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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

.: Crítica: "Casa, Beija ou Mata", de Kate Posey, equilibra o riso e o risco


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com

Romance de estreia da canadense Kate Posey, "Casa, Beija ou Mata", lançado pela Verus Editora, diverte com o próprio absurdo. Com uma escrita que mistura o suspense dos podcasts de true crime com o charme ligeiramente debochado das comédias românticas contemporâneas, a autora constrói uma narrativa que é, ao mesmo tempo, afiada e espirituosa, como se "Killing Eve" e "Um Lugar Chamado Notting Hill" tivessem se encontrado em um happy hour literário.

A protagonista, Dolores dela Cruz, é uma mulher obcecada por crimes reais, o tipo de pessoa que sabe diferenciar um estrangulador de um esfaqueador apenas pelo padrão de comportamento da vítima. Quando o novo colega de trabalho, Jake Ripper, aparece usando luvas suspeitas e um charme que poderia matar (literalmente), Dolores decide investigar e, quem sabe, flertar com o perigo. O resultado é uma relação de gato e rato temperada com humor sombrio, tensão sexual e um timing narrativo preciso.

O que torna "Casa, Beija ou Mata" especial é o equilíbrio improvável entre o riso e o risco. Kate Posey não escreve uma sátira, tampouco um thriller convencional: ela cria um “Thromance” (mistura de thriller e romance), um gênero híbrido que brinca com o imaginário pop e desafia as fronteiras do bom comportamento literário. É uma autora que sabe rir das próprias obsessões culturais - as séries de investigação, os relacionamentos desastrosos, a ironia dos tempos digitais - sem cair na paródia fácil.

A escrita de Posey é surpreendentemente leve. O diálogo entre Dolores e Jake é o tipo de troca que faz o leitor rir, corar e desconfiar, às vezes na mesma frase. A tradução de Carolina Candido acerta o tom exato do humor, entregando uma versão em português que preserva o ritmo e o veneno da narrativa original, sem “domesticar” a voz da autora - o que é raro em um texto que depende tanto da ironia e da cadência verbal. Além do enredo engenhoso, há uma sensação de frescor, uma quebra das expectativas que se espera de um romance de estreia. Posey escreve para uma geração que consome true crime no café da manhã e acredita que o amor é uma armadilha estatística. Seu texto é pop, inteligente e perigosamente divertido.

"Casa, Beija ou Mata" é uma leitura que conquista por sua originalidade: um romance que beija o perigo, casa com o humor e mata o tédio. Kate Posey inaugura sua carreira com um livro que parece um jogo, mas é uma experiência narrativa completa - um lembrete de que, mesmo nas histórias mais sombrias, ainda há espaço para rir do que assusta. Compre o livro "Casa, Beija ou Mata", de Kate Posey, neste link.

sábado, 18 de outubro de 2025

.: Entrevista com Aguinaldo Silva, de volta à TV Globo com "Três Graças"


Criador de clássicos como "Tieta" e "Senhora do Destino", Aguinaldo Silva está de volta com "Três Graças", nova aposta da TV Globo para o horário nobre. Foto: Globo/Edu Lopes


Dramaturgo e escritor, Aguinaldo Silva retorna à teledramaturgia da TV Globo seis anos após "O Sétimo Guardião" (2019) com a nova novela das nove, "Três Graças". Jornalista de formação e apaixonado por literatura, o autor consolidou uma das carreiras mais marcantes da televisão brasileira, com títulos que definiram épocas. Ao lado de nomes como Dias Gomes, Gilberto Braga, Leonor Bassères e Ricardo Linhares, assinou sucessos como "Roque Santeiro" (1985), "Vale Tudo" (1988), "Tieta" (1989), "Pedra Sobre Pedra" (1992), "Fera Ferida" (1993), "A Indomada" (1997), "Senhora do Destino" (2004), "Fina Estampa" (2011) e "Império" (2014) - essa última vencedora do Emmy Internacional de melhor novela.

Agora, em parceria com Virgílio Silva e Zé Dassilva, Aguinaldo apresenta uma trama contemporânea ambientada em São Paulo, que reflete o Brasil real por meio de três mulheres unidas por um mesmo destino: tornaram-se mães na adolescência e precisaram enfrentar sozinhas as desigualdades de uma sociedade que insiste em puni-las por existir. "Três Graças" mistura crítica social e folhetim clássico - marcas registradas do autor -, e promete revisitar a força feminina, a ironia e os dilemas morais que sempre fizeram parte das grandes histórias elaboradas por ele. Compre os livros de Aguinaldo Silva neste link.


Do que trata "Três Graças", a nova novela das nove? 
Aguinaldo Silva - "Três Graças" fala de três mulheres que foram mães muito cedo, aos 15 anos, que não tiveram o apoio dos pais das crianças e foram à luta, passaram por situações extremas. Elas levam uma vida muito parecida com a vida dos nossos espectadores. Ou seja, elas batalham, são otimistas, têm fé no futuro e se envolvem com histórias típicas de um folhetim. É uma ficção que tem o privilégio de poder se inspirar na realidade. Nossa protagonista, a Gerluce (Sophie Charlotte), é uma mulher inconformada com a injustiça, com as maldades que assolam sua comunidade e sua família, numa São Paulo que abriga milhões de brasileiras como ela. Ela repetiu o destino da mãe Lígia (Dira Paes): engravidou de Joélly (Alana Cabral) na adolescência. Mas, quando a gestação precoce da filha se confirma, ela vai fazer de tudo para impedir que Joélly renuncie a seus projetos e ambições, assim como ela e a mãe foram obrigadas a fazer. Ao mesmo tempo, ao se ver diante de corruptos que prejudicam uma multidão de doentes em benefício próprio e com a mãe entre a vida e a morte, Gerluce encara um dilema. Até onde ir quando se precisa batalhar pela sobrevivência?    


A novela vai trazer uma história contemporânea, que se passa na maior metrópole da América Latina, São Paulo. Que assuntos da atualidade são abordados na trama? 
Aguinaldo Silva - A novela se passa em dois ambientes: a comunidade fictícia Chacrinha, onde vivem os personagens mais carentes, e os bairros nobres de São Paulo, onde estão os responsáveis pelo crime dos remédios falsos. Esses mundos se cruzam porque Gerluce (Sophie Charlotte) trabalha na casa de Arminda (Grazi Massafera), uma das vilãs da história. Estamos criando uma novela com uma linguagem bastante popular e abrangente, que fala do dia a dia das pessoas, dos desafios que se encontram em uma grande metrópole, de quem sai às 5h da manhã e pega três ônibus para ir trabalhar. Ao mesmo tempo, a novela também fala sobre os dramas pessoais de cada um e de como é possível ser otimista e positivo diante das desigualdades e injustiças. É uma obra da atualidade, do ônibus, do metrô, do trem, mas não será uma novela naturalista: a ficção é a base para a nossa criação. Ainda assim, a trama propõe reflexões importantes a partir de temas hoje discutidos. Teremos, no núcleo das protagonistas, a questão da gravidez na adolescência; falaremos de corrupção e falsificação de remédios. Também vamos abordar aspectos da nossa sociedade. Tudo isso num contexto ficcional.  

 
A gravidez na adolescência é um tema de destaque na novela. Como surgiu a ideia de retratá-lo na obra? 
Aguinaldo Silva - Quando eu estava escrevendo "Duas Caras", por uma razão que tinha a ver com a trama da novela, fui fazer uma pesquisa na maternidade Leila Diniz, no Rio de Janeiro. Quando cheguei lá, logo cedo, tinha uma fila enorme de mulheres esperando para serem atendidas, e eu percebi que a maioria dessas mulheres eram meninas. Isso me chocou profundamente, porque eram adolescentes grávidas, de 15, 16 anos. Algumas ainda com jeito meio infantil. Um amigo que foi comigo na ocasião falou uma frase que me marcou: “Você está vendo algum homem aqui?”. Ou seja, eram mães solo, o que me tocou demais. Isso foi lá em 2007, mas eu fiquei com aquela ideia da fila de meninas grávidas à espera de atendimento da maternidade. Achei que um dia eu teria de escrever sobre elas, e foi, na verdade, desse meu compromisso que surgiram essas três Graças: três mulheres que foram mães muito precocemente, sem que houvesse nenhum homem na família que as apoiasse nesse processo.


A novela também trata de um esquema criminoso de falsificação de remédios. Você se baseou em algum episódio verídico para trazer esse assunto para a história? 
Aguinaldo Silva - Esse é mais um tema que parte da realidade para a ficção, muito embora a novela não seja um retrato fiel, porque a linguagem da dramaturgia é outra. Mas o noticiário fala de casos assim, de remédios falsificados, de apreensão, de ação policial contra fábricas clandestinas. É um assunto grave. Já houve casos no Brasil em que pessoas foram enganadas ao tomar medicamentos placebo, que não fazem efeito. Lembro do caso de mulheres que engravidaram por causa de pílulas anticoncepcionais feitas de farinha, isso em 1998, e ficaram anos buscando reparação. Nessa novela, a fábrica chama-se “casa de farinha”, porque os "medicamentos” são feitos dessa matéria-prima. A mensagem que queremos passar com essa trama é a confrontação que existe na sociedade brasileira entre as pessoas que trabalham e dão tudo de si, e pessoas muito egoístas que só visam o dinheiro e pouco se importam com quem está sendo prejudicado pelo mal que praticam.


De que forma a escultura das "Três Graças" aparece na história?
Aguinaldo Silva - A novela se chama "Três Graças" porque é o sobrenome das três protagonistas, mas também porque existe na casa da Arminda (Grazi Massafera) uma escultura neoclássica que se chama "Três Graças". Nós criamos um escultor chamado Giovanni Aranha, que é italiano, e que fez aquela obra especificamente. Arminda e Ferette (Murilo Benício) usam essa estátua de uma maneira bastante ilegal. Ela é mantida no quarto, na casa dela, e nunca é exposta. Ninguém sabe mais que essa estátua está com eles, é um mistério, porque ela guarda um segredo que vai ser revelado. Gerluce (Sophie Charlotte) será a primeira a desconfiar de seu verdadeiro valor.  


Suas novelas anteriores foram marcadas por grandes personagens, como as vilãs Perpétua, de "Tieta", Nazaré Tedesco, de "Senhora do Destino", e mulheres fortes, como Tieta, da novela homônima, e Maria do Carmo, também de "Senhora do Destino", além dos carismáticos Crô de "Fina Estampa" e o comendador Zé Alfredo, de "Império". Em que personagens está apostando em "Três Graças"? 
Aguinaldo Silva - Estamos apostando muito na protagonista, a Gerluce, que tem um caráter multifacetado e é sempre altamente positiva. Mas tem personagens muito interessantes, como a Josefa (Arlete Salles), a mãe da Arminda (Grazi Massafera). Ela sabe que a filha é uma bandida e faz o possível para infernizar a vida dela. Eu uso inclusive a suposta falta de memória, que ela realmente tem, para atrapalhar a vida da filha e castigá-la. Ela não é uma velhinha doce, ela é terrível. Tem a Arminda, que é uma daquelas minhas vilãs completamente ensandecidas, que são capazes de fazer as coisas mais absurdas e, ao mesmo tempo, parecer que são engraçadas, mas não são; são cruéis. Eu tenho toda uma linhagem de mulheres vilãs, além das heroínas, que causaram muito rumor. Foi o caso da Nazaré (Renata Sorrah em "Senhora do Destino"), que até hoje continua viva andando aí pelas ruas do Rio de Janeiro (risos).  

Como tem sido criar e escrever essa história ao lado do Virgílio Silva e do Zé Dassilva? 
Aguinaldo Silva - Tem sido muito legal, com a gente não tem tempo ruim. Começamos a trabalhar eu e o Virgílio, e então chamamos o Zé. Formamos o trio dos Silvas. É um trabalho que funciona como uma fábrica de montagem, somos três autores. Eu me acostumei a trabalhar em equipe no jornalismo. Na minha época, você tinha a obrigação de diariamente botar um jornal nas bancas, então todos trabalhavam para isso.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

.: Jared Leto mergulha no código: “Tron - Ares” reacende a era digital da Disney


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com.

O universo digital volta a ser palco de uma batalha entre o real e o virtual com a estreia de "Tron - Ares" (em Portugal, "Tron: Ares - O Legado"), o terceiro filme da franquia iniciada em 1982 pela Disney. Dirigido por Joachim Rønning, o mesmo de "Piratas do Caribe: a Vingança de Salazar" (2017) e "Malévola: dona do Mal" (2019), o longa-metragem tem estreia mundial nesta quinta-feira, dia 9 de outubro, e promete expandir o universo criado por Steven Lisberger com uma abordagem mais sombria, filosófica e visualmente arrojada.

O elenco reúne Jared Leto, que interpreta o enigmático programa Ares, acompanhado de Greta Lee, Evan Peters, Cameron Monaghan, Sarah Desjardins, Jodie Turner-Smith e do veterano Jeff Bridges, que retorna ao papel de Kevin Flynn, mentor e arquiteto do mundo digital. O roteiro é assinado por Jesse Wigutow e Jack Thorne, de "Enola Holmes", e a trilha sonora - um dos pontos altos da franquia - deverá novamente mesclar eletrônica e orquestra, com participação confirmada do músico Joseph Trapanese, colaborador do duo Daft Punk em "Tron: o Legado" (2010).

As gravações de "Tron - Ares" ocorreram em Vancouver, no Canadá, após uma longa pausa provocada pela pandemia e por disputas internas na Disney sobre o rumo da franquia. Segundo o portal The Hollywood Reporter, a produção marca a tentativa do estúdio de reerguer uma de suas propriedades mais cultuadas pelos fãs de ficção científica. A revista Variety destacou que o filme explora temas contemporâneos como inteligência artificial, consciência digital e os limites éticos entre criador e criatura - assuntos que conversam diretamente com o avanço da tecnologia nos últimos anos.

Jared Leto, que também atua como produtor, afirmou em entrevista à Collider que "Tron - Ares" é “uma fábula tecnológica sobre identidade e transcendência”, e que o personagem Ares representa “a primeira conexão real entre o mundo dos humanos e o dos programas”. Ainda segundo o ator, o longa “será visualmente revolucionário, assim como o original foi nos anos 80”

Com duração de 119 minutos, segundo informações do Screen Rant, o filme terá duas cenas pós-créditos, uma delas conectando diretamente o desfecho de "Tron - O Legado" com o novo capítulo. A nova produção promete reintroduzir o público a uma estética neon reimaginada, em um embate entre carne e código que atualiza a discussão sobre o que é, afinal, ser humano em tempos de fronteiras digitais cada vez mais tênues.


Sinopse resumida de “Tron - Ares”
Após anos de silêncio do mundo digital, um programa chamado Ares é enviado ao mundo real para estabelecer contato entre humanos e inteligências artificiais, colocando em risco as fronteiras entre criador e criação.

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Ficha técnica
“Tron - Ares” | “Tron: Ares - O Legado” (Portugal)
Classificação indicativa:
12 anos
Ano de produção: 2025
Idioma: inglês
Direção: Joachim Rønning
Roteiro: Jesse Wigutow e Jack Thorne
Elenco: Jared Leto, Greta Lee, Evan Peters, Cameron Monaghan, Sarah Desjardins, Jodie Turner-Smith, Jeff Bridges
Distribuição no Brasil: Walt Disney Studios Motion Pictures
Duração: 119 minutos
Cenas pós-créditos: sim, duas

Sessões legendadas no Cineflix Santos | Sala 2
9/10/2025 - Quinta-feira: 16h00, 18h30 e 21h00.
10/10/2025 - Sexta-feira: 16h00, 18h30 e 21h00.
11/10/2025 - Sábado: 16h00, 18h30 e 21h00.
12/10/2025 - Domingo: 16h00, 18h30 e 21h00.
13/10/2025 - Segunda-feira: 16h00, 18h30 e 21h00.
14/10/2025 - Terça-feira: 16h00, 18h30 e 21h00.
15/10/2025 - Quarta-feira: 16h00, 18h30 e 21h00. Ingressos neste link.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

.: Teatro: "As Aves da Noite", de Hilda Hilst, circula em São Paulo


Espetáculo, cuja história se passa em um campo de concentração nazista, tem apresentações gratuitas em São Bernardo do Campo, Campinas, São Caetano do Sul, São Paulo e Ribeirão Preto. Foto: Heloísa Bortz


O espetáculo "As Aves da Noite", drama teatral escrito por Hilda Hilst, há 57 anos, vencedor do Prêmio APCA 2022 de Melhor Espetáculo Virtual, tem apresentações gratuitas em cinco cidades paulistas, incluindo a capital. A circulação tem início no dia 10 de outubro e segue até 02 de novembro. A encenação, que se passa em um campo de concentração nazista de Auschwitz, tem direção de Hugo Coelho e elenco formado por Marco Antônio Pâmio, Marat Descartes, Regina Maria Remencius, Rafael Losso, Walter Breda, Fernando Vítor, Marcos Suchara, Wesley Guindani e Heloisa Rocha.

A circulação começa por São Bernardo do Campo, com apresentações nos dias 10 e 11/10, sexta e sábado, no Teatro Lauro Gomes, às 20h30. Em Campinas, a sessão é no Teatro Municipal José de Castro Mendes, no dia 16/10, quinta, às 20h. Em São Caetano do Sul, ocorrem duas sessões no Teatro Municipal Santos Dumont, no dia 17/10, sexta, às 18h e às 20h. O Teatro Alfredo Mesquita, na zona norte de São Paulo, recebe três apresentações, dias 24, 25 e 26/10, sexta e sábado, às 20h, e domingo, às 19h. Fechando a circulação, a montagem ocupa o palco do Teatro Municipal de Ribeirão Preto, nos dias 01 e 02/11, sábado, às 20h, e domingo, às 18h. Este projeto tem o apoio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo e do Ministério da Cultura por meio do Edital ProAC/PNAB nº 27/2024 de Difusão e Circulação de Projetos Artísticos Culturais.

O enredo de "As Aves da Noite" parte da história real do padre franciscano Maximilian Kolbe, que apresentou-se voluntariamente para ocupar o lugar de um judeu sorteado para morrer no chamado “porão da fome” em represália à fuga de um prisioneiro. Segundo o diretor Hugo Coelho, “esta é uma versão contemporânea do texto de Hilda. Não é uma reconstituição de Auschwitz, partimos de Auschwitz. O espetáculo é um grito contra a barbárie, contra o fascismo que usa a violência como instrumento de ação política”.

No porão da fome, a autora coloca em conflito os prisioneiros condenados a morrer na cela: o Padre, o Carcereiro, o Poeta, o Estudante e o Joalheiro, que são visitados pelo Oficial da SS, pela Mulher que limpa os fornos e por Hans, o ajudante da SS. Na montagem, eles aparecem isolados, confinados em gaiolas como um signo, uma alusão à prisão onde a história se passa. “A primeira coisa que os governos totalitários e ditatoriais fazem ao prender alguém é destituí-lo de sua dignidade e submetê-lo ao sofrimento extremado, e isso os nazistas fizeram com requintes inimagináveis de crueldade”, comenta o diretor.  Segundo ele, a proposta de concepção de Hilda Hilst é muito clara, colocando as personagens em estado de reflexão sobre suas próprias condições no confinamento. A leitura que a autora faz dos aspectos éticos e humanos passa por questionamentos sobre Deus, sobre o mal e sobre a crueldade.

Nos diálogos estão o embate entre a vida e o que lhes resta, os devaneios entre o desespero e o delírio. O Poeta declama como se morto estivesse, o Estudante sonha com outro tempo, o Joalheiro ainda lembra-se da magnitude das pedras, enquanto a Mulher é humilhada em sua condição inferior. O Carcereiro, mesmo sendo um condenado, ironiza a condição dos demais e os trata com escárnio; o SS os chama de porcos e os agride e menospreza, enquanto o estado de debilidade emerge da vida e da já não existência desses humanos subjugados.

A montagem de "As Aves da Noite" busca elucidar a humanidade e densidade contida no texto, mergulhando nas possibilidades inesgotáveis do drama para emergir na poética da tragédia. “O discurso racional não dá conta da realidade. A arte tem o papel de traduzir esse discurso como uma segunda realidade que passa pela razão, mas também pelo sensorial e pela emoção”, reflete Hugo Coelho. “E temos a sorte de reunir um elenco de extrema grandeza. O talento desses atores é um pilar fortíssimo no resultado final do trabalho”.

Sobre o texto, Hilda Hilst falou: “Com 'As aves da noite', pretendi ouvir o que foi dito na cela da fome, em Auschwitz. Foi muito difícil. Se os meus personagens parecerem demasiadamente poéticos é porque acredito que só em situações extremas é que a poesia pode eclodir viva, em verdade. Só em situações extremas é que interrogamos esse grande obscuro que é Deus, com voracidade, desespero e poesia”.

O cenário, que traduz o cárcere com gaiolas humanas, foi concebido pelo diretor. O figurino (de Rosângela Ribeiro) faz alusão aos uniformes de presidiários, reforçando a imagem do encarceramento. A iluminação (de Fran Barros) dá foco a cada personagem, reforça o clima denso e claustrofóbico do ambiente, privilegiando o espaço teatral, e a trilha sonora, assinada por Ricardo Severo, traz uma canção original do texto que remete à tradição judaica, cantada pelas personagens, e segue a mesma orientação da iluminação.

Hugo Coelho afirma que o propósito do espetáculo é trazer à cena o discurso poderoso e contundente de Hilda Hilst. “'As Aves da Noite' nos faz encarar toda a barbárie do poder, do domínio, do autoritarismo, das torturas nos porões das ditaduras. Auschwitz é uma ferida aberta na humanidade para a qual é difícil encontrar palavras que a qualifique. As Aves da Noite mostra o reverso, o outro rosto da humanidade, perverso, doente e profundamente violento. Não podemos permitir que a violência e a barbárie continuem sendo normatizadas ao longo da história. Por isso essa obra, de extrema qualidade literária, é tão importante para o momento em que vivemos”, finaliza o encenador.

"As Aves da Noite", idealizado pelo produtor Fábio Hilst, teve sua primeira temporada apresentada virtualmente, devido à pandemia da covid-19. Foi gravado em vídeo, 80 anos após a morte de Maximilian Kolbe, exatamente no momento em que o mundo vivia uma experiência de confinamento. Kolbe morreu em Auschwitz, em 1941, e foi canonizado em 1982, pelo Papa João Paulo II. São Maximiliano é considerado padroeiro dos jornalistas e radialistas e protetor da liberdade de expressão.


FICHA TÉCNICA - Texto: Hilda Hilst (1968). Direção: Hugo Coelho. Elenco: Marco Antônio Pâmio (Pe. Maximilian), Marat Descartes (Carcereiro), Regina Maria Remencius (Mulher), Walter Breda (Joalheiro), Rafael Losso (Estudante), Fernando Vítor (Poeta), Marcos Suchara (SS), Wesley Guindani (Hans) e Heloisa Rocha. Direção de produção: Fábio Hilst. Assistência de direção e produção: Fernanda Lorenzoni. Cenografia: Hugo Coelho. Figurino e objetos de cena: Rosângela Ribeiro. Desenho de luz: Fran Barros. Música original e desenho de som: Ricardo Severo. Cenotecnia: Wagner José de Almeida. Serralheria: José da Hora. Pintura de arte: Alessandra Siqueira. Assistência de cenotecnia: Matheus Tomé. Confecção de figurino: Vilma Hirata e Natalia Hirata. Fotos: Priscila Prade e Heloísa Bortz. Design gráfico: Letícia Andrade. Gerenciamento de mídias sociais: Felipe Pirillo. Assessoria de imprensa: Eliane Verbena. Produção: Três no Tapa Produções Artísticas. Realização: Fomento CultSP, Governo do Estado de São Paulo através da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, Ministério da Cultura, Governo Federal - União e Reconstrução.


Serviço | Programação

Espetáculo: As Aves da Noite

Duração: 75 min. Gênero: Drama. Classificação: 16 anos.

Ingressos: Gratuitos - Bilheterias dos teatros: 1h antes das sessões.

Ingressos antecipados: Sympla - www.sympla.com.br (reserva no início de cada semana); exceto em Ribeirão Preto, pela https://megabilheteria.com.


Teatro Lauro Gomes - São Bernardo do Campo/SP

Dias 10 e 11 de outubro - Sexta e sábado, às 20h30

Rua Helena Jacquey, 171 - Rudge Ramos. São Bernardo do Campo/SP.

Tel.: (11) 4368-3483. Capacidade: 526 lugares.

Sessão com Intérprete de Libras e bate-papo com o público: 11/10 (sábado).


Teatro Municipal José de Castro Mendes - Campinas/SP

Dia 16 de outubro - Quinta, às 20h

Rua Conselheiro Gomide, 62 - Vila Industrial. Campinas/SP.

Tel.: (19) 3272-9359. Capacidade: 760 lugares.

Sessão com Intérprete de Libras e bate-papo com o público.


Teatro Municipal Santos Dumont - São Caetano do Sul/SP

Dia 17 de outubro - Sexta, às 18h e às 20h

Avenida Goiás, 1111 - Centro. São Caetano do Sul/SP.

Tel.: (11) 4221-8347. Capacidade: 370 lugares.

Intérprete de Libras: sessão das 20h.


Teatro Alfredo Mesquita - São Paulo/SP

Dias 24, 25 e 26 de outubro - Sexta e sábado, às 20h, e domingo, às 19h

Avenida Santos Dumont, 1770 - Santana. São Paulo/SP.

Tel.: (11) 2221-3657. Capacidade: 198 lugares.

Intérprete de Libras, audiodescrição e bate-papo com o público: 26/10 (domingo).

 

Teatro Municipal de Ribeirão Preto - Ribeirão Preto/SP

Dias 01 e 02 de novembro - Sábado, às 20h, e domingo, às 18h

Praça Alto do São Bento, s/nº - Campos Elísios. Ribeirão Preto/SP.

Tel.: (16) 3625-6841. Capacidade: 515 lugares.

Intérprete de Libras e bate-papo com o público: 02/11 (domingo).


terça-feira, 30 de setembro de 2025

.: "PomPoko": o que acontece quando os guaxinins declaram guerra ao descaso


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com.

Entre os filmes mais ousados e politicamente afiados do Estúdio Ghibli, "Pom Poko: a Grande Batalha dos Guaxinins" ("Heisei Tanuki Gassen Ponpoko"), dirigido por Isao Takahata, ocupa um lugar singular. Ao mesmo tempo em que traz humor, fantasia e delicadeza, a animação de 1994 é uma denúncia contundente da destruição ambiental promovida pelos seres humanos. Poucas animações conseguem equilibrar tanto lirismo e crítica social sem soar panfletárias, e essa é a maior força deste filme que, mesmo quase três décadas depois do lançamento, segue atual e incômodo.

A história acompanha uma comunidade de guaxinins que vê seu território ser engolido pela expansão imobiliária e pela urbanização desenfreada. Confrontados com a perda de suas florestas, eles decidem se rebelar contra os humanos. Para isso, recorrem a poderes mágicos de transformação - ora assumindo formas humanas, ora criando ilusões capazes de assustar os invasores. O conflito, que poderia soar apenas como uma parábola infantil, é tratado com densidade e ambição narrativa, resultando em uma fábula com contornos épicos, mas também documentais.

A construção da narrativa é um dos pontos altos. Entre momentos de ação e fantasia, o filme intercala narrações explicativas, quase jornalísticas, que descrevem o avanço da urbanização e os impactos ambientais da exploração desmedida. Essa mistura de encantamento e realidade dá ao longa uma força singular: não é apenas uma história para entreter, mas um registro artístico e crítico sobre uma era em que a natureza foi (e ainda é) colocada em segundo plano. Nesse aspecto, "Pom Poko" lembra o minidocumentário brasileiro "Ilha das Flores" (1989), de Jorge Furtado, que também costura humor, ironia e denúncia para escancarar verdades desconfortáveis.

Apesar do tom político, há espaço para ternura e sensibilidade. Os guaxinins não são apenas guerreiros improváveis, mas também figuras cheias de amor, medos e contradições. O respeito ao feminino, presente em personagens que equilibram força e delicadeza, confere profundidade emocional ao enredo. E a própria cultura japonesa, que sempre enxergou os animais como espíritos e guardiões, serve de base para a mitologia que sustenta a trama.

É impressionante como Takahata consegue conduzir a narrativa em diferentes registros: da comédia escrachada ao lirismo contemplativo, passando pelo tom quase didático sem jamais perder a essência. O resultado é uma obra que, em vez de envelhecer, ganhou camadas de urgência. Quando vemos os guaxinins lutando contra o desaparecimento de uma floresta, é impossível não pensar nas questões ambientais que ameaçam o planeta hoje - desmatamento, mudanças climáticas, perda de biodiversidade.

"Pom Poko" é daqueles filmes que ultrapassam a categoria de “animação” para se tornarem documentos culturais. Ele mostra que a fantasia pode ser a ferramenta mais eficaz para revelar a realidade, que os bichos podem ser espelhos da humanidade, e que a luta pela preservação do meio ambiente não é apenas um tema da década de 1990, mas um chamado contínuo. Em última instância, o filme lembra que todos estão conectados à natureza e que ignorar isso é cavar nossa própria ruína. "Pom Poko" é para rir, emocionar-se e, sobretudo, refletir. Uma obra a ser estudada, revisitada e, quem sabe, levada como alerta para as gerações que ainda virão.



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quinta-feira, 11 de setembro de 2025

.: Entrevista: ZéVitor desmonta a própria torre para erguer "Imago Mundi”


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Fotos: Lucca Mezzacappa


Um álbum que surge de uma carta de Tarô desmoronando, de violões que carregam fantasmas de outras décadas, de aboios que ecoam como fósseis sonoros e de espaços silenciosos e familiares que só encontram voz na poesia. "Imago Mundi", o trabalho mais recente de ZéVitor, é mais que um conjunto de faixas. O álbum costura tradição viva e memória íntima em busca de um Brasil pessoal, seja ele medieval ou sertanejo, galego ou nordestino, melancólico ou solar, ou tudo isso misturado.

Na live session filmada em plano sequência, o disco se revela sem cortes, como quem encara o risco de ser visto sem máscara. Nesse cenário, ZéVitor reconstrói, arqueólogo e inventor,  as peças de um quebra-cabeça cultural que atravessa séculos e territórios. Entre colaborações que vão da voz do pai, o ator e músico Jackson Antunes, à artista galega Antía Muíño, o músico afirma um lugar raro: o de quem não se contenta com a repetição do que já foi ouvido. Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, ele fala sobre ritos de passagem, tradições que respiram, rebeldias estéticas e tormentas criativas que ainda pedem para virar música.

Resenhando.com - "Imago Mundi" parece ser mais do que um disco – soa como um rito de passagem. O que você precisou enterrar ou perder dentro de si para que esse álbum pudesse nascer?
ZéVitor - Muito legal você puxar esse termo “rito de passagem”, quando pensamos nas culturas através do mundo nos deparamos frequentemente com rituais que representam mortes simbólicas… talvez o art1ista morra em si mesmo várias vezes ao longo da sua trajetória… Eu sinto como se fosse uma nova vida, já que esse disco nasce com todo um novo processo pessoal de feitura artística completamente diferente de tudo que eu já havia experimentado… encontrei essas canções no fundo do fundo, quando por completo me desconheci e o fazer havia perdido o sentido… Nesse ponto houve um rompimento quase que completo com o que me fazia de alicerce, é como aquela carta do Tarô, A Torre… tudo vem ao chão e recomeça-se… "Imago Mundi" é o primeiro passo desse recomeço artístico, a porta que dá passagem a esse tempo novo… que está completamente ligado a "re-memória" daquilo de mais íntimo que sou, a volta para as minhas origens para a partir daí pensar na originalidade do meu fazer.


Resenhando.com - A live session foi gravada em plano sequência, um recurso estético que não permite cortes nem esconderijos. Que parte sua ficou exposta nesse processo - e você deixaria que alguém revisse esse plano sequência emocional da sua vida?
ZéVitor - Sem dúvidas o processo do ao vivo coloca a prova todos os envolvidos para que a capacidade de estarmos em sintonia possa transformar o momento em música… Momento que tem menos artifícios para esconder imperfeições… Mas sendo a música que busco fundamentada na busca pela verdade, a "não-perfeição" é acolhida pela expressão… Captura-se o momento, seja o melhor dia ou não, como as coisas tem de ser ali e agora. Sobre deixar alguém reviver o meu plano sequência emocional, acho que as canções acabam sendo mais interessantes do que isso, devo à invenção a razão desse parecer, já que criar, tem muito mais possibilidades… Todos temos nosso baú de dores incompartilháveis… Compartilho minha música, onde acho que posso servir um pouco mais de poesia do que a realidade crua e nua.  


Resenhando.com - Ao escolher instrumentos históricos e resgatar sons esquecidos, você parece dizer que o Brasil ainda guarda músicas que não ouvimos. Qual é a canção que o país insiste em calar?
ZéVitor - Acho que a ordem industrial de para onde a música precisa seguir para vender mais acaba por sufocar muitas experimentações… A música que vem de fora viraliza as nossas formas de fazer… Somos um povo extremamente complexo musicalmente, cheios de requintes rítmicos… então tenho me voltado culturalmente para o nosso país para criar a partir dele e de suas histórias… Sobre os instrumentos, essa espécie de arqueologia do som é uma parte de um processo em leque… É visual, sonoro, histórico. O timbre desses instrumentos antigos parecem nos contar sobre um futuro que não continuou… um tempo que se imaginou mas nunca houve pois tudo se deu diferente… nNsso vejo a  possibilidade de dar continuidade às buscas por música brasileira.


Resenhando.com - Você colocou seu pai, Jackson Antunes, para declamar versos em “Lira”, uma faixa sobre perdas. Quais silêncios ou segredos familiares ecoam nessa parceria artística?
ZéVitor - Meu pai sempre foi um guardião de histórias. Muitas dores que atravessaram nossa família nunca foram ditas em voz alta, mas a arte acaba funcionando como um espaço possível para que elas existam. Quando meu pai declama em “Lira”, sinto como se aquilo que não expomos ao mundo no cotidiano encontrasse lugar na música. É uma forma de quebrar o silêncio deixando que a poesia carregue o peso do indizível.


Resenhando.com - Em “πNeo” você incorpora aboios e sons ancestrais, como se atualizasse uma memória coletiva em loop. Como diferenciar tradição viva de folclore embalsamado?
ZéVitor - Acho que tradição viva é tudo aquilo que respira do passado ao presente… a tradição que serve a comunidade e segue em contextos reais… A tradição viva no meu entendimento pode ser ainda de duas formas: ela mantida como é, para dar longa vida a sua origem e preservação a sua originalidade… e ela transformada na ótica de seu tempo, para que tenha possibilidades de pesquisa em sua expressão. Em diferença, o folclore embalsamado que no meu entendimento desse termo refere-se a uma forma de se tentar preservar algo morto para propósito de exibição… me parece essa coisa fria, numa mera representação de algo um tanto sem vida do que deveria ser aquilo… Troca-se o sangue por formol para evitar o que é desagradável e caber dentro de um ambiente de exposição sem muito interesse real em estabelecer uma ligação profunda…
 

Resenhando.com - “Kintsugi” encerra o disco com uma colaboração com Antía Muíño e uma metáfora japonesa sobre reconstrução. O que em você está colado com ouro?
ZéVitor - Tudo aquilo que um dia se partiu. Porque tudo que quebra a gente recolhe pra levar ou jogar fora. Algumas coisas acabam saindo de forma diferente do que gostaríamos, perdemos tantas coisas pelo caminho… nessa metáfora de aprendermos a lidar com as cicatrizes, todos nós vamos tendo que fazer algo com elas. Sobre a música, talvez ela possa explicar melhor a sua existência do que eu… Acho que ela tem o poder de reconfortar com uma beleza melancólica que no fim tem uma mensagem positiva sobre reconstrução e esperança. Eu escrevi essa música quando estávamos já no processo de feitura do álbum, e todo dia mostrava para o Aureo Gandur, produtor do disco, e tentava mostrar o quão me parecia especial… ela acabou por entrar como a última faixa do disco… lembro que ficamos por duas noites retrabalhado o arranjo dos violões e nessa altura era impossível pensar o trabalho sem a sua presença. É motivo de alegria compartilhar essa canção com Antía Muíño, que trouxe através de sua voz toda a ancestralidade e futuro da cultura galega… essa música nos fez cruzar o oceano e sua estreia foi no Festiletras, um festival na Aldea do Couto à convite de Antía. Conhecer a Galícia, foi ter contato com o próprio conceito do disco, em uma travessia transformadora e profunda. Kintsugi foi escolhida para estar na playlist "O Melhor da Aquarela Brasileira 2024" (Spotify) e fiquei feliz pois é uma oportunidade de mostrar que nossas raízes também podem estar além de nossas fronteiras.


Resenhando.com - Se o álbum fosse uma carta para o futuro, que faixa você gostaria que sobrevivesse a esse tempo líquido que esquece tudo rápido?
ZéVitor - Eu gostaria que “Deixe-me Ir” sobrevivesse, mas se ela se for, acho que é a música que pode ser redescoberta numa cápsula, e daqui a tantos e tantos anos poderá ainda narrar os dramas da humanidade de maneira contemporânea ou ser um retrato do nosso tempo… As bombas, as balas, a guerra e a corrida do dinheiro… Tenho dificuldade de acreditar numa melhora substancial do comportamento humano ainda mais com a forma como os donos do mundo decidem tocar o barco.


Resenhando.com - Ao dirigir a arte da live e os próprios arranjos, você se colocou em várias frentes criativas. Onde termina o ZéVitor artista e começa o ZéVitor obsessivo?
ZéVitor - Acho que a tentativa de controle a qualquer custo é sofrimento na certa, eu me cerco de pessoas que confio… O cenário foi fruto de uma direção simbólica, as coisas foram aparecendo e cada um presente colaborou com a sua sensibilidade. Quanto aos arranjos seria um exagero dizer que participei da direção, que é obra do meu grande amigo e produtor musical Aureo Gandur! Certamente me é impossível não palpitar e participar ativamente das decisões… fico muito empolgado com as escolhas de instrumentação para cada música, ainda mais nesses formatos de ao vivo, onde podemos reorganizar a forma de fazer… E sobre ser obsessivo, se fizesse uma tradução de obsessivo para excessivamente preocupado com algo… Poderia dizer que estou bastante envolvido com a minha música como objeto de pesquisa, ando restaurando instrumentos históricos com o objetivo de dar continuidade ao seu som, pensando sobre esse processo criativo e os caminhos inventivos para nossa música de hoje e de amanhã que não esteja dominada por modismos.


Resenhando.com - Você reúne em um mesmo projeto a cultura galega, sertaneja, nordestina, medieval e pop. Isso é curadoria pessoal ou rebeldia estética?
ZéVitor - É uma curadoria pessoal do que tocam as raízes desse trabalho e todo o processo que estamos envolvidos, acho que pode ser considerado uma rebeldia em relação as pedidas do mundo… Afinal são músicas para serem ouvidas em estado de envolvimento e atenção para todas essas coisas que as formam. Na Galícia, se deu surgimento da nossa língua portuguesa, os primeiros textos estavam lá escritos em galego-português na terra dos trovadores… A saudosa professora Jerusa Pires disse uma vez em uma aula, que nunca sentiu tanto Elomar do que quando desembarcou na estação de trem de Santiago de Compostela… O nosso sertão é medieval, a Espanha conta "Don Quixote" e nós lemos "Grande Sertão: Veredas"… as nossas violas caipira, nordestina… e todas as suas afinações descendem das violas Braguesas, Amarantinas, Da Madeira… todas violas portuguesas que acabaram afinadas pelas terras que as acolheram aqui no Brasil… não se trata então de saltos em todas as direções para encontrar uma estética extravagante, mas sim de acreditar estar numa linha de reconexão com um grande rio que se estende do mais remoto até o presente para formar a nossa cultura… Eu me sinto ligando alguns pontos desse grande mapa para encontrar um tesouro que é a própria música. Os instrumentos surgem como elos para trabalhar com essa tradição viva, acreditando que isso seja uma das bases mais fortes para se pensar o futuro… tradição em estado de movimento. O retrato do que estamos tentando fazer me parece uma raiz que tenta se projetar ao futuro…


Resenhando.com - Depois de “Imago Mundi”, o que ainda não foi dito por ZéVitor, mas já o atormenta querendo virar música?
ZéVitor - Acho que muitas coisas ainda não foram ditas, eu componho mais músicas do que sou capaz de dar conta… Existem vários projetos prontos esperando sua vez e seu lugar… Mas todas as músicas se encontram unidas no mesmo propósito de exploração e experimentação com base nesse processo que pude compartilhar um pouco nessa entrevista… O segundo passo desse caminho já começa a se insinuar em Gandaia, que é um disco mais solar, tropical e selvagem que estou trabalhando… Onde a variação de música para música já começa a desenhar sonora e poeticamente novas linhas desse mapa… Fiz uma expedição com o Aureo Gandur (produtor musical) e o Iuri Nascimento (engenheiro de som e músico) que estão comigo nessa pesquisa sonora, dirigimos por 21 horas para encontrar um lote de instrumentos que estavam sendo tratados como sucata… no meio de coisas mais que especiais descobrimos um instrumento chamado Oficleide, um sopro que parou de ser fabricado em 1900, de timbre doce e profundo… um som em extinção… esse instrumento só está presente no disco novo da forma que está por causa dessa inquietação, dessa coisa que atormenta, dessa voz que pede coragem… de confiar nas partes que não controlamos e de nos agarrarmos a um propósito maior que as coisas passageiras… de reverenciarmos e seguirmos nossos próprios caminhos dando continuidade para a imaginação.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

.: Entrevista: Delphis Fonseca transforma Sinatra em experiência viva no palco


Por Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com. Fotos: divulgação

Há quem diga que certas canções sobrevivem ao tempo porque carregam em si um sopro de eternidade. Mas o que acontece quando um artista decide não apenas cantar esses clássicos, e sim dialogar com eles, emprestando corpo, voz e alma a melodias que atravessaram gerações? É esse o risco - e também a ousadia - de Delphis Fonseca, que leva ao palco do Teatro Jardim Sul, em São Paulo, o espetáculo “Sinatra & Cia – Os Maiores Sucessos da Era de Ouro”.

Mais do que um tributo, trata-se de um mergulho afetivo em memórias que pertencem a todos nós, embaladas por Sinatra, Elvis, Nat King Cole, Charles Aznavour e tantos outros. Delphis, que também é jornalista, locutor e apresentador, sabe como poucos transformar um show em experiência: não basta interpretar, é preciso contar histórias, criar cumplicidade, surpreender. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, o artista fala de bastidores, improvisos, riscos e segredos de quem vive entre a reverência ao passado e a urgência do presente. Afinal, como ele mesmo afirma, “as grandes canções não têm prazo de validade”.


Resenhando.com - Se Frank Sinatra pudesse assistir ao seu show “Sinatra & Cia” escondido na plateia, qual você acredita que seria a primeira reação dele: aplaudir, corrigir ou dar uma piscadela cúmplice?
Delphis Fonseca - (Risos) Puxa, pergunta interessante! Já fico imaginando a cena! (Risos) Eu não sou um cover de Frank Sinatra, nem me atreveria. Sou um apaixonado pela boa música, e grande parte dela vem desse artista incrível. Gosto de músicas do mundo inteiro: canto em português, inglês, francês, Italiano, espanhol e japonês. E também tenho meu repertório próprio nesses idiomas com canções com alguns parceiros musicais. Gosto de toda música que me toca o coração. Mas, voltando a sua pergunta, acredito que se o Sinatra estivesse na plateia do meu show, seria melhor eu não saber… (Risos) Essa situação me lembrou uma passagem que aconteceu com o Sinatra no início de carreira, quando ele ainda não era o dono da fama. Ele estava cantando em um jazz bar quando entrou o Cole Porter. Quando ele viu o famoso compositor entrando, falou logo pra banda: “Vou cantar 'Night and Day'". Esse era um dos grandes sucessos escritos por Porter na época. Sinatra não sabia a letra direito e acabou se enrolando na apresentação e improvisando como pode. Cole Porter achou aquilo muito engraçado, pois percebeu que Sinatra estava tentando impressioná-lo. E aí começou uma grande parceria, que anos depois, iria conquistar o mundo. Agora, na verdade, Sinatra tinha um temperamento forte, e muitas vezes, imprevisível. Gosto de imaginar que ele sentiria meu respeito pelo seu legado, e que me apoiaria, mas não sem me chamar de canto e dar uma boas duras! (Risos).


Resenhando.com - Você se define mais como um “tradutor de emoções” ou como um “ator que canta”? Afinal, interpretar clássicos imortais exige muito mais do que afinação.
Delphis Fonseca - Você tem toda a razão! É muito mais que só afinação, perfeito. Eu me defino como intérprete. Amo interpretar, como ator, cantor, palestrante, apresentador, comunicador, essa é a minha veia. Música é vida, e a vida de cada um de nós, por si só, é sempre um grande e exclusivo clássico. Se você entende isso, tudo se encaixa na sua interpretação. Sobretudo, interpretar histórias que agreguem emoções profundas, sejam elas de amor, alegria e, também de tristeza; uma vez que a Vida é uma somatória de todas essas emoções se revezando de forma randômica. As canções tristes fazem parte dessa mesma estrada, onde logo alí adiante, virá uma outra trazendo a alegria, a esperança e o amor de volta à cena.


Resenhando.com - Na era do streaming e do consumo descartável, o que significa insistir na ideia de que “as grandes canções são eternas”? É um ato de resistência cultural?
Delphis Fonseca - De forma nenhuma. Eu não resisto às mudanças. Eu procuro entendê-las e transformá-las em algo adequado às minhas capacidades e objetivos. Resistir às mudanças é desistir de viver nesse mundo que muda a cada instante. Eu canto músicas contemporâneas também: gosto de Ed Sheeran, Adele, Bruno Mars, Sam Smith, Robbie Williams e outros. Mas, mudar não necessariamente significa jogar fora tudo o que foi vivido, e sim aprender outras coisas e fundí-las em um nova criação, potencializar tudo aquilo em novo cenário cultural ainda mais rico. O chamado “descartável" sempre existiu, não é novidade. Entendo que ele traga um registro de momentos superficiais da cultura naquele momento, e nada além. Por isso, é imediatamente reconhecido pelo público. Mas, quando esse momento passa, não deixa sua marca mais profundo no emocional das pessoas, se torna obsoleto. A verdade é que não há receita de sucesso, seja ele instantâneo e passageiro, e, muito menos, duradouro a ponto de se tornar um clássico.


Resenhando.com - Há espaço para improviso num show de tributo, ou seguir a partitura com precisão é uma forma de respeito? Você já quebrou protocolos no palco e surpreendeu o público?
Delphis Fonseca - Sem dúvida, isso no que eu acredito e é a forma que interpreto. Talvez, não haja esse espaço em um show cover, de personificação, onde o público espera ouvir o artista original. No meu caso, sou intérprete, e como tal, me dou a liberdade de deixar a minha emoção trabalhar comigo de forma autêntica. Quando eu canto, eu me emociono de fato, não simulo isso. Emoção só é, de fato, emoção se for real, e a platéia sente isso de imediato. Acho que isso seja respeitar a obra do autor, é permitir à ela cumprir o seu papel junto ao público: emocionar. Não penso, necessariamente, em quebrar protocolos só pra ser diferente. Mas, é da minha natureza não me prender a regras que me vão contra a minha identidade. Eu converso muito com o público durante o show, conto histórias da minha vida, das músicas, divido pensamentos, peço opiniões do público. E brinco: “Não se preocupem, eu também vou cantar hoje!" (risos). Eu respeito e sou muito grato ao público que me acompanha, que vai aos meus shows, adoro interagir com ele. Não digo que essa seja a forma certa de se fazer, mas é assim que eu faço, essa é a minha verdade.


Resenhando.com - Elvis, Nat King Cole, Charles Aznavour… cada um deles tinha também suas sombras pessoais. Quando você canta esses ícones, pensa mais no mito ou no ser humano?
Delphis Fonseca - Todos temos nossas sombras. Todos, sem exceção. Cabe a cada um de nós conseguir iluminá-las, mas cada qual a sua própria. Nossas sombras dizem respeito somente à nós mesmos, desde que, obviamente, não afete as vidas de outras pessoas. O que chamamos de "mito" é uma pessoa, como todas as outras, mas que diferente da maioria, traz consigo a necessidade de expressar sua arte em forma de música, e sofre inúmeras pressões que o próprio meio impõe, tudo isso somado aos seus próprios desafios particulares de vida. Cada um tem uma forma de se comportar diante disso tudo. Toda essa vivência, dá a ele a bagagem emocional para ser quem ele é artisticamente. Portanto, isso é muito particular. Não posso mistura isso com a minha vida, ou então estaria procurando interpretar as canções como ele, e isso só teria validade se eu fosse um “impersonator”. Não tenho nada contra a esse tipo de trabalho, aliás, gosto muito quando ele é bem feito. Por exemplo, o trabalho feito pelo Dean Zee, vivendo Elvis Presley, é maravilhoso. Faz com respeito e com primor. Cada um na sua.

Resenhando.com - O espetáculo acontece em São Paulo, mas a lista de artistas que você interpreta atravessa fronteiras. Qual foi a canção internacional que mais mexeu com plateias brasileiras? E com você?
Delphis Fonseca - Não tenho uma única música, mas muitas! rs Tous Les Visages De L’Amour (She), de Charles Aznavour é uma canção de amor sensacional e que eu amo e o público também. Tem mais impacto em francês. Ela tem tudo a ver comigo, sou romântico por natureza. "Bridge Over Troubled Water", de Paul Simon e Art Garfunkel, é outra canção que faz muito sucesso com o público. Ela é realmente muito impactante e com uma letra linda, que muitos conhecem. "That's Life" é uma música de vida. É divertida, mas muito profunda. Foi resgatada dos anos 70 para ser tema do primeiro filme do Coringa. É uma música incrível! Vou cantar todas elas nesse show.


Resenhando.com - Você também é jornalista, locutor e apresentador. O que o Delphis comunicador emprestou ao Delphis cantor - e vice-versa?
Delphis Fonseca - Eu acredito que somos o que somos devido a tudo aquilo que vivenciamos em nossa existência, desde antes mesmo de nos reconhecermos por gente. Tudo aquilo que fazemos na vida, seja em âmbito pessoal ou profissional, real ou virtual, tudo aquilo que aprendemos, forma quem nós somos. Tudo se mistura. Essas atividades que você citou: jornalista, apresentador, cantor. Todas elas são funções de comunicação, cada qual da sua forma, dentro de seu próprio cenário, mas são atividades onde uma pessoa se comunica com várias outras. Então, eu diria que eu unifiquei tudo isso em uma única atividade onde eu apresento minhas interpretações musicais, contando histórias e entretendo o público com boa música.


Resenhando.com - O palco exige presença. Mas fora dele, no silêncio, qual é a música que você canta só para si, quase como uma prece íntima?
Delphis Fonseca - Uma música que eu sempre gostei foi "Canção da América" de Milton Nascimento, esse gênio da música. A letra fala de relacionamento humano, de amor e de amizade de verdade, exatamente como eu acredito que deva ser e como procuro vivenciar.


Resenhando.com - Se tivesse de incluir no repertório um hit da música pop atual - digamos, de Lady Gaga, Adele, Bruno Mars ou qualquer outro artista, nacional ou internacional - qual você ousaria transformar em “canção eterna”?
Delphis Fonseca - "Photograph", do Ed Sheeran. Acho que ele é um artista incrível!


Resenhando.com - Você já cantou com orquestra, quinteto, piano solo… mas qual seria a formação mais “maluca” com a qual toparia revisitar os clássicos? Talvez um DJ, um trio de jazz ou até uma escola de samba?
Delphis Fonseca - Recentemente regravei "Tous Les Visages de L’Amour" em um ritmo mais para cima, uma versão pop. Está no meu Spotify. Também, demos novas roupagens para "Blue Velvet", "Garota de Ipanema", em português e em inglês; e outras que ainda serão lançadas. Músicas próprias e inéditas também estão em estúdio e logo serão lançadas. Agora eu fiquei impressionado com a sua pergunta! Tá me espionando?? (Risos). É que, entre outras coisas, estou fazendo um trabalho com um DJ muito conhecido em São Paulo, que ainda não posso revelar. Tem fusão musical vindo por aí! E acho que você vai gostar!

sábado, 30 de agosto de 2025

.: Físico e diplomata, Ernesto Mané lança "Antes do Início" na Tapera Taperá


Físico e diplomata brasileiro-guineense conversa com José Henrique Bortoluci sobre seu livro de estreia, que entrelaça reflexões sobre identidade, racismo e a busca pelas raízes paternas. Foto: divulgação

O físico e diplomata Ernesto Mané lança nesta quarta-feira, 3 de setembro, às 18h30, na livraria e espaço cultural Tapera Taperá, "Antes do Início", seu livro de estreia publicado pela Tinta-da-China Brasil. O encontro será mediado pelo sociólogo, professor e escritor José Henrique Bortoluci, autor de "O Que É Meu". Os dois devem falar da figura do pai na literatura, ensaio autobiográfico, física, entre outros temas de interesse comum. Leia a entrevista com ele neste link> .: "Antes do Início": Ernesto Mané encara o passado com olhos de futuro.  

Em "Antes do Início", Mané narra sua jornada pessoal em busca de suas raízes na Guiné-Bissau. A obra mescla diário de viagem e ensaio autobiográfico, enquanto narra a própria experiência ao visitar pela primeira vez a terra de seu pai em 2010. Nascido no Brasil, de mãe paraibana e pai guineense, Mané sempre teve uma inquietação profunda: conhecer o outro lado da kalunga - termo que designa a travessia atlântica que tantos africanos fizeram ao longo dos séculos.

Seu pai, da geração responsável pela independência da Guiné-Bissau, imigra para o Brasil nos anos 1970 graças a uma bolsa de estudos do Itamaraty, em busca de uma formação acadêmica internacional de alto nível. Em São Paulo, acaba sendo repelido pelo racismo nas salas de aula e corredores da universidade, e abandona o jovem Ernesto e a família. Constitui uma nova família em Cabo Verde, e novamente a abandona. Seria um “sacana”, como dizem alguns, ou apenas alguém que tentava salvar a própria pele em meio à barbárie das guerras coloniais portuguesas? O que têm a dizer os amigos e parentes que ficaram na Guiné-Bissau sobre este homem que parece ter abandonado a todos, mas que é lembrado e mencionado no tempo presente, como se sempre estivesse ali?

Para Mané, conhecer a realidade da Guiné e da família que vive ali traz desalento e dor, frustra expectativas, amplia os questionamentos e o faz revisitar memórias de infância. A paternidade e o divórcio recente o fazem olhar de outra maneira para o pai e para os enredos familiares.

Tendo sofrido racismo desde criança no Brasil, ele se choca ao ser chamado de “branco” nas ruas de Bissau, pelo modo de se vestir e se comportar. Aprende a comer com as mãos, da mesma tigela dos parentes reunidos à mesa. Conhece a bolanha, a plantação de arroz junto à qual vivem seus avós em condições extremamente precárias. Um dia ele se vê no transporte público carregando pelos pés um presente que ganhou: uma galinha viva, cena comum nas ruas de Bissau. As contradições e possibilidades da Guiné chamam a atenção do jovem cientista. Parece-lhe evidente o potencial cultural e político do crioulo, idioma que é falado por toda a população, mas que seu pai não lhe ensinou e não é sequer adotado como uma das línguas oficiais do país.

Entre as muitas decisões que Mané - sobrenome de origem balanta, uma das etnias que compõem a população da Guiné-Bissau - toma a partir da viagem está o pedido de um passaporte da Guiné-Bissau para ter dupla cidadania. Se a história e a política, conforme atestam as páginas de Antes do início, contribuíram para acentuar a distância entre África e Brasil, Mané nos mostra de forma notável que a literatura é uma linguagem privilegiada para nos trazer notícias do outro lado da kalunga.

O debate sobre ausência paterna, história e ancestralidade será aprofundado no encontro com Bortoluci, que também já explorou o tema em seu livro "O que É Meu" (Fósforo, 2023), no qual reconstitui a vida do pai caminhoneiro e, com isso, uma parte da história brasileira. A conversa abordará as trajetórias que conectam Brasil e Guiné-Bissau, explorando como ambos os autores revisitaram suas origens para construir narrativas literárias. Compre o livro "Antes do Início", de Ernesto Mané, neste link. 


Sobre o autor
Ernesto Mané (João Pessoa, 1983) é brasileiro e guineense. Doutor em física nuclear pela Universidade de Manchester, no Reino Unido, realizou pós-doutorado no laboratório canadense Triumf. Ingressou na carreira diplomática em 2014, por meio do Programa de Ação Afirmativa para Afrodescendentes do Instituto Rio Branco. Foi pesquisador visitante na Universidade de Princeton, nos EUA, entre 2019 e 2020. Também em 2019, foi reconhecido pelo Mipad (Most Influential People of African Descent) como um dos cem afrodescendentes com menos de quarenta anos mais influentes do mundo na área de política e governança. Serviu na Embaixada do Brasil em Washington entre 2021 e 2025, e atualmente serve na Embaixada do Brasil em Buenos Aires. Antes do início é seu livro de estreia.

Sobre o mediador
José Henrique Bortoluci
é escritor, doutor em sociologia pela Universidade de Michigan e professor da FGV. Ele é autor de "O Que É Meu" (Fósforo, 2023) e da série de ensaios Geração Democracia (revista piauí, 2025), entre outros. 


Serviço
Lançamento do livro "Antes do Início" com Ernesto Mané
Mediação: José Henrique Bortoluci
Data: 3 de setembro, quarta-feira
Horário: 18h30
Local: Tapera Taperá – Av. São Luís, 187 – 2º andar, loja 29. República / São Paulo

domingo, 10 de agosto de 2025

.: "Antes do Início": Ernesto Mané encara o passado com olhos de futuro

Por Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: Valeria Fiorini

Doutor em física nuclear, diplomata de carreira, pesquisador em centros de excelência como o CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear) e a Universidade de Princeton - Ernesto Mané poderia, com facilidade, ser apenas um desses nomes que figuram em listas internacionais de prestígio, como a dos 100 negros mais influentes do mundo segundo a plataforma global MIPAD (Most Influential People of African Descent). Mas ele decidiu se mover por outro campo de força: o das memórias partidas.

Em "Antes do Início", livro de estreia dele publicado pela Tinta-da-China Brasil, Ernesto embarca em uma travessia que vai além do Atlântico. Vai do abandono ao pertencimento, do racismo velado às feridas expostas, da ciência para a espiritualidade, em uma escrita híbrida que combina diário de viagem, ensaio e confissão. Ao retornar à Guiné-Bissau em busca da família paterna, o autor confronta heranças esquecidas, desmancha mitos familiares e apresenta uma África real - nem exótica, nem idealizada - onde a fome e a alegria dividem o mesmo prato.

Filho de uma paraibana e de um guineense que o deixou aos sete anos, Ernesto Mané não se contenta em ser um sobrevivente da meritocracia. Quer ser ponte. Ou, como sugere nas páginas do livro escrito por ele, uma espécie de embaixador informal entre dois mundos que se evitam: o Brasil que apagou a África da memória e a África que não reconhece o Brasil como semelhante.

Nesta entrevista exclusiva ao portal Resenhando.com, ele fala sobre relações interrompidas, a difícil arte de construir identidade em terra movediça e os desafios de existir entre continentes, línguas, códigos e silêncios. Porque, às vezes, antes do início, há uma urgência: a de não esquecer. Compre o livro "Antes do Início", de Ernesto Mané, neste link.


Resenhando.com - Você é doutor em Física Nuclear e diplomata. Agora se lança como autor de um diário afetivo sobre ancestralidade. Onde termina o cientista cético e começa o filho órfão de continente, tentando religar os fios rompidos da Kalunga?
Ernesto Mané - Da maneira como vejo, existe um contínuo entre o cientista e o filho da diáspora africana. Quando fui estudar física na Europa, me sentia incomodado com todo o processo. Havia uma relação quase colonial, em que eu, um jovem negro vindo de um país periférico, estava sendo “civilizado” pelos europeus. Essa tensão sempre esteve presente. Por outro lado, desde o final da adolescência vinha nutrindo o desejo de conhecer a Guiné-Bissau e minha família paterna, de modo que só consegui reunir as condições materiais para realizar a viagem depois de ter completado o doutorado.


Resenhando.com - 
No livro, seu pai surge como uma figura dividida entre a fuga e o abandono. Que palavras o Ernesto de hoje, pai e diplomata, diria ao pai que partiu quando você tinha sete anos?
Ernesto Mané Diria para ele ainda que, embora eu hoje entenda mais sobre as complexidades da vida, ainda tenho dificuldade de entender a escolha que ele fez de abandonar seus filhos tanto da África quanto os do Brasil, sobretudo se considerar que morávamos na mesma cidade, em João Pessoa. Sua falta foi sentida e precisávamos de uma referência e de alguém que nos protegesse do racismo e da branquitude. Na falta dele, tive que aprender a lidar com essas questões do jeito mais doloroso.


Resenhando.com - Você já foi chamado de “macaco” nas ruas do Brasil e de “branco” nas ruas de Bissau. O que significa para você habitar essa encruzilhada racial em que nenhuma identidade parece bastar?
Ernesto Mané Não me resta dúvidas de que sou um homem fenotipicamente negro, embora seja mestiço. Ter sido chamado de “branco” pelas crianças da Guiné-Bissau tem muito a ver com o fato de eles considerarem o Brasil como “terra de gente branca”, ou seja, não está presente no imaginário de uma criança guineense que o Brasil seja um país majoritariamente negro - o segundo maior país negro depois da Nigeria. Além disso, ser “branco” está relacionado a uma questão de poder, e eu, pelo fato de ser estrangeiro, projetava esse poder através da forma de me vestir, de falar e de portar comigo uma câmera fotográfica digital - todos códigos relacionados com o poder financeiro e com a branquitude no imaginário deles.


Resenhando.com - Em “Antes do Início”, você revela que ninguém em sua família africana toca tambores ou veste roupas tradicionais, mas você ensina capoeira angola às crianças da Guiné. A cultura afro-brasileira está mais próxima da África do que a própria África?
Ernesto Mané Algumas mulheres da minha família, inclusive a minha avó, usam roupas tradicionais. De fato, não tive contato com nenhum parente que tocasse instrumentos musicais locais. Mas isso não os torna menos africanos. São indivíduos pertencentes a um continente que possui uma diversidade cultural riquíssima e que continua sendo a fonte de referência para toda a diáspora, incluindo o Brasil.


Se fosse possível colocar seu livro nas mãos de uma única pessoa - viva ou morta - para que ela o lesse com atenção, quem seria essa pessoa?
Ernesto Mané Seria o meu pai, seguramente. Na verdade, o diário de viagem que serviu de inspiração para o livro ficou por algum tempo guardado junto com alguns dos meus pertences na casa do meu pai. Tenho algumas evidências de que ele talvez tenha lido o diário, embora nem ele nem eu jamais tenhamos puxado o assunto em nossas conversas.


Em algum momento, entre o transporte de uma galinha viva e os silêncios da memória familiar, você se sentiu um estrangeiro em sua própria origem?
Ernesto Mané Eu me senti bastante acolhido pela minha família africana. A etnia a qual pertenço, a balanta, é patrilinear, de modo que todos reconheceram que eu era guineense, a única diferença sendo a de que eu fui “parido fora” da Guiné-Bissau. Hoje, minha leitura sobre os silêncios da memória familiar tem muito a ver com o dano causado pelo colonialismo ao tecido social e familiar do país, que sofreu com a presença colonial portuguesa por mais de 500 anos. Esse dano causou e causa muita dor, sofrimento e vergonha para todos os afetados, de modo que eu entendo que estava sendo poupado pela minha própria família dos detalhes acerca de um capítulo triste da história recente da Guiné-Bissau.


Você é um diplomata que lida com desarmamento e segurança internacional, mas seu livro desmonta outro tipo de armamento: o emocional, o simbólico, o familiar. Foi mais difícil negociar com líderes mundiais ou com seus próprios fantasmas?
Ernesto Mané Se, por um lado, minha decisão de publicar livro sobre a viagem que fiz a Guiné-Bissau foi fruto de uma negociação interna, em que tive que lidar com meus próprios fantasmas, por outro, a questão do armamento nuclear está intimamente vinculada com as relações coloniais. Portugal, por exemplo, já fazia parte da Organização do Tratado do Atlantico Norte - OTAN, durante a luta pela independência da Guiné-Bissau. Cabe lembrar que a OTAN é uma aliança fundada em cima do poderio nuclear de seus membros. Atualmente vivemos em um período de grande tensão internacional, que tem colocado em xeque a segurança de toda a humanidade. Meu trabalho como diplomata e como físico tem sido guiado pela convicção de que essas armas precisam ser eliminadas, pois representam um grande risco existencial. Sem dúvidas, essa tarefa é urgente e muito mais difícil do que lidar com meus próprios fantasmas, uma vez que o livro foi publicado, mas os países nuclearmente armados seguem aumentando seus arsenais.


O crioulo é falado por todos na Guiné-Bissau, mas não é língua oficial. No Brasil, o racismo é falado em silêncio, mas rege as relações sociais. Em qual idioma se traduz melhor o que é ser negro entre dois mundos?
Ernesto Mané Fiz essa reflexão no livro, em que verifiquei ser o crioulo a língua franca da Guiné-Bissau, ao passo que o português ainda está associado com a língua do colonizador. Registrei que minha avó simplesmente se recusava a falar o português, ao mesmo tempo em que há guineenses que deixam de ensinam o crioulo a seus filhos, por acreditarem ser o português o melhor veículo para ascensão social. No Brasil, país que se tornou independente a mais tempo, acabamos por moldar o português através das contribuições dos africanos trazidos para cá e das nações originarias, como nos ensinou Lélia Gonzales. Em ambos os casos, o crioulo e o português brasileiro trazem consigo a marca da resistência contra o colonizador.


Sua trajetória parece negar a ideia de origem fixa - como se você tivesse que começar sempre outra vez. Qual é o seu ponto de partida hoje?
Ernesto Mané Essa sensação de ter que recomeçar constitui experiencia definidora dos processos diaspóricos. Ao longo de cinco séculos, sofremos violências físicas, psicológicas, epistêmicas e materiais. Muitas vezes, o que temos é apenas nosso corpo. Meu ponto de partida é saber que carrego comigo esse legado e tenho que seguir a diante, reconstruindo pontes e criando possibilidades de existir. Isso passa, por exemplo, em ser capaz de garantir as condições para que as próximas gerações não tenham que começar do zero.


Para quem acredita na meritocracia como dogma, sua trajetória seria um exemplo da famosa “superação”. Mas você parece rejeitar esse rótulo. O que existe por trás do homem que venceu - e o que ele ainda precisa perder para se reencontrar?
Ernesto Mané Existe uma pessoa que cobra de si o tempo inteiro excelência em tudo o que faz, porque não consegue esquecer uma frase que ele escutou ainda quando criança, vinda de pessoas próximas: “o preto quando não caga na entrada, caga na saída”. Essa frase é de um fatalismo gigantesco, porque não importa o quanto você seja um “vencedor”, a branquitude sela o seu destino, ao dizer que você, em dado momento, vai colocar tudo a perder, pelo fato de ser preto. Eu trabalho tanto para assegurar que esse dia nunca chegue, mas, se chegar, preciso ser capaz de reivindicar minha humanidade, porque como cantava o mestre Jorge Bem, “errare humanum est”.


terça-feira, 5 de agosto de 2025

.: Fernanda Emediato fala sobre o livro que devolve a infância ao Brasil


Por 
Helder Moraes Miranda, especial para o portal Resenhando.com. Foto: divulgação

Em um tempo em que infância e poesia parecem cada vez mais deslocadas da paisagem cotidiana, o livro "As Pipas de Portinari" surge como um gesto raro: não é apenas um livro, mas uma travessia entre a arte e as brincadeiras de criança. A obra organizada por Fernanda Emediato e Leo Cunha reúne dez autores brasileiros em um voo poético sobre as telas do pintor Candido Portinari. São textos de Cíntia Barreto, Dilan Camargo, Henrique Rodrigues, João Bosco Bezerra Bonfim, José Carlos Aragão, Marco Haurélio, Roseana Murray e Sônia Barros. Mais do que uma antologia, o livro é um gesto de reconexão com o Brasil que brinca, sonha e sobrevive. 

Com formas diversas - haicais, cordéis, sonetos, parlendas, poemas visuais e limeriques - a obra transforma o olhar do artista em linguagem acessível, multiforme e profundamente brasileira. Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, Fernanda Emediato, que começou a trajetória editorial ainda menina - ela é filha do escritor Luiz Fernando Emediato - e hoje dirige a Tróia Editora, fala sobre a gênese do projeto, a relação entre arte e literatura, o papel da infância e os riscos de tentar voar com uma pipa em um país em que o vento, às vezes, sopra contra. Compre o livro "As Pipas de Portinari" neste link.


Resenhando.com - Se Portinari pintava o Brasil que doía e sonhava, “As Pipas de Portinari” pinta um Brasil que ainda se permite brincar? Ou é um suspiro poético diante de um país que insiste em cortar as linhas da infância?
Fernanda Emediato - Vejo "As Pipas de Portinari" como uma ode à infância. A ideia do livro nasceu em 2022, quando visitei a exposição “Portinari para Todos”. Havia um espaço encantador chamado “Quintal do Portinari”, voltado especialmente às crianças. Naquele dia, fui com meu filho Raul, então com cinco anos, e minha irmã Serena, de seis. Começamos a visita por esse quintal lúdico, onde as crianças corriam de um lado para o outro, encantadas, interagindo com as obras do artista. Uma das estações convidava os pequenos a desenhar sua própria pipa, que depois ganhava vida em uma das telas de Portinari - um momento mágico. Mas o mais surpreendente foi o que veio depois: avançamos para a parte principal da exposição e, mesmo diante das obras mais densas e simbólicas, as crianças continuaram engajadas, comentando, observando, se emocionando. Foi comovente perceber que a arte, quando acessível, toca todas as idades. Ali, antes mesmo de sairmos da mostra, nasceu a ideia de unir poesia e pintura em uma obra literária que resgatasse a potência sensível da infância brasileira. Este livro é um suspiro poético, sim, mas é também um grito de urgência. Um apelo para que a infância não seja esquecida. Que não cortemos as linhas que a fazem voar. A arte, o brincar, o encontro entre crianças precisam ser preservados. Precisamos tirá-las das telas, devolvê-las ao vento, ao chão, às pipas. Nós - pais, educadores, cuidadores - temos a responsabilidade de manter viva essa essência. Não podemos continuar tentando silenciar nossas crianças com tecnologia. Elas têm direito à alegria, à poesia, ao sonho - e também ao tédio. Sim, ao tédio de contar palitos no restaurante durante conversas que não as interessam, de observar formigas no chão, de contar postes pela janela do carro durante longos trajetos.


Resenhando.com - Você cresceu em meio a livros, editores e ideias. O que a pequena Fernanda, que publicou seu primeiro livro aos nove anos, diria ao ver que um projeto seu agora dialoga com um gigante das artes como Portinari?
Fernanda Emediato - De fato, eu passei a vida cercada por livros - mesmo antes de saber ler, já abria meus exemplares e recriava as histórias a partir das ilustrações. Aos 14 anos, comecei a trabalhar com meu pai, na Geração Editorial, e quando chegou a hora de me formar em Publicidade, precisei decidir: seguir no caminho da comunicação ou continuar aprendendo o ofício de editar livros. Um momento marcante foi quando ajudei meu pai a editar a obra "As Maluquices do Imperador", de Paulo Setúbal. Fizemos uma edição especial, com pinturas da época, e mesmo sendo uma obra em domínio público, ela se destacou justamente pela escolha das imagens. Ali eu aprendi que as pinturas também contam histórias - e que a união entre palavra e imagem pode transformar uma leitura. Hoje, como editora, gosto muito de usar essa estratégia em obras de domínio público: resgatar não só a literatura clássica, mas também as artes visuais. Trabalhar com as obras de Candido Portinari foi uma experiência profundamente tocante. E ter o apoio, a generosidade e a confiança de João Candido Portinari foi essencial para tornar esse projeto possível. Sou imensamente grata por isso. Portinari se importava com as crianças. E isso é algo que temos em comum. Esse projeto é todo voltado a elas. É uma ponte entre o olhar da arte e o olhar da infância - e acredito que a pequena Fernanda de nove anos, que publicou seu primeiro livro ainda criança, se emocionaria ao ver que sua paixão por palavras e imagens a levou até aqui.


Resenhando.com - Há algo de contrarrevolucionário em apostar em poesia para crianças num tempo de TikTok, fake news e hiperconectividade?
Fernanda Emediato - Olha, hoje em dia, lançar qualquer obra literária já é, por si só, um ato contrarrevolucionário. O mercado editorial vive um momento muito delicado. As vendas caíram cerca de 45% e, segundo a 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 53% dos entrevistados não leram sequer um trecho de livro no último ano. Onde estão os nossos leitores? As listas de mais vendidos seguem dominadas por livros de colorir - o que não é um problema em si, mas revela uma busca por algo rápido, efêmero. E eu me pergunto: cadê os leitores que amam palavras? Cadê as crianças e os jovens que mergulham nas histórias com o mesmo brilho nos olhos que têm ao abrir um aplicativo? As pessoas precisam se reconectar com a leitura. Precisam lembrar que um livro pode trazer muito mais satisfação - e transformação - do que um vídeo de 15 segundos. O que falta, muitas vezes, é só encontrar o gênero certo. Tem literatura para todo mundo: de Sabrina a Agatha Christie, dos clássicos “cabeças” à ficção leve, da não-ficção à fantasia, autores internacionais e nacionais - é impossível que alguém não encontre seu gênero favorito e se divirta com ele. E o mais triste é perceber que até quem já era leitor está se afastando dos livros, como se esquecesse da própria essência. Hoje, eu vivo essa agonia. 


“As Pipas de Portinari” é também um manifesto?
Fernanda Emediato - O mercado editorial parece estar murchando diante dos nossos olhos. Os programas de aquisição pública de livros estão desaparecendo. Os editais estão sendo encerrados. Muitas editoras estão vivendo uma fase melancólica - quase uma resistência silenciosa. Por isso, sim,  "As Pipas de Portinari" é também um manifesto. Um grito poético. Uma aposta radical na infância, na arte e na palavra. É dizer: "ainda dá tempo! Ainda podemos voar!".


Resenhando.com - Por que reunir tantos estilos poéticos e formas tão distintas? Foi uma escolha estética, política ou um desejo de descomplicar a arte para todos os públicos - inclusive os que têm medo de poesia?
Fernanda Emediato - Quando tive a ideia do projeto, meu objetivo era unir arte e poesia. Sempre acreditei que um poema pode contar a história de uma pintura de forma mais sensível, mais ampla - criando pontes entre palavra e imagem, entre memória e imaginação. Também queria que o livro pudesse ser usado como ferramenta pedagógica nas escolas, tocando leitores de diferentes idades e repertórios. Para me ajudar nessa missão, convidei o escritor Leo Cunha para organizar a obra comigo. Conversamos bastante sobre qual seria a melhor faixa etária para dialogar com as pipas - e foi ele quem assumiu com sensibilidade e inteligência a curadoria dos poetas. Leo foi brilhante ao trazer diversidade geográfica, estética e afetiva para a seleção. Reunimos vozes de diferentes cantos do Brasil, e cada poeta pôde escolher a tela que mais o tocava e o estilo poético com que desejava conversar com ela. O resultado foi uma coletânea rica, vibrante e plural. Há cordel, haicai, soneto, verso livre, adivinha, parlenda, quadrinha, décima, limerique e poema visual - cada forma com sua própria melodia e o seu modo único de tocar o leitor. E quem dá vida a esse arco-íris de linguagem, além de mim e de Leo Cunha, são poetas contemporâneos que admiro profundamente: Cíntia Barreto, Dilan Camargo, Henrique Rodrigues, João Bosco Bezerra Bonfim, José Carlos Aragão, Marco Haurélio, Roseana Murray e Sônia Barros. Sim, essa escolha foi estética, pedagógica e também política: porque é urgente descomplicar a poesia, torná-la acessível, brincante, viva. Há muita gente que tem medo de poesia - como se fosse difícil demais, ou elitista demais. Mas a poesia pode ser simples, leve, divertida. Pode emocionar sem explicar tudo. E é isso que queremos mostrar com "As Pipas de Portinari".


Resenhando.com - Em um país em que as políticas públicas de cultura são tão instáveis, como foi lidar com três frentes de fomento (ProAC, Aldir Blanc e Lei Rouanet)?
Fernanda Emediato - O projeto demorou quase três anos para se concretizar. Eu poderia ter lançado a obra sem apoio de políticas públicas, mas, justamente pela importância do conteúdo e pelo apelo simbólico, decidi aguardar e insistir. A primeira vez que o inscrevi no ProAC, ele foi reprovado - teve uma boa pontuação, mas não foi suficiente para aprovação. Mesmo assim, não desisti. Aprimorei o projeto, esperei mais um ano e, nesse meio-tempo, também consegui viabilizá-lo pela Lei Rouanet. A espera valeu a pena. Hoje, boa parte da tiragem impressa está sendo distribuída gratuitamente. E no próximo mês, o livro estará disponível também em formato digital com descrição de imagens, gratuito para download pela Amazon. Além disso, a obra está sendo adaptada para audiolivro com acessibilidade, que será disponibilizado gratuitamente no YouTube. Também teremos um vídeo-aula sobre Portinari e poesia, disponível para qualquer pessoa, e um caderno de atividades para crianças, tanto impresso quanto digital, para download livre. Mesmo com acabamento de luxo e capa dura, o livro físico também tem um preço acessível: está à venda por R$ 49,90. Isso é fruto de uma escolha consciente: acessibilidade em todos os sentidos - estética, econômica, pedagógica e tecnológica.


Ainda dá para sonhar em alto nível com incentivo público ou é preciso ser contorcionista cultural?
Fernanda Emediato - Acho que o maior segredo para trabalhar com incentivo público é manter o foco no público. O papel do produtor cultural é distribuir cultura com qualidade - e se empenhar para que ela chegue, de fato, às pessoas. Sim, as políticas públicas são instáveis, nem sempre justas e quase nunca fáceis de acessar. Mas com amor, persistência e compromisso com o bem comum, a gente chega lá.


Resenhando.com - Se o Brasil fosse uma tela de Portinari hoje, que cores estariam mais gastas? E que verso você escreveria sobre ela?
Fernanda Emediato - As cores mais gastas seriam justamente o verde, o amarelo e o azul - e isso me entristece profundamente. Durante muito tempo, essas cores eram celebradas com orgulho, especialmente nos esportes, como símbolo de união. Mas hoje, elas carregam disputas, bandeiras ideológicas, rupturas. Perderam o brilho, o afeto. O que antes era de todos, agora parece dividido. O verso que eu escreveria seria uma paráfrase do início da minha parlenda no livro: “Um, dois... ela se foi?” Como quem pergunta: e a nossa alegria? E o nosso Brasil? Mas eu sigo acreditando. Ainda dá tempo de resgatar o amor pelo país - e não um amor vazio ou de ocasião, mas aquele que valoriza nossos artistas, escritores, professores, atores, artesãos, agricultores, cuidadores. O Brasil tem tudo o que precisamos: alma, talento e beleza. Só falta devolver às nossas cores o que elas sempre representaram: esperança, criação e pertencimento.


Resenhando.com - Por que ainda é tão difícil unir literatura e artes visuais de forma realmente integrada nas escolas?
Fernanda Emediato - Essa é realmente uma batalha difícil. Na minha opinião, mais do que medo ou teimosia institucional, o que existe é despreparo - e isso só se resolve com formação e valorização dos professores. É preciso investir mais em quem está na ponta: oferecer treinamento de qualidade, incentivo, tempo para estudar, liberdade criativa. Não adianta exigir inovação se os educadores estão sobrecarregados, mal remunerados ou sem apoio. Sou apaixonada pela filosofia Waldorf, e meu filho estuda em uma escola assim desde a Educação Infantil. Lá, a arte é usada como pano de fundo para tudo: matemática, linguagem, ciências, história. E isso faz uma diferença imensa na forma como as crianças aprendem e se relacionam com o mundo. Se as escolas tradicionais tivessem um pouco mais disso - mais espaço para o sensível, para o estético, para o simbólico - seria maravilhoso. Acredito, sim, que um dia chegaremos lá. Acompanho de perto o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e sei que há boas intenções. Mas também vejo com preocupação a aposta excessiva em livros digitais convertidos em HTML. Sou totalmente a favor da tecnologia quando ela é uma ponte de acessibilidade. Mas sou crítica do uso de conteúdos digitais como substitutos do livro físico em sala de aula. Nada substitui o vínculo concreto com o objeto-livro - com o virar da página, com o toque, com a presença da arte no papel. Literatura e artes visuais nasceram juntas. Separá-las foi um erro do sistema. Reuni-las exige coragem, preparo e, acima de tudo, confiança na sensibilidade das crianças.

Resenhando.com - “As Pipas de Portinari” traz uma carta emocionante do filho do pintor. Para você, que cresceu com a figura paterna tão presente no mundo editorial, o que significa esse gesto de João Candido Portinari? Foi também um aceno simbólico de pai para filho?
Fernanda Emediato - A carta do João Candido Portinari para seu pai é emocionante em muitos aspectos. É um texto que carrega amor, memória e uma busca sincera por reconexão. Já assisti a diversas palestras do João, e todas me tocaram profundamente - são sempre generosas, inspiradoras e carregadas de afeto. O trabalho de resgate que ele faz da obra e da figura de Portinari é um gesto de amor filial, mas também de amor ao Brasil. Ele não está apenas preservando a memória de um artista - está dizendo: este país tem raízes, tem arte, tem beleza que não podemos esquecer. Meu trecho favorito da carta é este: "Até que, no ano passado, comecei a te reencontrar. Aos poucos, foi se esboçando em mim a necessidade de te buscar. Buscar você, buscar o Brasil". Esse trecho me tocou profundamente. Eu me identifiquei. Como filha de um escritor e editor muito conhecido, também carrego essa herança com orgulho. Os prêmios que meu pai recebeu, as obras que escreveu, o que ele construiu - tudo isso me acompanha. Muitas vezes discordamos (aliás, acho que discordamos de quase tudo! risos), mas temos algo essencial em comum: o amor pelos livros e a vontade de fazer a literatura chegar às pessoas. Vivendo no mundo editorial, vejo muitos herdeiros apagarem as vozes dos seus pais - deixando de autorizar o uso de seus textos ou ilustrações, muitas vezes pensando apenas em questões monetárias. Isso me entristece, porque acredito que todo artista carrega, no fundo, o desejo de ver sua obra difundida, compartilhada, viva. Por isso, sim - vejo essa carta também como um aceno simbólico de pai para filho. E, para mim, poder ter esse gesto dentro da obra "As Pipas de Portinari" é um presente. Porque é, no fundo, uma carta sobre pertencimento, reconciliação e continuidade - valores que eu também carrego, como filha, como mãe, como editora.


Resenhando.com - A arte pode ser libertadora - mas também pode ser domesticada. Como você evita que um projeto como este vire apenas “conteúdo pedagógico” e perca sua alma poética?
Fernanda Emediato - A arte pode - e deve - entrar nas escolas. Mas ela precisa chegar como experiência sensível, não apenas como tarefa ou prova. Para mim, o maior cuidado é esse: preservar a alma da obra. A poesia não é feita para ser decodificada como fórmula, mas para ser sentida, lida em voz alta, desenhada, reinventada. "As Pipas de Portinari" foi pensada para dialogar com o universo escolar, sim - mas como uma ponte, não como uma cartilha. Sou totalmente a favor de que a literatura esteja nas escolas - desde que respeite a infância, a subjetividade e o tempo de cada leitor. A arte não deve ser domesticada, nem usada como um “treinamento para o Enem”. Ela precisa provocar, encantar, abrir perguntas. Acredito, sim, que uma obra pode ser usada pedagogicamente sem perder a força poética - desde que o educador esteja comprometido com isso. Por isso, insisto tanto em produzir também materiais de apoio com sensibilidade, como os cadernos de mediação, os audiolivros acessíveis, as videoaulas criativas.


Resenhando.com - Se você tivesse que resumir o livro em um bilhete que voasse preso na rabiola de uma pipa, o que escreveria para os leitores do futuro?
Fernanda Emediato - Se eu tivesse que resumir o livro em um bilhete preso na rabiola de uma pipa, eu escreveria: “Nem toda linha aprisiona. Algumas ensinam a voar”. E, logo abaixo: “Saiam das telas, entrem nos livros”. Porque "As Pipas de Portinari" é exatamente isso: um convite ao voo. Um chamado para que as crianças e os leitores do futuro não se esqueçam do corpo, do vento, da arte, da palavra. Que saibam que há outros caminhos - mais lentos, mais belos, mais vivos - do que os oferecidos pelas telas.

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