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quinta-feira, 6 de novembro de 2025

.: Crítica: "O Agente Secreto" é filmaço imperdível com a cara do Brasil

Cena de "O Agente Secreto", em cartaz na Cineflix Cinemas de Santos


Por: Mary Ellen Farias dos Santos, editora do Resenhando.com

Em novembro de 2025


O filme nacional com a cara do Brasil, "O Agente Secreto", protagonizado por Wagner Moura é um completo deleite cinematográfico que dá orgulho das produções brasileiras, dos minutos iniciais ao último segundo de duração. Facilmente classificado como filmaço, dirigido por Kleber Mendonça Filho (Bacurau), a produção ambientada de forma ousada em Recife entrega uma rica trama capaz de estabelecer diversas conexões com o público.

Nos primeiros minutos, num Fusca amarelo, Marcelo (Wagner Moura) vê um corpo estendido no chão arenoso de um posto de estrada, coberto por um jornal. É esta cena que dita o rumo da história, servindo como que uma espécie de dica do que acontecerá com o professor especializado em tecnologia. Em viagem de fuga, ele é obrigado a enfrentar um passado conflituoso, ritmando um alucinante destino ao homem.

Para tanto, ele tenta se mudar para São Paulo e recomeçar a vida. Rendendo sequências tocantes como a em que ele reencontra o filho, grande fã do sucesso de cinemas da época, "Tubarão". O garoto que vai no banco de trás do carro, sentado justamente no meio do banco traseiro, apoia os braços nos bancos do motorista e carona, com um olhar cheio de encanto, compartilha sonhos com o pai. Linda sequência em que a relação pai e filho chega a parecer inabalável.

Em plena semana do Carnaval na quente e agitada capital pernambucana, Marcelo chega de modo clandestino, numa vizinhança cheia de segredos. Com ajuda, assume um posto de trabalho e passa a buscar informações da própria mãe. Contudo, a mira acaba direcionada para ele, passando a ser espionado, colocando a vida em risco, assim como os que lhe cercam.

No clima contínuo de pura tensão gerada de modo orgânico, o longa transborda brasilidade nas falas, trabalhando o lúdico de uma lenda, no caso, a da perna peluda que entra na história dentro de um tubarão. "O Agente Secreto" homenageia o cinema, não por somente fazer referência ao longa de Steven Spielberg, mas também por ter o espaço como cenário, uma vez que o sogro do protagonista, Alexandre, trabalha como projecionista de cinema.

Nada no longa sobra. Tudo se conecta com excelência. No gato com duas caras, batizado com dois nomes, há o retrato da ambiguidade da vida, destacando o certo e o errado. Afinal, Marcelo compra briga ao enfrentar grandões endinheirados e seus desmandos, o que coloca a vida de Marcelo de pernas para o ar. No entanto, "O Agente Secreto" vai além desta trama frenética da caça, pois nos dias atuais, apresenta duas jovens trabalhando na digitalização do conteúdo ocorrido nos anos 70.

Assim, leva para o cinema brasileiro a paixão atual pelo gênero crime real ("true crime"). Popular e capaz de gerar debates, ao inserir a temática em "O Agente Secreto", Kleber Mendonça Filho ainda lança provocações sobre as histórias vividas por gerações anteriores e seu legado, quando parte dela é apagada. Filmaço imperdível!


"O Agente Secreto". Gênero: thriller, drama. Diretor: Kleber Mendonça Filho. Elenco: Wagner Moura, ao lado de Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone. Sinopse: Em 1977, Marcelo trabalha como professor especializado em tecnologia. Ele decide fugir de seu passado violento e misterioso se mudando de São Paulo para Recife com a intenção de recomeçar sua vida. Marcelo chega na capital pernambucana em plena semana do Carnaval e percebe que atraiu para si todo o caos do qual ele sempre quis fugir. Para piorar a situação, ele começa a ser espionado pelos vizinhos. Inesperadamente, a cidade que ele acreditou que o acolheria ficou longe de ser o seu refúgio.


O Resenhando.com é parceiro da rede Cineflix Cinemas desde 2021. Para acompanhar as novidades da Cineflix mais perto de você, acesse a programação completa da sua cidade no app ou site a partir deste link. No litoral de São Paulo, as estreias dos filmes acontecem no Cineflix Santos, que fica no Miramar Shopping, à rua Euclides da Cunha, 21, no GonzagaConsulta de programação e compra de ingressos neste link: https://vendaonline.cineflix.com.br/cinema/SAN.

Trailer de "O Agente Secreto"



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domingo, 2 de novembro de 2025

.: Crítica: "Springsteen: Salve-me do desconhecido" fundamenta depressão

 
Cena de "Springsteen: Salve-me do desconhecido", em cartaz na Cineflix Cinemas de Santos


Por: Mary Ellen Farias dos Santos, editora do Resenhando.com

Em novembro de 2025


A cinebiografia "Springsteen: Salve-me do desconhecido", dirigida por Scott Cooper, também ator, roteirista e produtor americano apresenta um recorte marcante na história de Bruce Frederick Joseph Springsteen, mais conhecido como o cantor Bruce Springsteen, quando a música e a vivência dele com o pai foram reviradas enquanto preparava o álbum "Nebraska", em 1982, o que aflorou um lado depressivo e complicado para quem o cercava.

Com uma fotografia impecável, a produção com direção de arte de Stefania Cella entrega locações realistas ainda que não mais existam. Por meio da recriação, do icônico Asbury Park e seu carrossel coberto, no Carousel House, em Nova Jersey, a telona de cinema estampa cenas belas e ultra românticas entre o jovem Bruce (Jeremy Allen White) e Faye (Odessa Young). Contudo, vale ressaltar que na personagem estão reunidas várias das mulheres com quem o cantor esteve ao lado, logo, a Faye com carinha de Debbie Harry nunca existiu.


Em meio a uma personagem criada e recriações de lugares nos anos 80, o diretor Scott Cooper insistiu que o filme fosse gravado em locações reais em Nova Jersey, incluindo Freehold, Asbury Park, com o Stone Pony, o calçadão, a Convention Hall, o Frank's Deli, além de outras cidades, como Nova Iorque e Los Angeles, para garantir a autenticidade da história. De fato, não há como passar impune com o visual de "Springsteen: Salve-me do desconhecido", além do figurino impecável que a todo momento faz ver o verdadeiro cantor na atuação de Jeremy Allen White. Seja na jaqueta de couro preta, a calça justinha no bumbum ou a camisa xadrez. Tudo está lá.

A luta do cantor contra a depressão toma a narrativa de "Springsteen: Salve-me do desconhecido" e torna a produção sufocante, despertando no público o desejo de poder socorrer a voz de sucessos como "Dancing In the Dark ", "Glory Days", "Streets of Philadelphia", que não estão na trilha sonora do filme. Contudo, a grande vedete é "Nebraska", uma vez que é o centro da trama, a feitura do álbum. Na trilha sonora do longa também estão "Born in The U.S.A.", "Hungry Heart", "Lucille" e outras, inclusive de outros artistas como por exemplo, Dobie Gray com "Drift Away".

"Springsteen: Salve-me do desconhecido" envolve durante 1 hora e 59 minutos de duração, seja por caminhar numa fase da história da música americana e suas influências no mercado da época, mas por também focar nas relações tão difíceis de serem mantidas, ainda que seja entre pai e filho e as dificuldades de quem sofre de depressão. O longa é simplesmente excelente. Imperdível!


"Springsteen: Salve-me do desconhecido" (Deliver Me From Nowhere). Direção: Scott Cooper Roteiro: Scott Cooper, baseado no livro Deliver Me from Nowhere: The Making of Bruce Springsteen's Nebraska de Warren Zanes. Gênero: Drama, Biografia, Musical. Duração: 2 horas. Ano de Lançamento: 2025 (no Brasil, estreou em 30 de outubro de 2025). Distribuição: Disney / 20th Century Studios. Elenco Principal: Jeremy Allen White como Bruce Springsteen Jeremy Strong como Jon Landau (empresário de Springsteen), Paul Walter Hauser como Mike Batlan, Stephen Graham como Douglas "Dutch" Springsteen (pai de Bruce), Gaby Hoffmann, Odessa Young. Sinopse:  A jornada de Bruce Springsteen na criação de seu álbum de 1982 "Nebraska", que surgiu enquanto ele gravava "Born in the USA" com a E Street Band.

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Trailer de "Springsteen: Salve-me do desconhecido"


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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

.: Crítica: "Se Não Fosse Você" resgata gênero romance com trama de traição

Cena de "Se Não Fosse Você", em cartaz na Cineflix Cinemas de Santos


Por: Mary Ellen Farias dos Santos, editora do Resenhando.com

Em outubro de 2025


Uma história de amor cheia de reviravoltas e capaz de arrancar suspiros na telona Cineflix Cinemas. O romance "Se Não Fosse Você", sai do mundo dos livros escritos por Colleen Hoover e vai para a telona transbordando paixões adormecidas (tanto de uma história iniciada há 17 anos como numa segunda que acontece detalhadamente diante do olhar do público). Em 1 hora e 56 minutos, a adaptação cinematográfica dirigida por Josh Boone, o mesmo do sucesso "A Culpa é das Estrelas", entrega de modo envolvente um drama familiar tão comum a ponto de permitir identificação com os personagens em certas situações.

Após apresentar o casal Morgan (Allison Williams, "M3gan") e Chris Grant (Scott Eastwood), ao lado da irmã da mocinha, Jenny Davidson (Willa Fitzgerald, série "Pânico") e o amigo Jonah Sullivan (Dave Franco, "Artista do Desastre"), a notícia de uma gravidez derruba possibilidades -lançadas por olhares. E assim acontece por 17 anos quando um acidente devastador revela uma traição chocante, levando Morgan e a filha, Clara (Mckenna Grace, "Ghostbusters") a serem mais próximas.


Contudo, um pouco antes do maior dilema da trama, no caminho da jovem surge Miller Adams (Mason Thames), filho de um garoto problema conhecido por Morgan, da época do colégio. Tentando guardar o maior segredo de família, mãe e filha, redefinem o amor e se redescobrem com interferências mais diretas de Jonah. Enquanto que a amiga de Clara, Lexie (Sam Morelos), é a personagem que traz leveza para o drama focado na complicação das relações.

Não há dúvida de que "Se Não Fosse Você" é um filme agradável de se acompanhar, mesmo tendo como base uma história de traição e perda de familiares. Seja pela trilha sonora, pela ambientação que inclui um cinema de cenário, ambiente de trabalho de Miller, sendo que Miller e Clara desejem trabalhar na área. É sempre bom ver o retorno do gênero romance com pitada de comédia -mesmo pesando no tema-, uma vez que é nítida a falta de produções atuais seguindo o gênero romance com pitada de comédia, sendo que no início dos anos 2000 perpetuou sucessos como "De Repente 30" e "Se Fosse Verdade". Vale a pena conferir!


"Se não fosse você". Diretor: Josh Boone. Elenco: Mckenna Grace (Clara Grant), Mason Thames (Miller Adams), Allison Williams (Morgan Grant), Dave Franco (Jonah Sullivan), Scott Eastwood (Chris Grant), Willa Fitzgerald (Jenny Davidson). Sinopse: Um acidente devastador revela uma traição chocante. Morgan Grant e sua filha, Clara, exploram o que restou enquanto confrontam segredos de família, redefinem o amor e se redescobrem.

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Trailer de "Se Não Fosse Você"


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terça-feira, 28 de outubro de 2025

.: Antonio Arruda usa a palavra como lâmina e transforma dor em linguagem


Por 
Helder Moraes Miranda, jornalista e crítico de cultura, especial para o portal Resenhando.com
Foto: divulgação

Premiado roteirista, jornalista e mestre em Teoria Literária, Antonio Arruda estreia na literatura com "O Corte que Desafia a Lâmina", publicado pela Editora Cachalote. O livro, que cruza autobiografia e ficção, nasce do confronto entre dor e linguagem. A obra mergulha nas zonas de tensão entre vida e morte, fé e erotismo, desejo e repressão, revelando um autor que transforma o trauma em matéria poética.

Essa relação entre ferida e palavra também atravessa sua trajetória no audiovisual - da série "Cidade Invisível" (Netflix) ao infantil "Era Uma Vez no Quintal" (TV Cultura). Com formação em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, Arruda propõe o que chama de “estética da cicatriz”: um modo de lidar com o real a partir da dor, mas sem vitimização. 

Nesta entrevista exclusiva ao Resenhando.com, ele fala sobre a voz do pai que ecoa em sua escrita, o perigo e a beleza de escrever a partir da lâmina e o corpo como território de revelação e enfrentamento - quando cada texto é uma tentativa de lidar com o que fere, mas também com o que cura. Compre o livro "O Corte que Desafia a Lâmina", de Antonio Arruda, neste link.


Resenhando.com - O seu livro começa a ser elaborado a partir da ausência da voz do pai. Você acredita que toda obra literária é uma tentativa de devolver a voz a alguém, mesmo que esse alguém seja um fantasma dentro de nós?
Antonio Arruda - Creio que o primeiro movimento seja o de ouvir essa voz. Seja ela interna, pessoal, ou de outros. Uma voz individual ou coletiva, social, política, existencial. Uma voz que tem algo a dizer. Que necessita ora gritar, ora sussurrar o não dito. E o escritor é aquele que se abre à escuta dessa voz. No meu caso, voltar ao trauma vivido quando tinha 12, 13, 14 anos e presenciei o adoecimento e a morte de meu pai, vítima de um câncer que lhe extirpou alguns órgãos e, consequentemente, a fala, me abriu um rasgo na realidade.E eu olhei através dele. Nesse sentido, a partir da não voz do pai, como eu digo no livro, nasceu a voz poética do filho. Então, sim, de certo modo eu dei voz a um fantasma que me assombrou durante muitos anos. Porque quando visitei meu pai no hospital e ele, já mudo, me entregou um pedaço de papel onde estava escrito: “está tudo bem, meu filho”, eu passei muito tempo refletindo sobre esse “está tudo bem”. Hoje, entendo que meu pai não se referia a ele - que obviamente não estava bem -, mas a mim, ao que ele desejava para mim, como se dissesse: “está tudo bem você ser feliz, apesar de; está tudo bem você viver a sua sexualidade, apesar de; está tudo bem você seguir o caminho que quiser em sua vida, apesar de este momento de perda ser muito doloroso”. Eu transformei o trauma em linguagem e ressignifiquei meus fantasmas internos.E, a partir daí, comecei a acessar dores, violências e traumas, como eu disse, existenciais, coletivos. Esse processo, creio, pode ser lido como uma forma de devolver a voz a alguém, de se apropriar do real em sua terrível crueza e, ao tentar perceber e sentir o que esse real pode revelar, valer-se da matéria-prima da escrita, que é a palavra, a linguagem, para verbalizar o que está nas entranhas, nos escombros desse real.


Resenhando.com - Em algum momento, escrever o salvou da própria lâmina, ou apenas ensinou você a manuseá-la melhor?
Antonio Arruda Se eu me salvasse da lâmina, não haveria escrita. Talvez tenha me ensinado, ou, melhor dizendo, me convocado a enfrentar a lâmina da realidade e transformá-la em lâmina-palavra. Ao assumir a palavra como lâmina que corta o corpo-livro e dá vida a ele, me vi mergulhado em um tensionamento constante entre experiência de vida e experiência literária. Não consigo conceber uma literatura que não nasça da experiência, seja ela, como eu mencionei, pessoal ou coletiva, histórica. Um dos meus livros de cabeceira é “O Arco e a Lira”, de Octávio Paz. Há um trecho do qual eu gosto muito: “A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são a nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade”. Escrever, nesse sentido, é testemunhar a realidade - no caso do meu livro, cortante, violenta, dilaceradora - para, assim, conferir-lhe um sentido outro, construído por meio de símbolos, metáforas, imagens poéticas, criando um espaço-tempo que passa a ser o literário, não mais o da vida, ainda que tão vivo e pulsante quanto ela própria.


Resenhando.com - No livro, o corpo é texto e o texto é corpo. Se a sua escrita tivesse um cheiro, uma textura e uma temperatura, como ela seria?
Antonio Arruda Teria o cheiro de um corpo que sangra, mas que também goza; o cheiro do suor que exala no momento do estertor, mas que também irrompe da pele no instante do orgasmo; o cheiro da natureza, muito presente no meu livro, a floresta, o mar, a terra, a brisa, que ora leva o leitor a sentir o terrível e o cruel, ora o epifânico, o etéreo, o impalpável espectral.Teria a textura do ferimento em carne viva e da cicatriz que o constitui como memória nesse corpo atravessado pela experiência da dor e de sua possível transmutação. Teria a temperatura quente, quase escaldante do sol que assola o velho do conto “O Devir”, por exemplo, e também o frio do cadáver do adolescente do conto “A Queda da Estrela”; ou, ainda, a temperatura morna e úmida dos musgos da árvore sobre os quais o personagem do conto “Nu” se senta e vive sua experiência de desejo e temor. Teria esses cheiros, essas texturas e essas temperaturas pois minha escrita nasce da ambivalência, das contradições, do tensionamento constante e inevitável entre pulsão de vida e de morte.


Resenhando.com - Você vem de uma trajetória sólida no audiovisual, na televisão, na Netflix. O que a literatura o permitiu dizer que a câmera jamais permitiria captar?
Antonio Arruda Vou responder seguindo por outro caminho: o que a literatura me permitiu fazer, que é, fundamentalmente, o trabalho, a experimentação com a linguagem. Por mais que na escrita de um roteiro a descrição dos cenários, o tom das cenas, a criação das falas dos personagens passem, obviamente, pela escolha das palavras, com a literatura é diferente. A literatura permite uma elaboração mais complexa. A busca pela palavra que melhor diz, que melhor revela o sentimento do personagem, a atmosfera desejada. A literatura possibilita - não que o audiovisual também não o faça, mas em outra medida, de outra maneira - a sugestão, o mistério que habita as entrelinhas do texto, e que só será revelado - e ressignificado - pelo leitor. Cabe a ele, e apenas a ele, no fim das contas, experienciar o que o livro expressa. E talvez seja essa a grande beleza do fazer literário.


Resenhando.com - A obra é atravessada por erotismo, dor, fé e homoafetividade, temas muitas vezes tratados como “demais” por uma sociedade ainda careta. Quando você escreve, sente que está exorcizando o medo alheio ou desnudando o seu?
Antonio Arruda As duas coisas, e não somente elas, e sem que haja uma distinção pragmática entre o que é meu e o que é alheio a mim. Interessa-me mais o borrão, a mancha que atravessa escritor e leitor. O quanto meu livro pode também desnudá-lo de seus medos? O quanto eu posso exorcizar os meus? O quanto, ainda, para além de um possível exorcismo, se faz necessária a convivência com os demônios, olhá-los de frente, tê-los ao lado? No livro, erotismo, dor, fé e homoafetividade estão emaranhados, são temas que se entrecruzam. Então, acredito, ou pelo menos desejo, que o livro gere no leitor mais encruzilhadas do que estradas retas.


Resenhando.com - A estética da cicatriz que você propõe tem algo de ritual. O que há de oferenda e o que há de profanação no ato de escrever?
Antonio Arruda Você tocou em um ponto bem importante, foi bem agudo em sua colocação. Há, de fato, algo de ritual. Ofertar-se à escrita é o ofício do escritor. Entregar-se ao texto. Como diz a poeta Isadora Krieger, “escrever é desaparecer no texto”. Nesse sentido, há muito de oferenda no processo de escrita. É uma doação intensa, um sacrifício, há algo de litúrgico, mítico, místico. Algo se desvela e se descortina quando escrevo, algo muitas vezes maior do que eu, que existe para além de mim. Ao mesmo tempo, meu processo de escrita e meu texto neste livro carregam uma corporeidade densa. “O Corte que Desafia a Lâmina” trabalha o tempo todo com a dualidade entre sagrado e profano. Profanar a carne para ofertá-la em sacrifício ao espírito. Acessar o espírito para que ele unja a carne e seus cortes, suas feridas. É esse o paradoxo que me interessa. E a minha proposta com a estética da cicatriz é justamente essa: criar um livro-corpo que, ao ser atravessado pela lâmina-palavra, inevitavelmente faça da escrita uma forma de ritualizar as experiências - de vida e literária.


Resenhando.com - No livro, há um homem que carrega uma carcaça de tartaruga até o mar e afunda com ela. Qual seria a sua carcaça hoje, e o que ainda o impede de soltá-la?
Antonio Arruda Vou pensar sobre essa pergunta e levá-la para a minha próxima sessão de análise para elaborar uma possível resposta (risos). Talvez a gente passe a vida toda acessando carcaças que acreditamos já ter soltado. Mergulhar nas dores e nos traumas me parece ser um exercício constante. Não sei especificar qual a carcaça de hoje com a qual ainda não me afoguei no mar. Mas, fazendo uma ligação com a pergunta anterior, talvez seja esse o ritual que mais me constitui como sujeito inquieto e complexo: tatear o inconsceano (para utilizar um dos neologismos do livro) e, assim, quem sabe, acessar as profundezas de ser.


Resenhando.com - Você é roteirista, professor, pesquisador, sacerdote e agora escritor publicado. Qual dessas vozes mais o contradiz, e qual delas você tenta silenciar quando escreve?
Antonio Arruda Talvez a mais contraditória delas seja a do escritor. Justamente por abarcar as demais? Não sei. Respondo em forma de pergunta, pois a assertividade, aqui, mataria, justamente, a contradição. Nunca tinha parado para pensar sobre isso. Mas sinto que a voz do professor, por ser carregada de um inevitável didatismo, seja aquela que, ainda que inconscientemente, eu tente silenciar. Minha escrita é altamente simbólica, imagética, alegórica. Acredito que não haja nela espaço para didatismos.


Resenhando.com - A dor é matéria-prima da arte, mas também um mercado. Você teme que o leitor leia suas feridas como espetáculo, e não como identificação?
Antonio Arruda Não. A dor como espetáculo está na mídia, nas notícias que transformam corpos violentados, agredidos, estraçalhados em números, em estatística. Está nas redes sociais. Está, infelizmente e cada vez mais, nos algoritmos. Sua pergunta me fez pensar que talvez o leitor não leia minhas feridas (que já nem são mais minhas, na verdade, uma vez que, depois de terem sido matéria-prima para a escrita, viraram ficção; são, portanto, as feridas dos narradores, dos personagens, do livro-corpo) como espetáculo, mas, se não como identificação, talvez como estranhamento, repulsa? Acredito que a literatura, ao se valer de elementos que atravessam, transgridem, subvertem o real, leva os leitores a processos complexos de investigação sobre si. Pelo menos é o que desejo que eles sintam ao acessar os cortes e as cicatrizes que eu transformei em experimentação estética.


Resenhando.com - Se o corte é inevitável, o que você ainda não teve coragem de transformar em lâmina?
Antonio Arruda Não sei… Às vezes eu sinto um pouco de medo da falta de medo que eu sinto (risos). Talvez quando descobrir qual a carcaça de hoje que ainda não carreguei para o mar eu consiga responder a essa pergunta. Como algumas pessoas que leram meu livro enquanto eu o escrevia e antes de enviá-lo à editora me disseram: “seu livro é fruto de muita coragem”. E eu senti mesmo isso ao escrevê-lo. Foi muito intenso e profundo mergulhar nas dores, nos traumas, nos cortes. E foi libertador. E estou disposto a continuar encarando as lâminas, a fazer delas o elemento mefistofélico que me aguilhoa a existência.



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