: dominou destinos.

A escrita de Viana tem a clareza rara de quem sabe que contar uma história vale tanto quanto demonstrar uma fórmula. Ele abre alçapões no chão da história, revela conexões inesperadas e lembra o leitor de que os números são monumentos erguidos pelo homem diante do caos. Cada algarismo que hoje é usado de maneira automática é, na verdade, uma conquista, uma invenção, um salto civilizatório. O “2” nunca foi apenas o “2”: ele carrega a memória de dedos, de gado, de mercadorias, de vidas contadas e preservadas.

No final, quem está lendo percebe que os números não foram inventados para complicar boletins escolares ou castigar adolescentes em provas, mas para que a humanidade pudesse existir enquanto humanidade. Contar não é apenas somar quantidades, mas afirmar presença, reivindicar memória e planejar futuros. Essa é a grandeza do livro de Marcelo Viana: mostrar que a matemática não está isolada em torres de marfim, mas pulsa em tudo. Está no extrato bancário e na senha do streaming, no cronômetro do metrô e na fatura do cartão, no cálculo da inflação e na previsão do tempo. Ela governa silenciosamente o cotidiano, mas carrega em si o eco daquela primeira ovelha, contada com medo de se perder.

Ao terminar a leitura, o leitor descobre que não olha mais para os números da mesma maneira. O que antes parecia abstrato e distante se revela íntimo, visceral, histórico. "A Descoberta dos Números" é, em última instância, um lembrete poderoso: antes do “pix”, havia uma ovelha. E é nessa continuidade, entre a marca na pedra e a notificação no celular que a humanidade se reconhece. Compre o livro "A Descoberta dos Números", de Marcelo Viana, neste link.

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