segunda-feira, 4 de julho de 2022

.: Capítulo 2: "Aurora" em "Nunca realmente acabou"

Por: Mary Ellen Farias dos Santos

Em julho de 2022


O som da chuva era intenso. Não conseguia abrir os olhos, mas o pensamento fervia. Sentiu muita dor nos ombros e pescoço, até que um calafrio, involuntariamente, trouxe uma recordação ingrata. O pesadelo da madrugada que a fez acordar sem fôlego e com lágrimas nos olhos. Parecia tão real a ponto de sentir dor nas batatas das pernas. Estava com a bicicleta de alumínio, do primo, emprestada. Pedalou por jardins cheios de margaridinhas num verde vibrante, igual a lindos filmes animados. Contudo, por um breve descuido, após abraçar um amigo que não via desde quando cursaram a segunda graduação, a magrela que tinha sido deixada encostada na parede de uma casinha amarela e branca, com janelas de madeira abertas para fora, sumira. 

Teria sido um aviso? A mente nos surpreende com recados difíceis de decifrar. 

Ali, com o corpo tombado em cima do volante, lutou para não desmaiar. Dentro do carro com os vidros completamente embaçados, recebendo mais pingos grossos e barulhentos por fora, Aurora lembrou que precisava voltar logo para casa. Tinha deixado seus filhotes de jabutis no jardim de casa. 

- Tenho que recolher meus bichinhos. É perigoso! Sorte que estou perto de casa...

Subitamente foi invadida por recordações múltiplas. Se viu pequenininha, na verdade, olhou para as próprias pernas cheinhas e dobradas. Nos pés, lindas sandálias marrons. Estava sentada numa escada pequena de madeira. Muito orgulhosa daquele novo calçado. Na verdade, essa era a lembrança mais antiga de Aurora. 

Contudo, parecia ser uma observadora de coisas vividas. Estava em uma de tantas vezes em que esteve nos braços do pai, ainda pequena ao som de um vinil de Julio Iglesias. Com o tempo a dança passou a ser com os pés dela no peito do pé do pai. Eram dois pés de valsa naquela sala pequena com um grande tapete e dois sofás de três lugares, uma estante embutida, uma televisão de botões prata e lateral em madeira. Muitos livros ali. Alguns nunca lidos.

Ah! Os livros... Grandes paixões de Aurora. Quando leu por conta própria o clássica da literatura brasileira, "Senhora", de José de Alencar e se apaixonou pela história de Aurélia e seu triunfo. Ao cursar a primeira graduação, recebeu uma boa quantia em dinheiro do pai para comprar livros. Entre as novidades estava "O Mundo de Sofia", de Jostein Gaarder. Até que conheceu o escritor Roberto Drummond, o autor de "Hilda Furacão" e caiu de amores pelo jornalismo literário.

Pode se observar, estava com alguém um pouco distante daquela banca, que observava a vitrine de uma loja. Era lua-de-mel e comprava o último DVD da série "Hilda Furacão" adaptada para TV por Gloria Perez. Os dois maratonaram o seriado numa época em que pouco se usava esse verbo.

Estava de noiva, com um vestido de princesa. Não igual ao que imaginava de criança, com mangas bufantes, mas a saia era do tipo bolo e o véu bem longo. Seu rosto jovem, ainda longe de ser uma quarentona. Era o dia de seu casamento. Até a lembrancinha entregue aos convidados estava nítida na lembrança. Chegou a dizer para a prima:

- Esse é seu. Coloque no móvel para pegar pó!, riram e se abraçaram. Anos depois foi a vez de a outra se casar.

Até a professora da segunda e terceira série, de cabelos pretos, chanel e óculos de lentes grossas, estilo Velma de "Scooby-Doo: Cadê Você?", chamada de professora Sônia Emília, passou por ela e lhe entregou um caderninho de capa dura em que escreviam mensagem positivas para ela. Nunca se esqueceu da vez em que foi tirar uma dúvida, coisa que nunca fazia, por ter vergonha de falar com a professora, e levou uma bronca para sentar já. Aquele grito ecoou para sempre.

Dentro do vestido de noiva, Aurora se pergunta "com quem se casou". Não que tivesse tantos namoradinhos antes, mas o rosto de quem a levou ao altar estava inacessível, somente borrões. Parecia como que um clarão abrindo ao redor dele para desfocar o rosto. Enquanto buscava na mente, foi despertada por alguém batendo no janela do carro.

Plop! poc! pok!


*Editora do portal cultural www.resenhando.com. É jornalista, professora e roteirista. Twitter: @maryellenfsm


.: Capítulo 3: "Aurora" em "Sorria"

Never Really Over, Katy Perry


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