segunda-feira, 20 de outubro de 2025

.: Entrevista: Malu Garcia transforma o confinamento em viagem interior


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com

Malu Garcia viajou para enfrentar a realidade. Em "Indomável", livro de estreia escrito por ela, a autora transforma quatro meses de confinamento em Cuba durante a pandemia em um exercício radical de liberdade e lucidez. O resultado é um relato que mistura crônica, memória e reflexão sobre o olhar estrangeiro, que ora vigia, ora liberta. 

Jornalista, radialista e apresentadora, Malu carrega na palavra o peso e o alívio das metamorfoses. Nas páginas do livro, Cuba não é o cartão-postal congelado no imaginário turístico, mas um território pulsante de contradições, onde a escassez revela a criatividade e o afeto se impõe na realidade do país. Escrever sobre a ilha é também escrever sobre o Brasil  e sobre a mulher que se reinventou ao ultrapassar as próprias fronteiras. 

Nesta entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com, Malu fala da solidão feminina como potência, dos riscos ideológicos de narrar um país sob permanente observação, do poder político da ternura e do espelho incômodo que a ilha lhe devolveu. Entre a vigilância e a rebeldia, a autora descobre que a literatura é o único passaporte que realmente atravessa. Compre o livro "Indomável", de Malu Garcia, neste link.


Resenhando.com -⁠ Você transformou a experiência de “turista controlada” em literatura. No fundo, a sua escrita nasce da vigilância ou da rebeldia?

Malu Garcia - Penso que minha escrita nasceu do atrito entre as duas coisas. Eu não esperava me encontrar naquela situação de “controlada”, e isso me causou pânico. Sentia um medo absurdo e nem sabia muito bem o por quê. Num primeiro momento me ocorreu que talvez eu não pudesse voltar outra vez a Cuba. E também no contexto da pandemia, por óbvio, perder as minhas  pessoas no Brasil era um medo real e diário. Foi tenso. Os motivos do “controlada” estão no livro, e posso dizer que desobedecer certas regras, primeiro, me manteve viva; depois me impulsionou na escrita, sim. O que vivi lá nunca coube em roteiros prontos. Então, na hora de escrever as minhas vivências foi como fazer um balanço de uma rebeldia que não sabia que tinha vivido. A vigilância me ensinou a prestar atenção, a observar minúcias. Já a rebeldia me deu coragem para escrever a partir das brechas, para atravessar o que era imposto num tempo raro, aquele da pandemia. A experiência de “controlada” acabou se revelando uma proteção. Hoje penso que minha escrita é filha desse embate: nasce da vigilância, porque dela vem a consciência aguda do olhar sobre mim quase aos 50, mas floresce na rebeldia, porque só desobedecendo ao viajar num momento sanitariamente delicado pude encontrar a Cuba real e, mais ainda, a mim mesma.

Resenhando.com -⁠ ⁠Em suas crônicas, Cuba não aparece como cartão-postal. O que descobriu de si mesma ao enxergar a ilha como espelho e não apenas cenário?
Malu Garcia - Já na minha primeira viagem, em 2005, deixei de olhar Cuba como um cartão-postal e passei a encará-la como espelho. As conexões que fiz lá me levaram de volta à minha infância e foi aí que descobri aspectos de mim mesma que no cotidiano corrido talvez eu não tivesse chance. A ilha me confrontou com contradições: a beleza e a dureza, a alegria e a falta, a liberdade que pulsa apesar das amarras. Percebi que eu também sou feita dessas tensões - do desejo de ir além das limitações e da força para encontrar sentido mesmo em contextos difíceis. Ao escrever, vi que Cuba não era apenas cenário para minhas viagens, mas um reflexo das minhas próprias inquietações e da necessidade de me reinventar. No fundo, ao ficar presa na ilha, enxerguei também minhas fronteiras internas - e a coragem de atravessá-las. Aí entram as pessoas e os encontros que vão mudando minha vida e inauguram minha escrita.

Resenhando.com -⁠ ⁠Você diz que “viajar sozinha é a maior expressão de liberdade que uma mulher pode experimentar”. Mas, na prática, essa solidão já lhe foi cruel em algum momento?
Malu Garcia - Sim, já foi cruel - e é justamente por isso que também é tão libertadora. Toda liberdade pressupõe uma quota de sacrifício primeiro. Depois, o prazer! Viajar sozinha deixa de ser apenas sobre paisagens e descobertas externas, é também sobre encarar a si mesma sem distrações. É estar como inteira, sem a distração que outra presença proporciona e limita. Tem o fator de você não ter que convencer ninguém que está com fome de almoço às onze horas da manhã ou que quer ficar no museu da hora que abre até fechar, por exemplo. Viajando sozinha me obrigou a ser minha própria companhia, a sustentar meus medos e minhas escolhas. No começo eu pensava “o que as pessoas estavam pensando ao me virem sozinha”; sentiam pena? Depois tudo se transformou em potência: percebi que estar só significava estar fazendo aquilo que escolhi, totalmente inteira.

Resenhando.com -⁠ ⁠Onze viagens para Cuba em tempos de desencanto global parecem um mergulho obsessivo. O que a ilha tem que o Brasil insiste em lhe negar?
Malu Garcia - Eu viajo a Cuba desde de 2005. São vinte anos acompanhando as mudanças que ocorrem internamente muito mais como reflexo das agressões externas que o país sofre, do que qualquer outra coisa. Para entender isso é conveniente estudar a História. Mas Cuba me oferece uma intensidade que muitas vezes sinto faltar no Brasil. Lá, a vida pulsa sem pressa. Penso que como se trata de um lugar relativamente pequeno, tem-se muita cultura sem ter que atravessar grandes distâncias. Havana é como uma espécie de showroom de cultura. E tem o lado da escassez que revela a criatividade, e cada encontro é vivido como se fosse único. É um lugar que não me permite ser espectadora - me chama para dentro da experiência. O Brasil, com toda sua grandeza e riqueza cultural, muitas vezes me nega esse mergulho profundo porque se perde no excesso, no barulho, na pressa. Em Cuba, o tempo desacelera e me obriga a olhar nos olhos, a ouvir histórias inteiras, a participar de uma vida menos mediada por filtros. Talvez por isso eu tenha voltado tantas vezes: porque a ilha me oferece uma radicalidade de experiência que me revela não apenas um outro país, mas uma outra versão de mim mesma - aquela que o Brasil, na correria e na abundância, e no medo da violência, insiste em calar.

Resenhando.com -⁠ ⁠Há algo de político em cada escolha estética do seu livro. Escrever sobre Cuba, hoje, não é também assumir um risco ideológico?
Malu Garcia - Escrever sobre Cuba é, sim, assumir um risco - porque qualquer narrativa sobre a ilha costuma ser lida através de lentes ideológicas já polarizadas. Mas eu não poderia escrever de outro modo. Minha relação com Cuba não é panfletária, é existencial. Foi lá que fiz um balanço da minha vida chegando aos 50. Vivemos tempos de excesso de informação e sobre tudo temos que ter uma posição, uma opinião, um sentimento. Mas conhecimento mesmo não há. Sobre Cuba isso ainda vem carregado de desinformação. Se eu tivesse escrito minhas vivências passadas em qualquer outra ilha do mundo, Maldivas por exemplo, não suscitaria esse juízo do bem e do mal. Cuba tem uma História e muitas narrativas que interessam à manutenção de agressões externas. O povo está cansado mas não tem outra alternativa a não ser resistir. Daí o meu título Indomável. As minhas histórias lá não são nada de panfletárias a favor de uma ideologia. São as minhas vivências de lá, espelhadas numa vida nas daqui. As pessoas conhecem Cuba pelas notícias, a favor e contra, mas o meu livro é mais uma abordagem amorosa acerca da realidade cotidiana, das coisas simples e grandes que também dão a singularidade de um país. A bandeira impressa na parte interna da capa do livro não é um manifesto, é um símbolo de respeito à intensidade do país que tanto me transformou. Por outro lado tenho comigo uma vida inteira de expectativa por justiça social no meu próprio país. Talvez por isso Cuba me convoque tanto: porque, ao mesmo tempo em que revela suas contradições e falhas, expõe também o desejo coletivo de dignidade, de partilha, de sobrevivência com criatividade. O risco ideológico existe, mas para mim escrever é escolher não se esconder. E se minha literatura carrega política, é porque acredito que toda experiência humana - sobretudo a viagem - está atravessada por questões de liberdade, de desigualdade e de esperança. Em Cuba, nos quesitos segurança, solidariedade, educação e saúde, encontrei o espelho que me ajudou a refletir sobre o Brasil que ainda sonho viver.

Resenhando.com -⁠ ⁠Você conheceu a ex-mulher de Glauber Rocha e a mãe de Leonardo Padura. Mas qual foi o encontro mais íntimo, aquele que não coube no livro porque ainda é ferida aberta ou segredo guardado?
Malu Garcia - Tive muitos encontros profundos que não estão notoriamente no livro. Essa pergunta, nesse contexto mundial que vivemos hoje, me leva a refletir sobre um em especial: certa manhã fui apresentada a um senhor de um metro e meio, e 85 anos. Ele tinha acabado de escrever um livro e me presenteou com um exemplar, autografado para mim no parapeito da sua janela, de onde víamos o Malecon. Conversamos um pouco e nos despedimos já que eu seguiria direto para o aeroporto, de volta ao Brasil. No voo li o livro. Era a história vivida por ele enquanto chefe diplomático da embaixada de Cuba no Panamá, em 1989. Pude entender que aquela história era menos sobre geopolítica e mais sobre as coisas que acontecem na vida das pessoas e são imparáveis. Particularmente, guardo um grande medo desses grandes acontecimentos que viram vidas de cabeça para  baixo. O livro do Lázaro Mora conta a invasão do Panamá. Ele passou por tudo aquilo como personagem. O livro agora está editado no Brasil e chama “Não Temos o Direito de Esquecer”. E ainda hoje olhando o noticiário penso que a qualquer momento podemos ter a repetição disso, aqui, ou em países vizinhos. Mas essa sua pergunta me leva a refletir que gosto da minha vida sem grandes sobressaltos, grandes acontecimentos. Gosto da minha vida como maré, vezes alta, vezes baixa, mas nunca um furacão que descontrola tudo. Digo sempre às minhas amigas quando estamos em “café terapia” que tenho medo das cambalhotas que a vida dá: uma doença grave, uma perda, um revés. Aqueles acontecimentos que tiram a vida do prumo. Quando fiquei presa em Cuba por quatro meses eu só pensava nisso. Mas com a escrita me dei conta que todos os acontecimentos ruins da minha vida só me jogaram para o alto. Aquele encontro com Lázaro continua comigo, inteiro, e me ensinou que literatura é escuta antes de ser voz.

Resenhando.com -⁠ ⁠Suas crônicas são atravessadas por afetos, memórias e descobertas. Em algum momento, teve medo de que a literatura romantizasse demais um país onde a sobrevivência diária é, muitas vezes, luta bruta?
Malu Garcia - Sim, esse medo sempre me acompanhou, principalmente, pelo fato de que sobre Cuba todo mundo pensa que sabe tudo… e tenho consciência que meu livro por óbvio não esgota assunto algum, ainda mais um tema que sofre polarização, propaganda e o instinto já conduz à política. Tinha medo dos julgamentos, dos preconceitos que a simples menção ao nome da ilha já causam. Mas é necessário frisar que o meu livro são as minhas vivências. E, por óbvio, escrevo carregada das minhas próprias bagagens, de criação, sonhos e conquistas. A literatura tem uma força de encantamento, e Cuba, tem a sua crueza, que é vista por nós, brasileiros, com lupa, sem que enxerguemos ao nosso redor, nossas próprias crueldades, como pessoas morando nas ruas que nem nos impactam ou apiedam mais. Cuba hoje está diferente da Cuba que conheci nos últimos vinte anos. Mas meu livro é um testemunho desse tempo, visto por uma sempre estrangeira, está claro. A Ilha toda, com sua música, luz e intensidade humana, convida facilmente à idealização, contra ou a favor. Mas eu vivi o melhor que eu poderia ter vivido nesse tempo. Sem esquecer que por trás do riso generoso existia a dureza da fila, da falta, do improviso diário para garantir o básico. O risco de romantizar está em transformar a falta em espetáculo. Eu não queria cair nessa armadilha. Por isso escrevi tentando equilibrar afeto e lucidez: reconhecendo a beleza do que vivi, mas sem negar a luta. Minha intenção nunca foi pintar Cuba como um paraíso, mas como uma ilha de contradições que também revela minhas próprias contradições como uma brasileira do meu tempo e do meu lugar. Sim, porque ao meu redor também há pobreza ainda maior do que a que existe em Cuba, acrescida de uma violência e medo,  únicos também no mundo. A literatura, nesse sentido, não é romantização, mas tentativa de testemunho. E se existe idealização no que escrevo, ela não está em suavizar a realidade, mas em dar voz à dignidade com que o povo cubano atravessa suas batalhas cotidianas, reflexo de agressões externas históricas.

Resenhando.com -⁠ Ao narrar uma brasileira em Cuba, você inevitavelmente fala da identidade brasileira. O que descobriu sobre o Brasil estando longe dele?
Malu Garcia - Estar em Cuba me obrigou a enxergar o Brasil sem os filtros que a minha bolha de privilégios me oferece. De longe, percebi o quanto carregamos uma desigualdade naturalizada, quase anestesiada, como se fosse destino. Em Cuba, a escassez é explícita, mas existe também um senso de coletividade que amortece isso. No Brasil, temos abundância em alguns pontos, mas ela convive com um abismo social gritante — e muitas vezes escolhemos não ver. Descobri que a identidade brasileira é feita de contradições tão radicais quanto as cubanas, mas nós aprendemos a disfarçá-las. Distante, percebi o silêncio que me atravessa quando volto para o meu país e reconheço que o acesso à educação, à saúde, à segurança e até ao ato de viajar sozinha são privilégios. Escrever sobre Cuba foi, no fundo, escrever sobre o Brasil que me habita e sobre a culpa e a responsabilidade que carrego como mulher brasileira consciente dos meus privilégios. A ilha me mostrou um espelho menos confortável, mas mais verdadeiro. E talvez por isso eu volte sempre: para não esquecer que a identidade também se constrói no confronto com aquilo que preferiríamos não enxergar.

Resenhando.com -⁠ Você foi radialista, repórter, apresentadora de TV e agora escritora. Essa metamorfose da palavra em sua vida tem mais de cura ou de provocação?
Malu Garcia - Olha, para além dessas funções que exerci, eu acho que antes eu fui a primeira neta da dona Maria e sobrinha de uma freira, dona de uma mala cheirosa. Essa mala da minha tia teve um grande impacto nos meus sonhos de infância. Já minha avó era analfabeta, mas foi junto dela que a palavra ganhou o território da minha inquietação. No livro eu decifro um pouco dessas duas relações de afeto que mais tarde são decisivas para eu ganhar o mundo. Daí, a palavra passa a ser uma espécie de fio condutor na minha vida. No rádio, era rápida, quase um sopro; na TV, precisava estar enquadrada, bem medida; e na escrita… na escrita ela ganhou silêncio, pausa, ganhou corpo. Quando escrevi "Indomável", percebi que não era só sobre Cuba. Era sobre mim também. E aí entrou a cura - porque escrever me fez revisitar memórias, lacunas e contradições que na correria do dia a dia a gente não encara. Mas entrou também a provocação - porque, ao me ver fora do meu país, fora da minha bolha de privilégios, eu fui obrigada a me perguntar: quem eu sou nesse novo cenário, fazendo outras descobertas, ganhando referências, com outras verdades? Ao narrar minhas descobertas em Cuba, precisei revisitar memórias, deslocamentos e afetos que eu mesma não entendia completamente. Assim, a  palavra, funcionou como um espelho que obrigou a me encarar quase numa linha do tempo, sem possibilidade de volta, já que estou aos 50. Mas também foi provocação - para mim e para o leitor - porque expôs contradições de uma brasileira que vive em sua bolha de privilégios e, de repente, se vê diante de uma realidade que subverte certezas. Para mim até está engraçado. Depois da escrita eu passei a ter uma relação diferente, mais saudável com a minha própria casa. Domesticamente, virei uma pessoa mais organizada. Outra cura é que dias nublados ou chuvosos não me oprimem mais; e perdi a pressa para muitas coisas também. Penso que a escrita cicatrizou coisas que eu nem sabia que doíam. Então, quando terminei de escrever Indomável, percebi que não havia feito narrações apenas sobre minhas idas e vindas de Cuba, mas sim atravessado a mim mesma. De fato, essa metamorfose da palavra, em mim, não é escolha entre remédio e inquietação. Penso que seja muito mais um movimento que costura as duas coisas. E talvez seja isso que me põe em movimento até hoje: habitar esse espaço onde a palavra tanto acalenta quanto cutuca.

Resenhando.com - ⁠Se tivesse que resumir Cuba em uma única cena que dissolvesse política, poesia e contradição, qual seria?
Malu Garcia - Olha, se eu tivesse que resumir Cuba em uma cena só, eu escolheria um final de tarde no Malecón, em Havana. Você vê aqueles carros antigos passando, soltando fumaça e ao mesmo tempo ali perto as crianças saem da escola com um uniforme lindo e com uma alegria marcante, como se não houvesse falta nenhuma. Sentado, um casal apaixonado, mas ele com vontade de deixar o país e ela ligada a mil coisas da ilha; mais ao lado, um senhor com um violão gasto, tirando música da precariedade. Tudo isso sendo tomado pelo alaranjado do pôr do sol. Essa cena carrega tudo o que Cuba me revelou: a beleza que se entrelaça a dureza, a vida que pulsa apesar das faltas. É política porque a sobrevivência diária é, em si, um ato político; é poesia porque o povo cubano tem a capacidade quase mágica de extrair alegria do improvável; e é contradição porque nada ali é simples, tudo é atravessado por camadas de histórias, separações e resistências. Escolho essa cena porque foi num pôr de sol que entendi que Cuba não cabe numa frase pronta ou numa ideologia. Ela se encarna nas pessoas, nos gestos pequenos, no som do mar batendo contra o muro e devolvendo, de alguma forma, a força de quem nunca deixou de resistir. O Malecón é bem a expressão disso: a água bate forte, por vezes o encobre, e ele persevera, gigante. Foi numa tarde assim que me dei conta que tudo o que havia descoberto e vivido por ali era grandioso demais e eu precisava organizar dentro de mim, sobretudo. E foi assim que  nasceu Indomável.


.: Crítica: "Casa, Beija ou Mata", de Kate Posey, equilibra o riso e o risco


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com

Romance de estreia da canadense Kate Posey, "Casa, Beija ou Mata", lançado pela Verus Editora, diverte com o próprio absurdo. Com uma escrita que mistura o suspense dos podcasts de true crime com o charme ligeiramente debochado das comédias românticas contemporâneas, a autora constrói uma narrativa que é, ao mesmo tempo, afiada e espirituosa, como se "Killing Eve" e "Um Lugar Chamado Notting Hill" tivessem se encontrado em um happy hour literário.

A protagonista, Dolores dela Cruz, é uma mulher obcecada por crimes reais, o tipo de pessoa que sabe diferenciar um estrangulador de um esfaqueador apenas pelo padrão de comportamento da vítima. Quando o novo colega de trabalho, Jake Ripper, aparece usando luvas suspeitas e um charme que poderia matar (literalmente), Dolores decide investigar e, quem sabe, flertar com o perigo. O resultado é uma relação de gato e rato temperada com humor sombrio, tensão sexual e um timing narrativo preciso.

O que torna "Casa, Beija ou Mata" especial é o equilíbrio improvável entre o riso e o risco. Kate Posey não escreve uma sátira, tampouco um thriller convencional: ela cria um “Thromance” (mistura de thriller e romance), um gênero híbrido que brinca com o imaginário pop e desafia as fronteiras do bom comportamento literário. É uma autora que sabe rir das próprias obsessões culturais - as séries de investigação, os relacionamentos desastrosos, a ironia dos tempos digitais - sem cair na paródia fácil.

A escrita de Posey é surpreendentemente leve. O diálogo entre Dolores e Jake é o tipo de troca que faz o leitor rir, corar e desconfiar, às vezes na mesma frase. A tradução de Carolina Candido acerta o tom exato do humor, entregando uma versão em português que preserva o ritmo e o veneno da narrativa original, sem “domesticar” a voz da autora - o que é raro em um texto que depende tanto da ironia e da cadência verbal. Além do enredo engenhoso, há uma sensação de frescor, uma quebra das expectativas que se espera de um romance de estreia. Posey escreve para uma geração que consome true crime no café da manhã e acredita que o amor é uma armadilha estatística. Seu texto é pop, inteligente e perigosamente divertido.

"Casa, Beija ou Mata" é uma leitura que conquista por sua originalidade: um romance que beija o perigo, casa com o humor e mata o tédio. Kate Posey inaugura sua carreira com um livro que parece um jogo, mas é uma experiência narrativa completa - um lembrete de que, mesmo nas histórias mais sombrias, ainda há espaço para rir do que assusta. Compre o livro "Casa, Beija ou Mata", de Kate Posey, neste link.

domingo, 19 de outubro de 2025

.: Teatro: Thalles Cabral vai até a beira do precipício para enfrentar a tristeza


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Fotos: Ronaldo Gutierrez

Thalles Cabral, ator, músico e protagonista do solo "Triste! Triste… Triste?", mergulha em uma das experiências mais intensas da arte: a representação da perda de uma mãe e a busca por identidade em meio ao luto. Inspirado no livro "Triste Não É ao Certo a Palavra", escrito por Gabriel Abreu, e dirigido por Nicolas Ahnert, o espetáculo não apenas traduz a dor do personagem, mas a transforma em uma experiência sensível, íntima e, por vezes, surpreendentemente leve para o público.

Em entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, Thalles fala sobre a liberdade de interpretar um solo literário, a complexidade de misturar memórias próprias com as do personagem e a relação quase terapêutica que se estabelece entre ator e público. Ele comenta ainda como o humor e o cinismo coexistem com a tragédia, criando camadas que tornam o espetáculo um convite à reflexão sobre memória, família e identidade. 


Resenhando.com - Interpretar um filho lidando com a iminência da morte da mãe exige mergulhar em emoções extremas. Como você separa o que é seu do que é do personagem em cenas tão íntimas e dolorosas?
Thalles Cabral - Eu gosto de ir até a beira do precipício. O que eu mais prezo na atuação é a verdade. Como ator, preciso acreditar naquilo pra que os outros acreditem também. E pra isso, acabo buscando dentro de mim ferramentas pra acionar esse lugar: memórias, sensações, experiências, que possam me colocar ao lado daquele personagem. Muitas vezes são emoções que já conheci, mesmo que em outra intensidade. Se há algo de similar, já serve. Depois vem a investigação, o quanto usar, até onde ir. Não me interessa criar um personagem sem misturar algo de mim e tão pouco me confundir com ele. O que me move é essa linha tênue, chegar perto do abismo, mas não saltar.


Resenhando.com - Sua carreira transitou entre novelas, séries e cinema. O que muda na sua abordagem quando o palco é um solo literário, e você não tem outros atores para “compartilhar” a carga emocional?
Thalles Cabral - Quando o Nicolas surgiu com o convite pra transformar o livro em um solo, eu hesitei. Contar uma história sozinho é um desafio enorme. O jogo com outros atores é uma das maiores alegrias do teatro, e abrir mão disso me parecia um risco grande. Mas quando li o livro do Gabriel e depois a adaptação do Nicolas, vi que "Triste..." é, na verdade, um terreno fértil, cheio de possibilidades. E com o tempo, percebi que, no fundo, não estou sozinho. O público, tão perto, respira junto comigo. Eles se tornam meus parceiros de cena, e é com eles que eu compartilho essa viagem toda.


Resenhando.com - O personagem que você interpreta lida com memória, identidade e cinismo. Algum 
desses elementos acabou refletindo em você durante os ensaios ou na vida pessoal?
Thalles Cabral - Ah, passei por todos esses e mais alguns (risos). É impossível lidar com as diferentes emoções que um texto exige sem se encharcar delas. Mas acho que o que mais ficou em mim foi a relação com a memória. Revirei fotos minhas quando criança, fotos antigas dos meus pais, fui atrás desses registros, que aliás é uma coisa maravilhosa. Com o digital, a gente foi perdendo o costume de revelar as fotos, mas eu sempre tive essa mentalidade de registrar tudo, tenho HDs cheios de fotos e vídeos. Acho que a memória é o que nos faz ser quem somos, e é preciso preservá-la com carinho.


Resenhando.com - Em "Triste! Triste… Triste?", o humor surge como contraponto à tragédia. Qual foi 
o momento mais divertido ou irônico que você descobriu dentro do luto do personagem?
Thalles Cabral - Acho que os momentos mais divertidos são os das lembranças da mãe. Ela nunca aparece em cena, mas está por toda parte, principalmente nessas histórias que o filho rememora num tom quase de talk show. Essa escolha foi linda, porque humaniza a ausência. Aquelas histórias são engraçadas, familiares, e o público se reconhece nelas. Nos ensaios, a gente explorou muito essas passagens, buscando uma forma de narrar leve e íntima, como quem conta algo da própria vida. E nesses momentos, eu realmente me diverti.


Resenhando.com - Você já lidou com grandes prêmios e reconhecimento no cinema. Como é lidar com a vulnerabilidade extrema do teatro íntimo, onde cada gesto e silêncio pesa para o público?Thalles Cabral - O teatro é uma das coisas que eu mais amo na vida e o lugar onde eu mais me sinto inteiro. Faço desde os sete anos, e ainda hoje é o espaço onde mais aprendo sobre mim. Talvez só andar de bicicleta tenha começado tão cedo e permanecido até hoje (risos). Existe algo de muito especial entre o ator e o público, algo que não se explica, só se vive. Essa vulnerabilidade é o que me fascina. É o risco, a troca, a sinergia com aquele público daquela noite, um pacto que nunca se repete. Ainda não inventaram nada melhor do que sair de um teatro mexido depois de uma peça boa. E tentar provocar isso nos outros é um privilégio raro.


Resenhando.com - Ao explorar a dor do filho, você se sentiu obrigado a buscar memórias próprias de perda, ou conseguiu criar tudo a partir da imaginação e empatia? 
Thalles Cabral - Sim. Eu vejo o espetáculo como uma grande alegoria do luto. O personagem atravessa todas as fases desse sentimento, ora de maneira realista, ora num registro mais lúdico. É quase um ensaio sobre o que significa perder. O luto é sempre uma quebra, uma interrupção, e pode aparecer de muitas formas na vida, não só na morte. Durante o processo, olhei pras minhas próprias experiências de perda e lembrei de como reagi diante delas. Acho que é sempre a partir da gente que o trabalho começa.


Resenhando.com - O solo é inspirado no livro de Gabriel Abreu, mas Nicolas Ahnert expandiu a 
narrativa. Qual foi a cena que mais te desafiou a reinventar sua própria atuação dentro dessa liberdade dramatúrgica?
Thalles Cabral - A cena em que as várias vozes da cabeça dele começam a discutir foi, sem dúvida, a mais desafiadora. Era preciso dar identidade a cada uma delas sem nenhum apoio visual, só com corpo e voz. Além disso, a cena tem um ritmo próprio, que vai crescendo até quase o caos. Demorei pra encontrar o tom dela, mas depois virou uma das minhas favoritas.


Resenhando.com - Thalles, você já disse que seu disco “Utopia” é uma narrativa própria, com clipes dirigidos por você. Existe alguma relação entre a construção desse universo musical e a construção do personagem em "Triste! Triste… Triste?"?
Thalles Cabral - "Utopia" é um álbum que fala sobre uma geração que vive pro amanhã, um amanhã distante, idealizado, quase inalcançável, e acaba esquecendo do agora. O personagem de Triste é o oposto. Ele não vive pro futuro, vive preso ao passado, sem perspectiva. É justamente olhando pra trás que ele consegue se mover pra frente. De algum modo, os dois se encontram nesse mesmo estado de suspensão: o que paralisa por excesso de futuro e o que paralisa por excesso de passado. Talvez ambos estejam tentando entender o agora, que é o lugar mais difícil de habitar.


Resenhando.com - A peça fala de uma geração anestesiada em busca de identidade. Você se identifica com essa “geração” ou vê o personagem como um espelho crítico do que poderia ter
sido você?
Thalles Cabral - 
Acho que o teatro e a arte no geral sempre me fizeram olhar pro mundo de outro jeito. Desde pequeno, sou curioso, atento, inquieto. O personagem de "Triste..." evita o enfrentamento, foge daquilo que realmente importa, e nisso a gente é bem diferente. Eu não fujo. Posso levar um tempo pra elaborar, pra entender como abordar certas coisas, mas enfrento logo. Não gosto de prolongar nada. E quanto à busca de identidade, eu entendo que é algo que vai nos acompanhar durante a vida toda, e isso não me angustia. Pelo contrário, gosto de me surpreender comigo mesmo e me sinto orgulhoso de quem estou me tornando.


Resenhando.com - Se pudesse escolher um momento do espetáculo para que o público lembrasse de 
você para sempre, qual seria?
Thalles Cabral - Não escolheria um momento, mas uma sensação. Triste oferece várias possibilidades de reflexão, e cada espectador leva a sua. Eu adoro quando vou ao teatro e saio com uma tarefa de casa, algo que me acompanha na volta, que me faz pensar sobre a minha vida. É isso que eu desejo pro público, que saiam pensando sobre as próprias relações, sobre como se comunicam com seus pais, filhos, amores. A palavra é o início e o fim de tudo.

 
Ficha técnica
Epetáculo "Triste! Triste… Triste?"
Texto e direção: Nicolas Ahnert. Elenco: Thalles Cabral. Cenário e figurino: Pazetto. Iluminação: Nicolas Caratori. Trilha sonora: Alê Martins. Direção de produção: Nicolas Ahnert. Produção: Laura Sciulli e Victor Edwards. Realização: ZERO TEATRO.

 
Serviço
Epetáculo "Triste! Triste… Triste?"
Temporada: outubro (sábados, às 20h00, e domingos, às 19h00). Novembro (sábados, às 20h00, domingos, às 19h00, e segundas, às 20h00)
Classificação: 14 anos
Duração: 70 minutos
Ingressos: R$80
Link para venda: linktr.ee/tristeespetaculo
Teatro Do Núcleo Experimental
R. Barra Funda, 637 - Barra Funda/São Paulo
Capacidade: 100 lugares.



sábado, 18 de outubro de 2025

.: Crítica: "Tron: Ares" garante cenas espetaculares para a telona Cineflix

Cena de "Tron: Ares", em cartaz na Cineflix Cinemas de Santos


Por: Mary Ellen Farias dos Santos, editora do Resenhando.com

Em outubro de 2025


O longa de ficção científica e ação "Tron: Ares", dirigido por Joachim Rønning ("Malévola: Dona do Mal"), resgata a essência do clássico mesclada a beleza visual da produção de 2010, ou seja, forma uma trilogia composta por "Tron: Uma Odisseia Eletrônica" (1982), "Tron: O Legado" (2010) e "Tron: Ares". O filme em cartaz na Cineflix Cinemas apresenta a inteligência artificial invadindo o mundo real ainda que com tempo contado.

Nessa inversão em que o programa de IA Ares Jared Leto ("Morbius") é enviado do mundo digital para o real, pelas mãos do inescrupuloso ricaço Julian Dillinger (Evan Peters, "American Horror Story" e "Monster: The Jeffrey Dahmer Story"). Com o objetivo de realizar uma missão perigosa e crucial para os negócios de Julian, Ares tem como parceira Athena (Jodie Turner-Smith) para conseguir um importante código de programação, que permite a permanência, descoberto por Eve Kim (Greta Lee, "Vidas Passadas").

O terceiro filme da franquia em que um programa altamente sofisticado, vindo da grade digital, entra na realidade humana surpreende muito pelo visual com cenas espetaculares para se deleitar justamente na telona de cinema. Tal conflito que faz encher os olhos, amarra pontas soltas anteriormente, com direito a aparição de  Kevin Flynn (Jeff Bridges). Como resultado, "Tron: Ares" provoca a respeito da natureza da IA e a dependência digital.

Com ar moderno e mais tecnológico, o potente "Tron: Ares" tem sua importância ao expandir o universo da franquia, inserindo novos conceitos e temas que enriquecem a proposta lançada há 43 anos. De trama ágil e visual de cair o queixo, "Tron: Ares dá o protagonismo merecido a Jared Leto, que abraça a missão e entrega um filmaço para a franquia, sim. Vale muito a pena conferir!

O Resenhando.com é parceiro da rede Cineflix Cinemas desde 2021. Para acompanhar as novidades da Cineflix mais perto de você, acesse a programação completa da sua cidade no app ou site a partir deste link. No litoral de São Paulo, as estreias dos filmes acontecem no Cineflix Santos, que fica no Miramar Shopping, à rua Euclides da Cunha, 21, no GonzagaConsulta de programação e compra de ingressos neste link: https://vendaonline.cineflix.com.br/cinema/SAN.


"Tron: Ares" ("Tron: Ares")Ingressos on-line neste linkGênero: ficção científica, ação. Direção: Joachim Rønning Roteiro: Jesse Wigutow e Jack Thorne. Ano: 2025. Duração: 1h58. Elenco: Jared Leto, Greta Lee e Evan Peters. Sinopse: A humanidade encontra seres de Inteligência Artificial pela primeira vez quando um programa altamente sofisticado, Ares, deixa o mundo digital para uma missão perigosa no mundo real.

Trailer "Tron - Ares"




Leia+

.: Adelino Costa transforma memórias em teatro com "Não Tem Meu Nome"


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Foto: arquivo pessoal do artista

Sozinho em cena, Adelino Costa faz de "Não Tem Meu Nome" um território em que memória, denúncia e pertencimento colidem. O monólogo escrito, dirigido e interpretado por ele segue em cartaz no Teatro Arthur Azevedo até 26 de outubro, com sessões às sextas,  sábados e domingos. A partir de lembranças da infância e adolescência em Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre, o ator constrói uma dramaturgia que mistura ficção e realidade para tratar do silenciamento das periferias e da falsa ideia de universalidade que apaga vozes dissidentes.

Nitidamente inspirado por obras de Jeferson Tenório, bell hooks, Conceição Evaristo e Itamar Vieira Júnior, o ator propõe uma encenação minimalista, mas intensa, em que corpo, voz e luz se tornam extensões da própria experiência. O resultado é um depoimento pessoal sobre identidade e resistência, que convida o público a refletir sobre o lugar social da arte e o poder de transformar dor em discurso. Em entrevista exclusiva para o portal Resenhando.com. Adelino Costa fala sobre o processo criativo, as referências literárias e o desafio de transformar a própria história em matéria cênica.

Resenhando.com - Você transforma suas memórias de infância em arte no palco. Até que ponto revisitar essas experiências foi libertador ou, pelo contrário, traumático?
Adelino Costa -
A proposta deste espetáculo é analisar como indivíduos de comunidades subalternizadas sacrificam características de sua identidade para se encaixar e sobreviver em um mundo repleto de padrões. Minha abordagem para explorar essa proposta foi o resgate das memórias da minha infância. Mergulhar nessas lembranças me ofereceu um reencontro pessoal crucial, que me permitiu entender melhor quem sou hoje e as relações com as pessoas ao meu redor. Neste aspecto, em particular, foi uma experiência libertadora.


Resenhando.com - O título "Não Tem Meu Nome" sugere invisibilidade. A sensação de ser “não nomeado” permeia sua vida pessoal ou apenas a narrativa da periferia que você retrata?
Adelino Costa - 
A dramaturgia possui múltiplas camadas, e tentei propor essa complexidade também em seu título. A narrativa proposta é indissociável de minha vida pessoal, especialmente das experiências que forjam minha identidade: homem cisgênero, pardo, periférico e heterossexual. O espetáculo aborda os silenciamentos e apagamentos sofridos por ser um homem pardo de origem periférica. Nesse contexto, utilizo meu nome incomum, neste tempo e espaço que vivo, para simbolizar o isolamento e a diferença. Essa singularidade provoca uma reflexão sobre a produção em série da sociedade capitalista, que impõe um padrão rígido a tudo que é produzido e, por extensão, a quem não se enquadra. Contudo, para tratar dessas questões e contextualizar as demais comunidades subalternizadas, foi essencial reconhecer os privilégios inerentes aos recortes de ser homem cisgênero e hétero em determinados contextos. Essa clareza sobre meu lugar de fala foi fundamental para universalizar as questões tratadas no espetáculo. Acredito que a obra propõe uma reflexão profunda sobre nossas relações – não apenas sociais, mas sobretudo humanas. É uma homenagem à diversidade e uma proposta de recontar a história, incluindo aqueles que foram apagados dos livros.


Resenhando.com - Sua obra questiona a “suposta universalidade” da experiência humana. Você acredita que o teatro brasileiro ainda trata a periferia como um adereço, e não como protagonista?
Adelino Costa - 
A minha proposta com esse espetáculo vai além dessa questão, acredito. Me interessa, nesse momento, falar sobre quem está na periferia: quais seus traumas herdados dos seus antepassados, quais personagens e histórias que foram apagadas ao longo dos tempos. É preciso resgatar essas narrativas e figuras para que possamos entender a nossa diversidade e que, embora tenha sido apagada dos livros, esta parte da história constitui nossa história real. A diretora Eliana Monteiro, em depoimento sobre o espetáculo, comenta que eu não estou vencendo a periferia, mas, sim, trazendo ela para a burguesia. Acredito que esta fala sintetiza perfeitamente a minha proposta com este espetáculo. Como fala Cida Bento em "O Pacto da Branquitude", precisamos não só falar da herança dos escravizados, mas também da dos escravocratas. Como ela mesma sugere, se tivéssemos real conhecimento da nossa história recente, quem deveria ter vergonha dos seus ancestrais seriam os brancos descendentes de escravocratas.


Resenhando.com - Ao fundir ator e personagem, você rompe com a separação tradicional entre interpretação e vivência. Isso é resistência estética ou necessidade íntima?
Adelino Costa - 
Por se tratar de uma bioficção, o depoimento pessoal é uma característica inevitável da obra. Essa junção de fatos e personagens reais com elementos ficcionais obviamente se refletiu na escolha estética do espetáculo. Ao utilizar elementos narrativos em cena, busco engajar o público na construção desta história. Para as reflexões e a formação de sentido iniciadas pela atuação, é fundamental evocar o repertório de mundo da plateia.


Resenhando.com - Em sua pesquisa, você dialoga com autores como bell hooks e Frantz Fanon. Como essas leituras moldaram a dramaturgia sem transformar o espetáculo em aula de sociologia?
Adelino Costa - 
Ao identificar que o tema central do espetáculo era identidade e pertencimento, o aprofundamento teórico tornou-se indispensável. As reflexões de Frantz Fanon em "Pele Negra, Máscaras Brancas" validaram o argumento de que a resolução das injustiças sociais globais passa, obrigatoriamente, pela solução da questão racial. Essa perspectiva, que utilizei para fundamentar a proposta da dramaturgia, ganhou clareza a partir de uma observação pessoal: conforme eu me distanciava da Cohab - meu local de origem –, a paleta de cores das pessoas ao meu redor mudava. Essa mudança me impulsionou a alterar minha própria identidade em busca de pertencimento a essa nova realidade. Foi a partir daí que investiguei como o racismo estrutural interfere na construção identitária ao longo da vida. De forma complementar, bell hooks, em "Pertencimento: uma Cultura do Lugar", oferece crônicas que refletem sobre seu distanciamento e retorno à cidade natal após viver anos em Nova Iorque. A autora aborda o racismo e o machismo no contexto pós-'apartheid' dos EUA, o que me permitiu traçar paralelos significativos com a realidade da pessoa periférica no Brasil atual. Essas leituras foram fundamentais para que eu conseguisse tratar de assuntos tão complexos com leveza e profundidade em cena.


Resenhando.com - Você fala de periferia entrando na burguesia. Até que ponto isso significa conquista simbólica e quando se transforma em concessão ao poder dominante?
Adelino Costa - 
A afirmação da Eliana, como mencionei, remete à necessidade de ocupar os espaços que são nossos também, incluindo os físicos. Refiro-me a teatros, universidades, Avenida Paulista e instituições como a Pinacoteca e o MASP, por exemplo. O "imperialismo cultural simbólico", conceito abordado por bell hooks, faz com que não nos sintamos legitimados a ocupar cargos e lugares públicos. A própria nomeação 'periferia' carrega um esforço para que fiquemos à margem, sem direito à mesa, pois, na visão da elite, alguém precisa estar na cozinha. 

Resenhando.com - Minimalismo, luz, objetos e trilha sonora constroem seu palco. A escolha estética é política ou estética? Ou ambas, inseparáveis?
Adelino Costa - 
Trata-se de uma questão de estética e, simultaneamente, política. A própria produção do espetáculo, realizada sem qualquer subsídio e dependendo de um investimento financeiro mínimo próprio, já é um reflexo desse posicionamento. O minimalismo em cena reforça a habilidade do indivíduo periférico de criar e sobreviver com poucos recursos.


Resenhando.com - Muitos dos seus colegas permanecem no anonimato mesmo com talento. O que você acha que impede que vozes periféricas se afirmem no teatro além de reconhecimentos individuais como o seu?
Adelino Costa - 
Esta reflexão é, inclusive, verbalizada no espetáculo. É essencial questionar: anonimato sob qual ponto de vista? Anonimato para o público dos Jardins, em São Paulo, ou da Zona Sul do Rio de Janeiro? Muitos artistas já possuem seu reconhecimento devido dentro de suas comunidades. A pergunta que lanço na peça e que reitero aqui é: se você pudesse ser o que quisesse, por que ter que deixar sua comunidade para realizar?


Resenhando.com - Se "Não Tem Meu Nome" pudesse ser encenado para além do palco tradicional - na rua, em favelas, em escolas -, que efeito você espera que tenha sobre a noção de pertencimento?
Adelino Costa - 
Eu prefiro inverter a questão: E se o público que você infere que eu só encontraria na rua, na favela e em escolas, fosse ao Teatro Arthur Azevedo (um equipamento público administrado pela Prefeitura de São Paulo) assistir a uma história que os representa, contada por um deles? Certamente, sairiam com a sensação de que aquele espaço nos pertence e de que não estamos sós.


Resenhando.com - Ao revisitar a periferia, você enfrenta o “saboteador” interno que Eliana Monteiro menciona. Essa batalha é mais pessoal ou coletiva, e até que ponto ela continua após o espetáculo terminar?
Adelino Costa - 
A partir das reflexões anteriores, fica clara a natureza social da obra. O silenciamento gradativo da nossa identidade e voz provoca reações individuais distintas em cada indivíduo. Foi necessário, após 23 anos de carreira, que eu escrevesse, dirigisse e atuasse neste espetáculo para resolver questões que me são inerentes. Contudo, a arte possui o poder do compartilhamento: o teatro é feito de pessoas para pessoas. Acredito que tenha conseguido transformar questões pessoais em universais. Assim, eu saio de cada sessão levando um pouco de cada um, e o público, um pouco de mim.


Serviço
Monólogo "Não Tem Meu Nome"
Até 26 de outubro, com sessões às sextas e sábados, às 20h00, e aos domingos, às 18h00
Teatro Arthur Azevedo - Av. Paes de Barros, 955 - Mooca/São Paulo

.: "Depois da Caçada" leva Julia Roberts e Andrew Garfield ao inferno acadêmico


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com.

Em seu mais maduro e inquietante filme até aqui, o cineasta Luca Guadagnino leva ao ambiente acadêmico um tema arenoso - relações de poder, acusações, ambiguidade moral - para construir um drama psicológico que desafia o espectador a questionar quem está contando a verdade - e se todos puderem estar contando-a ao mesmo tempo. “Depois da Caçada” (“After the Hunt” e “Depois da Caça”, em Portugal) é ambientado em uma universidade de elite, e conduz o espectador por um labirinto emocional em que ninguém é completamente inocente. 

Guadagnino filma a partir do desconforto, criando uma atmosfera tensa, quase claustrofóbica, em que as palavras pesam mais do que os gestos e o que os personagens pensam sobre os outros e o que deixam de dizer se tornam armas letais. É um filme sobre as mentiras que acreditamos que contamos e as verdades que fingimos esconder.

No elenco, a vencedora do Oscar Julia Roberts brilha em um papel controverso, talvez o mais complexo das produções recentes em que participou. A personagem dela, Alma, é uma professora que sofre de úlcera nervosa, ferida física que se torna metáfora de uma corrosão moral que atinge todos à volta dela. Há nessa personagem uma elegância contida, mas também uma dor que se manifesta em pequenas atitudes. 

Já Andrew Garfield assume um papel fora de todo o que fez até agora: o colega íntimo da protagonista acusado, cuja amizade transita entre rivalidade e mistério. O personagem dele é, ao mesmo tempo, cúmplice e antagonista, um homem em colapso que busca redenção enquanto tenta preservar o que resta da própria reputação.

Ayo Edebiri no papel da suposta vítima se impõe como uma presença ambígua. Ela interpreta uma jovem que reivindica uma reparação, mas manipula as causas que defende em benefício próprio. A performance da atriz desconcerta, pois obriga o público a encarar o lado menos confortável do discurso sobre feminismo e sororidade - quando a verdade, em vez de libertar, torna-se um instrumento de poder.

A participação breve e decisiva de Michael Stuhlbarg funciona como o fio que amarra esse tecido de tensões. O personagem dele pouco aparece, mas o suficiente para desestabilizar o equilíbrio frágil de todos. A relação entre ele a a protagonista de Julia Roberts, em muitos momentos, lembra o embate moral de “Anatomia de Uma Queda”: há amor, mas também rivalidade; há companheirismo, mas um cansaço existencial que faz o espectador se perguntar se o amor maduro precisa, de fato, da paixão... ou se basta a cumplicidade.

Em “Depois da Caçada”, o diretor questiona nossos próprios pactos com a verdade. O que é lealdade quando se está em jogo o poder? O que é amor quando o desejo está contaminado pela culpa? E o que é feminismo quando a dor alheia se torna moeda de troca? “Depois da Caçada” é cinema de maturidade, desconforto e ambiguidade. Um filme que não quer ser amado, mas pensado, e que desafia o espectador a encontrar beleza no incômodo e a entender que, entre mentiras e verdades, o que resta é a difícil arte de conviver com as próprias feridas.

É um filme que provoca, incomoda, expõe zonas cinzentas da justiça, do feminismo, da amizade, de quem está do lado de quem. Mostra-se como um dos filmes mais densos, arriscados e relevantes da temporada, exigindo do espectador disposição para desconforto e reflexão. Não é um filme fácil. A trilha sonora é densa, incômoda, quase uma extensão dos personagens. A fotografia aposta em tons frios, reforçando a sensação de isolamento e o caráter impessoal do ambiente universitário. Os personagens não são carismáticos, nem fáceis de lidar, mas Guadagnino não quer que sejam. Todos têm razão e são culpados ao mesmo tempo.


Assista no Cineflix mais perto de você
As principais estreias da semana e os melhores filmes em cartaz podem ser assistidos na rede Cineflix CinemasPara acompanhar as novidades da Cineflix mais perto de você, acesse a programação completa da sua cidade no app ou site a partir deste link. No litoral de São Paulo, as estreias dos filmes acontecem no Cineflix Santos, que fica no Miramar Shopping, à rua Euclides da Cunha, 21, no Gonzaga. Consulta de programação e compra de ingressos neste link: https://vendaonline.cineflix.com.br/cinema/SANO Resenhando.com é parceiro da rede Cineflix Cinemas desde 2021.

Ficha técnica
“Depois da Caçada” | “After the Hunt” | “Depois da Caça” (Portugal)
Classificação indicativa:
 16 anos. Ano de produção: 2025. Idioma: inglês. Direção: Luca Guadagnino. Roteiro: Nora Garrett. Elenco: Julia Roberts (Alma Imhoff), Andrew Garfield (Hank Gibson), Ayo Edebiri (Maggie Price), Michael Stuhlbarg (Frederik Olsson), Chloë Sevigny. Distribuição no Brasil: Sony Pictures Brasil. Duração: 139 minutos. Cenas pós-créditos: não há.


Sinopse resumida de “Depois da Caçada”
Uma professora universitária de uma instituição de elite vê sua vida pessoal e profissional virar do avesso quando sua aluna prodígio acusa um colega de corpo docente de má-conduta, e um segredo obscuro do seu próprio passado ameaça vir à tona. Uma curiosidade: o filme teve sua estreia mundial fora de competição na Mostra de Venice em agosto de 2025 e foi escolhido para abrir, em seguida, a edição da New York Film Festival, marcando a força desta nova proposta do diretor. 

Sessões no Cineflix Santos | Sala 3
18/10/2025 - Sábado: 18h10 e 21h00.
19/10/2025 - Domingo: 18h10 e 21h00.
20/10/2025 - Segunda-feira: 18h10 e 21h00.
21/10/2025 - Terça-feira: 118h10 e 21h00.
22/10/2025 - Quarta-feira: 18h10 e 21h00. Ingressos neste link.

.: “Rapsódia - O Musical” ganha edição especial de Halloween em São Paulo


Mantendo a proposta sensorial e imersiva, o espetáculo terá sessão única no dia 30 de outubro, em versão inédita para palco italiano, no Teatro Gamaro. Foto: Álefe Ouriques


Após encerrar uma elogiada primeira temporada na Sala Experimental do Teatro B32, a comédia dark original “Rapsódia - O Musical” retorna em grande estilo para uma edição especial e única de Halloween. A produção é uma realização da Cerejeira Produções em parceria com a Baldaquim Produções e com o Teatro Gamaro, e acontece no dia 30 de outubro, às 20h30, sob direção de Mau Alves, também autor do texto, e direção musical de Tony Lucchesi. Os ingressos estão à venda e podem ser adquiridos no site da Sympla.

Nesta versão, o espetáculo, que existe há 12 anos e só havia passado pelo Rio de Janeiro, mantém sua marca registrada - humor ácido, estética expressionista e experiência sensorial - mas ganha uma nova roupagem ao ser apresentado para uma plateia ainda maior e em um palco italiano tradicional. Mesmo nesse formato, a proposta é manter a atmosfera imersiva e a proximidade entre elenco e público: parte dos espectadores terá a oportunidade de assistir à sessão diretamente no palco, tornando a vivência ainda mais intensa. 

“A ideia é comemorar o Halloween de uma forma diferente, com muito sangue falso, surpresas e efeitos inéditos. É uma noite para o público se divertir e entrar no clima, vivendo o terror pelo olhar do teatro brasileiro”, comenta o produtor Rafael Ramirez. Na trama, acompanhamos Pátrio, um jovem sem perspectivas que aceita trabalhar em uma antiga fábrica de sabonetes na misteriosa cidade de Rapsódia. Lá, descobre personagens excêntricos, artistas de cabaré e um segredo grotesco que transforma sua vida em uma sucessão de reviravoltas. Para o público, a experiência é imersiva: bolhas de sabão, folhas secas, respingos de sangue falso e elementos cenográficos inesperados transformam a sessão em uma vivência para todos os sentidos.

O elenco segue o mesmo da temporada paulistana, com Felipe Assis Brasil (Pátrio), Conrado Helt (Jeremias), Mau Alves (Tobias), Lurryan (Coné),  Andressa Secchin (Catarina), Igor Miranda (Horácio), Marília Di Lorenço (Tamara), Julia Morganti (Shana) e Luan Carvalho (Gana). O espetáculo é embalado por uma trilha sonora composta por 14 músicas originais, sendo duas inéditas, que reforçam sua força autoral com letras de Mau Alves e Sarah Benchimol – que assina ainda as composições ao lado de Tony Lucchesi.

A equipe criativa desse “terrir” se completa com a direção musical residente de Dan Motta, a coreografia de Clara da Costa, o visagismo de Alisson Rodrigues, a perucaria de Andre Goes, a iluminação de Rafael Ramirez, a cenografia - desenvolvida integralmente com materiais reciclados - de Lurryan, os figurinos de Ùga agÚ e Fê Faria e o desenho de som de Anderson Moura.


Ficha técnica
"Rapsódia - O Musical"
Direção: Mau Alves
Direção residente: Andressa Secchin
Direção musical: Tony Lucchesi
Direção musical residente: Dan Motta
Coreografias: Clara da Costa
Texto: Mau Alves
Letras: Mau Alves e Sarah Benchimol
Músicas: Tony Lucchesi e Sarah Benchimol
Iluminação: Rafael Ramirez
Designer de som: Anderson Moura
Figurinos: Ùga agÚ e Fê Faria
Visagismo: Alisson Rodrigues
Perucaria: Andre Goes
Cenário: Lurryan
Assessoria de imprensa: GPress Comunicação
Produção: Cerejeira Produções e Baudaquim Produções
Apoio: Teatro Gamaro e A Voz Em Cena
Elenco: Julia Morganti, Conrado Helt,  Andressa Secchin, Lurryan, Mau Alves, Igor Miranda, Luan Carvalho, Marília Di Lorenço, Felipe Assis Brasil e Pablo Petronilho


Serviço
"Rapsódia - O Musical" | Especial de Halloween
Data: 30 de outubro (única apresentação)
Horário: 20h30
Local: Teatro Gamaro | Rua Dr. Almeida Lima, 1176 - Mooca/São Paulo
Classificação: 14 anos
Duração: 70 minutos
Ingressos: Vendas pelo site da Sympla
https://bileto.sympla.com.br/event/111605

.: Entrevista com Aguinaldo Silva, de volta à TV Globo com "Três Graças"


Criador de clássicos como "Tieta" e "Senhora do Destino", Aguinaldo Silva está de volta com "Três Graças", nova aposta da TV Globo para o horário nobre. Foto: Globo/Edu Lopes


Dramaturgo e escritor, Aguinaldo Silva retorna à teledramaturgia da TV Globo seis anos após "O Sétimo Guardião" (2019) com a nova novela das nove, "Três Graças". Jornalista de formação e apaixonado por literatura, o autor consolidou uma das carreiras mais marcantes da televisão brasileira, com títulos que definiram épocas. Ao lado de nomes como Dias Gomes, Gilberto Braga, Leonor Bassères e Ricardo Linhares, assinou sucessos como "Roque Santeiro" (1985), "Vale Tudo" (1988), "Tieta" (1989), "Pedra Sobre Pedra" (1992), "Fera Ferida" (1993), "A Indomada" (1997), "Senhora do Destino" (2004), "Fina Estampa" (2011) e "Império" (2014) - essa última vencedora do Emmy Internacional de melhor novela.

Agora, em parceria com Virgílio Silva e Zé Dassilva, Aguinaldo apresenta uma trama contemporânea ambientada em São Paulo, que reflete o Brasil real por meio de três mulheres unidas por um mesmo destino: tornaram-se mães na adolescência e precisaram enfrentar sozinhas as desigualdades de uma sociedade que insiste em puni-las por existir. "Três Graças" mistura crítica social e folhetim clássico - marcas registradas do autor -, e promete revisitar a força feminina, a ironia e os dilemas morais que sempre fizeram parte das grandes histórias elaboradas por ele. Compre os livros de Aguinaldo Silva neste link.


Do que trata "Três Graças", a nova novela das nove? 
Aguinaldo Silva - "Três Graças" fala de três mulheres que foram mães muito cedo, aos 15 anos, que não tiveram o apoio dos pais das crianças e foram à luta, passaram por situações extremas. Elas levam uma vida muito parecida com a vida dos nossos espectadores. Ou seja, elas batalham, são otimistas, têm fé no futuro e se envolvem com histórias típicas de um folhetim. É uma ficção que tem o privilégio de poder se inspirar na realidade. Nossa protagonista, a Gerluce (Sophie Charlotte), é uma mulher inconformada com a injustiça, com as maldades que assolam sua comunidade e sua família, numa São Paulo que abriga milhões de brasileiras como ela. Ela repetiu o destino da mãe Lígia (Dira Paes): engravidou de Joélly (Alana Cabral) na adolescência. Mas, quando a gestação precoce da filha se confirma, ela vai fazer de tudo para impedir que Joélly renuncie a seus projetos e ambições, assim como ela e a mãe foram obrigadas a fazer. Ao mesmo tempo, ao se ver diante de corruptos que prejudicam uma multidão de doentes em benefício próprio e com a mãe entre a vida e a morte, Gerluce encara um dilema. Até onde ir quando se precisa batalhar pela sobrevivência?    


A novela vai trazer uma história contemporânea, que se passa na maior metrópole da América Latina, São Paulo. Que assuntos da atualidade são abordados na trama? 
Aguinaldo Silva - A novela se passa em dois ambientes: a comunidade fictícia Chacrinha, onde vivem os personagens mais carentes, e os bairros nobres de São Paulo, onde estão os responsáveis pelo crime dos remédios falsos. Esses mundos se cruzam porque Gerluce (Sophie Charlotte) trabalha na casa de Arminda (Grazi Massafera), uma das vilãs da história. Estamos criando uma novela com uma linguagem bastante popular e abrangente, que fala do dia a dia das pessoas, dos desafios que se encontram em uma grande metrópole, de quem sai às 5h da manhã e pega três ônibus para ir trabalhar. Ao mesmo tempo, a novela também fala sobre os dramas pessoais de cada um e de como é possível ser otimista e positivo diante das desigualdades e injustiças. É uma obra da atualidade, do ônibus, do metrô, do trem, mas não será uma novela naturalista: a ficção é a base para a nossa criação. Ainda assim, a trama propõe reflexões importantes a partir de temas hoje discutidos. Teremos, no núcleo das protagonistas, a questão da gravidez na adolescência; falaremos de corrupção e falsificação de remédios. Também vamos abordar aspectos da nossa sociedade. Tudo isso num contexto ficcional.  

 
A gravidez na adolescência é um tema de destaque na novela. Como surgiu a ideia de retratá-lo na obra? 
Aguinaldo Silva - Quando eu estava escrevendo "Duas Caras", por uma razão que tinha a ver com a trama da novela, fui fazer uma pesquisa na maternidade Leila Diniz, no Rio de Janeiro. Quando cheguei lá, logo cedo, tinha uma fila enorme de mulheres esperando para serem atendidas, e eu percebi que a maioria dessas mulheres eram meninas. Isso me chocou profundamente, porque eram adolescentes grávidas, de 15, 16 anos. Algumas ainda com jeito meio infantil. Um amigo que foi comigo na ocasião falou uma frase que me marcou: “Você está vendo algum homem aqui?”. Ou seja, eram mães solo, o que me tocou demais. Isso foi lá em 2007, mas eu fiquei com aquela ideia da fila de meninas grávidas à espera de atendimento da maternidade. Achei que um dia eu teria de escrever sobre elas, e foi, na verdade, desse meu compromisso que surgiram essas três Graças: três mulheres que foram mães muito precocemente, sem que houvesse nenhum homem na família que as apoiasse nesse processo.


A novela também trata de um esquema criminoso de falsificação de remédios. Você se baseou em algum episódio verídico para trazer esse assunto para a história? 
Aguinaldo Silva - Esse é mais um tema que parte da realidade para a ficção, muito embora a novela não seja um retrato fiel, porque a linguagem da dramaturgia é outra. Mas o noticiário fala de casos assim, de remédios falsificados, de apreensão, de ação policial contra fábricas clandestinas. É um assunto grave. Já houve casos no Brasil em que pessoas foram enganadas ao tomar medicamentos placebo, que não fazem efeito. Lembro do caso de mulheres que engravidaram por causa de pílulas anticoncepcionais feitas de farinha, isso em 1998, e ficaram anos buscando reparação. Nessa novela, a fábrica chama-se “casa de farinha”, porque os "medicamentos” são feitos dessa matéria-prima. A mensagem que queremos passar com essa trama é a confrontação que existe na sociedade brasileira entre as pessoas que trabalham e dão tudo de si, e pessoas muito egoístas que só visam o dinheiro e pouco se importam com quem está sendo prejudicado pelo mal que praticam.


De que forma a escultura das "Três Graças" aparece na história?
Aguinaldo Silva - A novela se chama "Três Graças" porque é o sobrenome das três protagonistas, mas também porque existe na casa da Arminda (Grazi Massafera) uma escultura neoclássica que se chama "Três Graças". Nós criamos um escultor chamado Giovanni Aranha, que é italiano, e que fez aquela obra especificamente. Arminda e Ferette (Murilo Benício) usam essa estátua de uma maneira bastante ilegal. Ela é mantida no quarto, na casa dela, e nunca é exposta. Ninguém sabe mais que essa estátua está com eles, é um mistério, porque ela guarda um segredo que vai ser revelado. Gerluce (Sophie Charlotte) será a primeira a desconfiar de seu verdadeiro valor.  


Suas novelas anteriores foram marcadas por grandes personagens, como as vilãs Perpétua, de "Tieta", Nazaré Tedesco, de "Senhora do Destino", e mulheres fortes, como Tieta, da novela homônima, e Maria do Carmo, também de "Senhora do Destino", além dos carismáticos Crô de "Fina Estampa" e o comendador Zé Alfredo, de "Império". Em que personagens está apostando em "Três Graças"? 
Aguinaldo Silva - Estamos apostando muito na protagonista, a Gerluce, que tem um caráter multifacetado e é sempre altamente positiva. Mas tem personagens muito interessantes, como a Josefa (Arlete Salles), a mãe da Arminda (Grazi Massafera). Ela sabe que a filha é uma bandida e faz o possível para infernizar a vida dela. Eu uso inclusive a suposta falta de memória, que ela realmente tem, para atrapalhar a vida da filha e castigá-la. Ela não é uma velhinha doce, ela é terrível. Tem a Arminda, que é uma daquelas minhas vilãs completamente ensandecidas, que são capazes de fazer as coisas mais absurdas e, ao mesmo tempo, parecer que são engraçadas, mas não são; são cruéis. Eu tenho toda uma linhagem de mulheres vilãs, além das heroínas, que causaram muito rumor. Foi o caso da Nazaré (Renata Sorrah em "Senhora do Destino"), que até hoje continua viva andando aí pelas ruas do Rio de Janeiro (risos).  

Como tem sido criar e escrever essa história ao lado do Virgílio Silva e do Zé Dassilva? 
Aguinaldo Silva - Tem sido muito legal, com a gente não tem tempo ruim. Começamos a trabalhar eu e o Virgílio, e então chamamos o Zé. Formamos o trio dos Silvas. É um trabalho que funciona como uma fábrica de montagem, somos três autores. Eu me acostumei a trabalhar em equipe no jornalismo. Na minha época, você tinha a obrigação de diariamente botar um jornal nas bancas, então todos trabalhavam para isso.

.: Crítica musical: Kiko Horta estreia em disco com "Sanfona Carioca"


Por
 Luiz Gomes Otero, jornalista e crítico cultural. Foto: Celso Filho

O músico José Maurício Horta, conhecido pelo nome artístico Kiko Horta, está divulgando o seu primeiro álbum solo, intitulado "Sanfona Carioca" (Selo Mestre Sala). Um trabalho resultante de uma extensa atividade musical em vários setores da cultura carioca. Kiko Horta é um dos músicos fundadores do Cordão do Boitatá, responsável por várias atividades culturais como o Baile Multicultural, realizado há 19 anos nos domingos de Carnaval, na Praça XV, no Rio de Janeiro.

Ele acumula uma prestigiosa atuação como músico e arranjador de estúdio junto a nomes como Martinho da Vila, Edu Lobo, Dona Ivone Lara, Áurea Martins, Nelson Sargento, Xangô da Mangueira, Chico Buarque, Gilberto Gil, Francis Hime, Baco Exu do Blues, Pretinho da Serrinha, Teresa Cristina, Rita Benneditto, Mauro Senise, Wagner Tiso, Cristóvão Bastos, Mart’nália, Mauricio Carrilho e Luciana Rabello, entre outros artistas. É parceiro de nomes como Hermínio Bello de Carvalho, Vidal Assis, Lazir Sinval e Marquinhos de Oswaldo Cruz.

O disco soa como uma síntese das múltiplas atividades musicais de Kiko Horta. Traz uma mistura irresistível de samba, bossa-nova, jongo, gafieira, choro, forró, jazz, presentes na sua formação musical. Com uma base segura garantida pelas atuações de Ivan Machado (baixo), Marcus Suzano (percussão) e Filipe Lima (violão sete cordas), Kiko Horta divide os improvisos com o virtuoso bandolim de Luís Barcelos. E o resultado ficou acima da média para quem curte um som instrumental.

Além das belas autorais “Recomeço” e “Forró Transcendental”, Kiko Horta, ao lado de Luís Filipe de Lima (ambos produtores do álbum), escolheram para o repertório autores que espelham uma certa carioquice em suas temáticas. Casos de “Deixa o Breque pra Mim” (Altamiro Carrilho), “Catita” (K- Ximbinho), “Chorinho de Gafieira” (Astor Silva), “Comigo é assim” (Zé Menezes), “Chorinho pro Miudinho” (Dominguinhos), “Dino Pintando o Sete cordas” (Sivuca), “Meu Lugar” (Arlindo Cruz e Mauro Diniz), “Um Tom para Jobim” (Sivuca e Oswaldinho).

"Comigo É Assim"

"Chorinho de Gafieira"

"Um Tom Pra Jobim"






 
← Postagens mais recentes Postagens mais antigas → Página inicial
Tecnologia do Blogger.